A Morte Vence

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A Morte Vence Title: A Morte Vence Author: Joo Jos Grave Release Date: December 3, 2007 [EBook...
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Author: Grave, João José,1872-1934
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Author: Grave, João José,1872-1934
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A Morte Vence

Title: A Morte Vence Author: Joo Jos Grave Release Date: December 3, 2007 [EBook #23687] Language: Portuguese Original Publication: , Porto: Livraria Chardron, de Llo & Irmo, L.^{da} editores--Rua das Carmelitas, 144 Aillaud e Bertrand--Lisboa-Paris 1922 Credits: Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net Nota de editor: Devido quantidade de erros tipogrficos existentes neste texto, foram tomadas vrias decises quanto verso final. Em caso de dvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrar a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Dez. 2007) Obras de JOO GRAVE Os Famintos Paixo e morte da Infanta A Eterna Mentira Os Sacrificados O ltimo Fauno Os que amam e os que sofrem O Passado Cruel Amor Gente Pobre Fogueiras de Santo Antnio Jornada romntica Vida do Esprto(pensamentos). Reflorir Reinado trgico A Inimiga No prlo: O Mutilado A Morte Vence Almas nquietas. Vitria de Parsifal JOO GRAVE DA ACADEMIA DAS SCINCIAS DE LISBOA A MORTE VENCE ROMANCE S leal a ti mesmo... shakespeare. SEGUNDA EDIO, EMENDADA PORTO Livraria Chardron, de Llo & Irmo, L.da editoresRua das Carmelitas, 144 Aillaud e BertrandLisboa-Paris 1922 A MORTE VENCE I A criana dormia tranqilamente, deitada no seu pequenino bero vaporoso de rendas e resplandecendo de brancura, por sse glorioso meio-dia de calor e de luz, no grande e benfico silncio que envolvia a vivenda feliz. A sua carne viriginal e transparente, ainda mal formada, parecia exalar claridade e tinha a colorao suave de certas rosas plidas e orvalhadas. A cabeleira anelada e loura espalhava-se, como uma ligeira nuvem de ouro, na alvura da almofada, macia e ffa, que servia de travesseiro; e sbre essa fronte anglica no profanada por impuros, venenosos pensamentos, baixava um halo de inocncia luminosa e de graa imaterial. Havia no quarto uma penumbra sedosa e frouxa que refrescava o ambiente inefvel e que tornava mais imprecisas, mais vagas, as linhas e as formas do mobilirio. Na pacificao deleitosa tudo repousava [8]docemente. Em cima do mrmore do toucador, em frente dum largo esplho em que se reflectiam imagens baas e indecisas, floriam perfumados ramos de cravos brancos em jarras de cristal cheias de gua lmpida; e da parede alta pendia, como a proteco celeste da infncia adormecida, uma cpia a leo da Virgem, de Murillo, que, entre anjos alados, extasiava os puros olhos nos fulgores siderais. C fra, o solum ardente sol de junhorutilava e ardia na atmosfera pesada e abafadia. Brandamente, na ponta dos ps para no fazer barulho, Jlia entrou no compartimento solitrio, aproximou-se do casto leito do filho, que tinha apenas meses de vida, contemplando-o com enlvo e ternura. Ela contava ento vinte e quatro anos, estava em pleno esplendor da sua beleza e do seu encanto de mulher, a alegria reflectia-se-lhe no rosto e a ventura iluminava-se-lhe na alma. Duma elegncia natural e sbria, vestia um amplo roupo de cassa creme apertado na cinta por laos de veludo preto. O curto decote deixava a descoberto a pele do colo que era setinosa, dourada e sem o mais ligeiro vinco. Um pente de tartaruga com embutidos de ouro segurava a massa dos seus cabelos castanhos enrolados no alto da nuca. Os seios direitos e rijos formavam uma delicada curva sob os tecidos flexveis, ao arfarem. Dois anos antes, em Vizela, apaixonara-se sriamente por Nuno Arago, para quem fra levada por um forte impulso de sentimento; e com le casara ao fim dum romntino idlio em que os seus sonhos de felicidade deram flor. Essa unio ntima que a fizera espsa e me e a que se devotou com um admirvel esprito de abnegao, completou-a. Os [9] dias do seu noivado tam doce fugiram de leve sem que dles ficassem resduos de tdio... Absorvida na viso do frgil sr que lhe trouxera, com a sua pureza e a sua formosura, uma revelao inteligncia e subtileza emotiva, Jlia ajoelhou junto do bero, compondo a roupa volta da cabecinha ideal, que a virgindade aureolava, com dedos mais geis do que asase nem sequer notava a presena de Nuno que a seguira de perto e que, por detrs dela, sorria comovido. Houve um momento em que Jlia se curvou sbre a face gorda e picada de cvinhas do filho, roando-a com os lbios. Cautela, no vs acord-lo!murmurou o marido em voz de segrdo. Ela voltou a cabea, sorridente: e, fitando-o com uma emoo que o olhar traa, interrogou: Estavas a? Quis acompanhar-te na tua amorvel visitarespondeu. Olha, vem c!... pediu Jlia. No verdade que lindo? Nuno aninhou-se tam perto dela que lhe sentia o sussurro brando da respirao, passou-lhe um brao volta do pescoo, puxou-a tda para o peito e ambos se embeberam na adorao da criana que continuava dormindo com a gracilidade e a poesia dum boto de rosa, fazendo um pequeno volume sob as ls quentes e as cambraias tnues. No lindo?insistiu Jlia. Fala!... Como no havia de ser lindo, se veio de ti, da tua purificao, do teu amor!... Do nosso amor!emendou ela, com palavras [10] de mimo e de queixume, beijando-o demoradamente na bca. Do nosso amor, dizes bem!confirmou Nuno, enleado. E curioso como j na sua carinha se desenham as tuas feies. V... O nariz, a testa, o queixo... So os teus... No! So os teus!atalhou Jlia, indicando com o dedo os traos fisionmicos do filho. Ora observa com ateno... No lhe toques, que podes mago-lo, coitadinho!exclamou le. A sua carninha tam tenra, que at tenho mdo de amolg-la, quando a beijo. Que tolice!...exclamou Jlia, rindo. Por um instante, as cabeas de ambos, unidas, fizeram um docel animado sbre o bero inocente que agasalhava, embalava, um destino misterioso para o qual aspiravam tda a grandeza, todo o gnio, tda a bondade, todos os favores generosos da sorte enigmtica, nessa hora bemdita e proftica em que os seus coraes palpitavam com o mesmo ritmo e a mesma nsia, as suas vontades se fundiam numa s vontade e as suas ambies se irmanavam. Depois, com os olhos humedecidos de lgrimas de gzo interior, ergueram-se, sempre estreitados num apertado abrao, fitaram-se com enternecimento, emmudecidos, penetrados por idntico jbilo, com a imaginao perdida no encanto das mesmas idealizaes. Abenoada sejas!disse Nuno. E tu tambm, por esta paz, esta certeza, [11] esta confiana, esta ba fortuna que comunicaste minha vidaatalhou Jlia com convico, afagando-o no rosto. Saram do quarto, mirando ainda o filhoque fra como que a visitao duma divindade propcia adorao que nunca deixara de aproxim-los mais desde o instante admirvel em que pela primeira vez se conheceram e que, entre os ternos cuidados dos dois, cresceria, se faria homem, prolongaria as suas existncias, iria para as ras vindouras, cantando um hino de esperana. le representava a expresso definitiva e tangvel do amor que os identificara, do desejo puro que os fizera vibrar e que alvoroara a sua carne, da simpatia fsica que os juntou. Nas suas veias corria um sangue que era de ambos; no seu corpo latejava uma carne que lhes pertencia; e, mais tarde, quando fsse grande, teria a mesma f, as mesmas crenas, as mesmas ideias, as mesmas piedades, as mesmas finuras de sentir, a mesma nobreza de aspiraes. Estou hoje tam contente!afirmou Jlia j na sala, dispondo um bibelot sbre a mesa do centro, coberta com um largo pano pintado, enquanto Nuno acendia um charuto. E ste contentamento vem-me de ti, da tua fidelidade, da tua delicadeza, e vem tambm do nosso filho. A luz e a ventura que esta criancinha veio trazer nossa casa, Nuno! Pois no assim? , querida! Parece um milagre! s vezes, nem quero acreditar!... Um milagre que merecamos. Antes dle nascer, tudo em mim eram sustos, [12] receios, hesitaes. Em certos momentos, tinha dvidas que me faziam chorar!... Dvidas? Sim, dvidas! Que queres? Aterrava-me o pensamento da morte, do abandno em que ficavas... No era de ti que eu duvidava, isso no; mas no sei que tristeza me pungia, ennegrecendo, obscurecendo o meu crebro... Agora, porm, tudo se apaziguou, serenaram as inquietaes, tranqilizaram-se os sobressaltos... Foi para o marido, que a esperava no meio da sala, com um sorriso de fadiga que a tornava mais graciosa e mais bela, as plpebras meio cerradas, os braos cados e sem aco, e, encostando-se-lhe ao ombro forte, acrescentou: E sempre te direi que o nosso filho me inspira uma venerao maior por ti e me fez melhor, mais compadecida por todo o infortnio, por tda a humana desgraa, por todo o vasto sofrimento. Se tu s uma santa!disse Nuno, abraando-a novamente e com uma comoo imperceptvel na voz. No! Sou apenas mulher e me. E por isso que me lembro constantemente da desdita das outras mulheres e das outras mes. Ainda ontem, por exemplo, no pude reter o prantooh! um pranto que me desoprimiu!ao ver brincar na quinta os filhos do caseiro, descalos e tam rotinhos, com as faces chupadas e macilentas e uma funda melancolia no olhar... Antigamente, stes espectculos lamentveis passavam-me despercebidos, Nuno... O mundo est cheio de desigualdades, com efeito. [13] Mas doloroso que haja fome ao lado da nossa abundncia!... H de fazer-se alguma coisa, sossega... Porque a verdade que o nosso filho, se fssemos pobres, andaria por a tambm faminto e n como os outros, os que nada teem!... le que me pede pelos deserdados... No digas isso!acudiu Nuno, de repente, muito perturbado... O nosso filho esfomeado e rto!... Bem sei que no pretendes acusar-me de injustias que no pratiquei... Eu mal conhecia esta quinta e a gente que a habita; ainda hoje no conheo o caseiro e ignoro as suas misrias. Antes do nosso casamento, s uma vez vim aqui, porque a existncia tumultuosa das cidades solicitava-me, reclamava-me e aturdia-me. H uma semana apenas que nos encontrmos neste sitio e nestas terras, que so nossas. No tive tempo para familiarizar-me com a sua populao, para tudo saber minuciosamente... Oh! meu amor, quantas palavras inteis! No!... que me fizeste vislumbrar, de repente, possveis castigos, terrveis calamidades, abatendo-se sbre criaturas sem culpa!... Eu no queria...atalhou Jlia, perturbada. Certamente, certamente!disse Nuno, beijando-a na fronte e nos olhos. escusado defenderes-te... Mas que as palavras das mulheres que amam como tu amas e que no seu amor abrangem tda a vida consciente, teem uma profundidade, uma vastido e uma inflexo que conturba... De resto, tu s foste justa:e esta noo exacta da justia significa a superioridade das almas femininas sbre os homens, duros, scos, implacveis. Com [14] efeito, para sermos absolutamente felizes, necessrio que nossa volta s haja felicidade... Ento, bem vs!... Pois est claro, querida... Obrigado pela tua lio tam digna e tam eloqente. A tua elevao moral sublima o que em mim ainda existe de grosseiro e de egoista. Sem o teu aviso, continuaria a haver, perto de ns, privaes e amarguras. Eu nada via; tu, com a subtileza dum amor materno incomparvel, viste tudo, num relance. Ensina-me sempre. No sou mau, com certeza, mas incompleto: felizmente, tu completas-me e por isso a minha gratido subir perptuamente para ti como o perdo dos crentes sbe para o cu... Tinham-se sentado num amplo sof de molas flcidas que, a um canto, convidava ao repouso. O sol vivo que se filtrava pela vidraa da janela respirando para o jardim, batia, j atenuado pelo store de linho cru e pelo tule dos cortinados, sbre as rosas que morram nos solitrios, falhava sbre os mveis, dourava fugidiamente o papel verde que forrava as paredes. De longe chegava o som duma nora rangendo no meio dum imenso campo de milho e produzindo um rudo especial e ritmado de tear. Jlia, encolhida perto de Nuno, com as mos esquecidas no regao, tornava-se mais pequenina, mais humilde, como se temesse pesar demasiadamente sbre aquele amor que pressentia isento de tda a mcula, perfeito de dedicao e de constnciaum amor que era a razo do seu sr e o seu maior orgulho. As express de linho cru e pelo tule dos cortinados, sbre as rosas que morram nos solitrios, falhava sbre os mveis, dourava fugidiamente o papel verde que forrava as paredes. De longe chegava o som duma nora rangendo no meio dum imenso campo de milho e produzindo um rudo especial e ritmado de tear. Jlia, encolhida perto de Nuno, com as mos esquecidas no regao, tornava-se mais pequenina, mais humilde, como se temesse pesar demasiadamente sbre aquele amor que pressentia isento de tda a mcula, perfeito de dedicao e de constnciaum amor que era a razo do seu sr e o seu maior orgulho. As expresses carinhosas de Nuno faziam-na crar, causavam-lhe uma sensao de inexprimvel bem-estar e de pacificao interior. No seu sobressalto, nem sabia que responder, [15] no encontrava os termos precisos com que manifestar a sua gratido. Que maravilhosa manh eu passei hoje na tua companhia, minha preguiosa!exclamou Nuno, quebrando a monotonia dum silncio que se ia prolongando. Estou tam cansada!afirmou Jlia, pousando-lhe a cabea no ombro. E olha que no tenho feito nada. Anunciar sse cansao alguma doena? No, que ideia! Nunca me senti com tanta sade. stes ares campestres teem-me feito muito bem. Por mim, no saria mais daqui! Ento, encontramo-nos na mesma ambio, o que no me surpreende, porque j nos havamos encontrado no mesmo sentimento. Pois queres, na verdade?...perguntou ela, fitando-o com infinita meiguice. Que prazer me ds com isso!... Arrependendo-se, porm, dum contentamento que no soubera esconder e que lhe parecia impuro, atalhou prontamente: No, no!... Que loucura! Na cidade, tens os teus amigos, os teus passatempos, as tuas conversas, as tuas distraces. Aqui no h nada disso. Terminarias por aborrecer-te, por enfadar-te... necessrio que saibas que no h coisa que me cative, longe de ti, fra do nosso lar, para alm do bero do nosso filho. Nem sequer tenho pensamentos que no sejam os teus. Jlia, no entanto, teimava na certeza de que a permanncia constante na quinta seria o sacrifcio de Nuno, segura de que se no pode romper sem [16] violncia com hbitos contrados e fundamente enrazados: e, para que a sua teimosia encontrasse vibrao no marido, asseverava: Eu mesma viria a sofrer neste rmo, mais tarde. Enquanto durar o vero, isto ser, realmente, bonito. H luz, h horizonte, podemos dar largos passeios, admirar tda essa paisagem deliciosa, sentir tda a poesia rural... Mas depois, quando aparecer o inverno, com os seus dias e as suas noites de chuva, a sua desolao, os seus frios, as suas tempestades, a cidade, que o movimento, a variedade, a sociabilidade, voltaria a apetecer-nos... Falando assim, Jlia estava intimamente convencida de que defendia a continuidade da adorao de Nuno, a sua felicidade permanente, a inaltervel placidez de relaes conjugais que um mal entendido seria capaz de comprometer irremedivelmente. A ternura que sentia pelo marido e que se lhe apoderara do sangue, da substncia nervosa, de todo o seu organismo psquico e material, afinava-lhe a inteligncia, tornava mais arguta a sua capacidade de analisar e de compreender. No aspirava, nicamente, ao amor de Nuno, mas tambm sua gratido e ao seu respeito. Residir para sempre na quinta, distante dum bulcio que a desgostava e de episdios sociais que a no interessavam, sera o seu supremo desejoum desejo a que Nuno acederia alegremente: mas considerava que o isolamento, a ausncia de convivncias e de amizades, a falta de ocupaes recreativas, viriam fatalmente a deprimir e entristecer aquele homem que era o mais fiel dos homens e que, para a amar mais puramente e mais intensamente, renunciara a tudo o que fsse estranho sua paixo. [17] Ah! se por isso!...disse Nuno. Na verdade, no te habituarias a ste deserto, minha filha... Eu sim, porque gosto da solido, porque as multides fazem-me mal. Mas, o que eu no permito que te sacrifiques... Uma criada entrou, trazendo o correio que acabava de chegar. Eram jornais e cartas que Nuno comeou a abrir distradamente, enquanto Jlia continuava a arrumar com mais ordem e mais elegncia as peas do mobilirio, a deitar gua nas jarras das flores, a espanejar o p leve que maculava o verniz das tagres. Tu no tens quem faa sse servio?perguntou Nuno, parando um momento de lr a sua correspondncia. Oh! filho! Deixa-me ocupar em alguma coisa... Depois, uma sca. Por mais que recomende e que ralhe, nunca me atendem, no fazem nenhum caso do que digo. Isto de criadas... Procuram-se outras melhores. Ora! So tdas piores!...exclamou Jlia, rindo. Mandam-se fabricar por um modlo que tu escolhers tua vontade, com molas vindas das oficinas de Londres, movendo-se por um sistema de relojoaria... E tu vers ento como obedecem, como so atenciosas e pacientes...respondeu le, rindo tambm e reencetando a leitura interrompida. A vlha habitao, onde outrora tinham vivido os avs de Nuno, que eram abastados proprietrios rurais, parecia cabecear de sono sob o dourado, fascante banho do sol, sem que o menor rudo perturbasse a sua sonolncia. Altas roseiras de trepar [18] subiam pelas paredes cobrindo-as de vermelhas e mudinhas rosas de toucar. No pombal, que ficava ao lado, perto da capoeira, arrulhavam as pombas aos pares. Errava no ar um dormente zumbido de moscas. E esta?bradou Nuno, de sbito, pousando sbre uma cadeira a carta que tinha entre as mos. Que ?inquiriu Jlia, aproximando-se. Alguma novidade? Uma novidade estupenda. Nem tu calculas. Sabes quem vem a, fazer-nos uma visita? No sei, no posso adivinhar... Pois devias, para seres absolutamente perfeita, dispor dsse dom... Quem vem a visitar-nos Frederico, aquele rapaz que foi meu camarada e que o meu, o nosso melhor amigo!... Tinha-lo convidado?... E no me dizias nada!... Escrevi-lhe, antes de partirmos para aqui, como me obrigava o meu afecto. Ofereci-lhe, na nossa casa, uma enxrga e uma tigela de caldo, severa moda de Esparta... E le aceitou. Bom, excelente Frederico!... Quando chega le? Estar, entre ns, manh ao romper do dia. J almoa. D as tuas ordens para que se arrange um quarto a ste vagabundo que tam amvelmente se lembra do nosso exlio... Ser uma companhia. De dentro, da alcova, veio um dbil vagido que deteve repentinamente a conversa de Nuno e de Jlia. Sua ex.a despertou e reclama, naturalmente, [19] o lunchdisse le, levantando-se. Onde est a ama? L em baixo, a brunir. Vai cham-la, enquanto eu entretenho a crianamurmurou Jlia, dirigindo-se ao quarto. Nuno pegou nos jornais e nas cartas apressadamente lidas e desceu ao pavimento inferior, gritando pela ama do filho, que acudiu tda afogueada do calor do ferro. Era uma rapariga na fra da vida, sadavel, bem constituda, de fortes seios estalando de seiva sob o pano do colete, braos gordos e estriados de rija musculatura. Corra l acima senhora. O menino acordou agora mesmo. Ela galgou logo as escadas gilmente, num rumor de saias engomadas, exclamando jovialmente: A vou, meu amorsinho, a vou!... Nuno, satisfeito com as suaves emoes daquela clara e plcida manh familiar, sau para o jardim que, roda da vivenda tranqila, rescendia e refrigerava, com os seus canteiros coloridos onde desabrochavam os cravos rajados e as derradeiras rosas do estio. Estava um tempo maravilhoso. O cu luzente e translcido arqueava-se sbre a quinta como um enorme plio de sda azul sem uma ruga. Os negrilhos, as tlias, os amieiros e os pltanos deixavam car das suas espssas folhagens a consolao afvel das sombras. Pelas ramagens que sussurravam brisa adejante, cantavam as aves. A cada passo, amplos bancos de cortia, que as copas dos vetustos arvoredos amenizavam de fresquido, solicitavam ao descanso e s sstas aprazveis. Nuno, passeando vagarosamente, ia pensando que por ali se teriam sentado [20]outrora, nas tardes de calor, as senhoras da sua casa com os livros dos poetas esquecidos no regao, sempre que de vero vinham procurar ao campo a sade e as bas cres que a cidade lhes roubava. Aquele retiro estava cheio de recordaes, de sadosas memrias dos antepassados. Sua me, que havia falecido dois anos antes de le se casar com Jlia, passara no doce refgioem que agora se encontrava com a famlia que constituira e que era todo o seu enlvoa primeira infncia, saltando pelos arruamentos que o Jacinto jardineiro trazia sempre bem areados, regados e varridos. Evocando piedosamente a figura de mam, que fra tam gentil e que uma doena cruel bem cedo arrebatara, Nuno concentrava-se, recolhia-se para com mais intensidade sentir. Pobre, pobre me precocemente morta e que com tanto fervor lhe queria! Revivia-a na imaginao, reconstituia-a com nitidez. Parecia-se ainda um pouco com Jlia na bondade, na afabilidade, nas maneiras, no timbre da voz, na candura e na meiguice materna. Existiam nelas mesmo determinadas semelhanas exteriores que o surpreendiamnos olhos que, em ambas, eram negros, profundos e hmidos, na finura das linhas plsticas, na brancura da pele, na nobreza da expresso fisionmica que reflectia conjuntamente a paixo, a gravidade e a graa. Sobretudo, quando observava o sorriso de Jliaum sorriso em que havia qualquer coisa de castidade infantil, de seriedade ponderada e de ternura ingnua, Nuno assistia, deslumbrado, a uma verdadeira ressurreio. E foi por isto, de-certo, que amou desvairadamente a espsa desde a primeira noite em que a viu, no salo dum hotel de Vizela [21] onde se danava, e que ainda a amava e amaria sempre com o mesmo transporte e a mesma firmeza. A me, que no fra feliz no casamentoporque o marido desertava do lar conjugal para correr atrs doutros amores, para atirar ouro aos punhados sbre as bancas do jgo, para dissipar uma existncia que nunca encontrou sossgo seno na sepulturaressurgia na mulher admirvel que era a sua doce companheira e que, com geito divino, devotando-se-lhe, lhe fizera a revelao da felicidade!... Continuando o passeio e embebendo-se em lembranas, que aviventava para seu gzo espiritual, Nuno chegou, insensivelmente, a meio da propriedade, que era de vastas dimenses. Para l do parque frondoso, com uma rica decorao de troncos nodosos e recobertos de musgos parasitrios, ficava o pomar que vergava de frutas pelos outonos elegacos, quando as flhas amarelas caam como asas que cessassem de bater: e mais abaixo, espraiavam-se as terras de cultura, as pastagens para o gado, abundantemente regadas por guas espertas e vivas que desciam, cantando, das bcas negras das minas, frias e saborosas: o casebre dos caseiros pegado aos currais: a eira todo o dia batida de sol. Ao fundo, um pinheiral cerrado de rama verde-negra, que dava a lenha para o lume, fechava vista a linha do horizonte. Das bandas do norte, elevavam-se espinhaos de serranias escarpadas, correndo dum extremo a outro e azulando-se, no crepsculo, com os nevoeiros que, como um fumo ligeiro e branco, ascendiam das profundidades do vale, afogado em vegetaes exuberantes. A quinta, situada nos arredores de Guimares, pertencia j a Nuno ainda em vida dos pais. [22] Legara-lha seu av materno, aterrado certamente com as dissipaes do genro que fundia em orgias, em viagens que no tinham fim, em ligaes ilicitas, o dote da mulher legtima e que ameaava deixar na misria, aos acasos incertos do destino, o filho nico. Ah! sse pai! Nuno no queria mal sua memria, que venerava, recordava-o com sadade e com mgoa, no invejava o dinheiro que le espalhara estrilmente com mos perdulrias. Desculpava-o. Era fogoso, irreflectido, embrenhava-se em aventuras arriscadas, perseguindo uma iluso dos sentidos que jmais alcanou, tinha um irnico desdm por tdas as convenes, caracterizava-se por uma rebeldia de temperamento que nenhum conselho prudente e fecundo conseguia apaziguar; o seu egosmo de jouisseur no admitia restries naquilo que julgava essencial ao seu gzo prprio; fra, talvez, um doente, uma organizao enfrma expiando sucessivas acumulaes de hereditariedade mrbida que vinham de longe, prolongando-se em geraes taradas e denunciando um doloroso fim de raa. Obedecera passivamente, por ausncia de vontade, aos secretos e vertiginosos impulsos do seu mal interiordo mal que insacivelmente o roa, lhe debilitava o carcter, o esgotava de energia para tdas as reaces nobilitantes... O amor tornava Nuno generoso. S lamentava que sua me tanto tivesse sofrido sem se queixar, transida, conformada com o infortnio, agarrando-se ainda nervosamente ao seu verdugo como as heras se agarram a uma rvore carcomida, negando-se com obstinao a separar-se dle e a voltar para o lar paterno, onde seria recebida em festa e onde a sua [23] existncia atribulada encontraria suavidade e consloporque, a-pesar-de tudo, continuava a am-lo com ansiedade, com loucura, com uma constncia que nunca afrouxou. Pensando neste caso singular de devoo e de sacrifcio, Nuno julgava que havia herdado da me as virtudes afectivas, a rectido, a lealdade, a sensibilidade agudae considerava-se feliz por isso... Meteu-se resolutamente por um fechado milheiral, onde amadurecia ao sol de Deus o po sagrado que daria alento e fartura s bcas famintas e plidas. Largas flhas compridas como espadas roavam-lhe o rosto, aoutavam-lhe as mos; as suas botas atolavam-se no terreno remexido de fresco e humedecido das regas que levavam o alimento s razes; um cheiro acre de seivas e de ervas esmagadas impregnava a aragem. Nuno aspirava-o a fundos haustos, murmurando, regalado: Ah! isto vigoriza, tonifica! Da banda do nascente, uma poeira de luz flutuava sbre os pncaros das montanhas escalvadas que, por vezes, na sua imobilidade, tinham atitudes quse humanas, sugerindo formas gigantescas e animadas, curvando-se sbre a sombra, o vazio dos abismos. Enquanto caminhava e admirava ste maravilhoso trecho de paisagem, Nuno ia recebendo uma lio de coisas ignoradas. Com efeito, era aquela a primeira vez que visitava tam minuciosamente a quinta, que fra a morada pacfica e venturosa dos seus avs, da sua gente. S ali tinha vindo uma vez, de fugida, para conhecer uma parte dos domnios territoriais de que era senhor, mas no passara do jardim, onde por sinal havia colhido um cravo branco [24] com que floriu a lapela do seu casaco de casimira inglesa. Ao cabo duma curta hora, logo abalou para o Prto, onde nascera e onde vivia, alarmado com tanta solitude, penetrado de melancolia e de desalento, sem compreender como certas criaturas podiam permanecer longe das cidades, do seu movimento, das suas sedues, dos seus aliciantes espectculos. Nesse tempo, estava ainda solteiro, completava na Academia Politcnica o curso de engenharia, era revolucionrio como todos os seus camaradas, freqentava com assiduidade as renies polticas em que se conspirava contra a Monarquia, tinha rixas com a polcia e namorava as costureiras. Agora, porm, via com olhos diferentes dos dessa poca, possua uma compreenso mais lcida, tudo nle se havia modificado, existia na sua alma um sentimento mais equilibrado e mais justo. A inquietao antiga apenas servira para transmitir um grato sabor paz actual: a reflexo e o estudo tinham-lhe revelado o mundo e as sociedades por um outro aspecto. Para le, as urbs onde se agitam os densos formigueiros de seres conscientes, gritando os seus desesperos e as suas cleras, representavam a tentao corruptora, a deliqescncia, eram as sinistras geradoras da dor e dos pessimismos modernos: e o campo, a aldeia, constituam os reservatrios da vida salubre, os ltimos santurios da crena religiosa e da felicidade onde os rprobos deviam retemperar-se anualmente. Como a sua mocidade fra inconsiderada! Em compensao, como os seus trinta e cinco anos eram sbios e estavam na verdade!... Ao romper do milheiral em que se perdera, encontrou uma clareira buclica de terra que andava a horta, onde cresciam e enconchavam [25] as couves tronchudas, verdejavam as tiras das alfaces e os talhes de feijoal ondulavam ao vento brando. Um homem, em mangas de camisa, magro, esguio, de rosto queimado pelos ardentes bafos das soalheiras, cavava, com uma grande tristeza na face, em que se emmaranhava a barba crespa e negra, e nos olhos que fulguravam. Nuno foi direito a le, sadando-o amigvelmente. O cavador, tirando o chape esburacado e sujo, murmurou com humildade: Salve-o Deus, meu senhor. Durante um momento Nuno entregou-se contemplao do pobre trabalhador, de cara macilenta e mos calejadas e nodosas, em que os dedos deformados lembravam negras razes. A camisa aberta no peito deixava a descoberto uma pele macerada, repuxando sbre os ossos salientes: e uma grande piedade comoveu Nuno por tanta misria. Vocemecperguntou le que o caseiro? Saiba vossa senhoria que sim. J l vai um ror de anos depois que para aqui entrei, e tenho pago honradamente as rendas. Bem sei, bem sei! Eu sou o dono da quinta... Pois vossa senhoria que o netinho do snr. Vicente, que Deus haja? Sou eu mesmo... Oh! meu senhor! Desculpe, que eu no o conhecia. Mas, desculpar o que, bom homem?... que eu nem sequer fui v-lo l acima, ao palcio... No podia adivinhar... Tinha-me dito o snr. Jos, procurador, que vinham viver na casa grande por algum tempo uns senhores, mas eu no [26] contava... Sempre uma assim! A gente anda c nas nossas apoquentaes, no tem vagar para nada... E imediatamente, vergado ao hbito da obedincia, submetido ao jugo da escravido que sempre, no decurso duma vida trabalhosa e amarga, o coagia a rojar-se, a fazer-se mais pequeno diante dos poderosos, atirando a enxada para a leiva revolvida, aproximou-se de Nuno, baixando a cabea descoberta como para receber o justo castigo duma grande falta. O senhor perde... Eu no sabia... Homem, j lhe disse!... No tenho que perdoar. Est claro que a sua visita era-me agradvel:mas como amigo e no como dependente. boa... Ponha o chapu. Como amigo, como amigo!...mastigou o caseiro, com a lngua embrulhada na bca e os olhos rasos de gua, conservando o chapu nas mos. Como amigo, certamente... E ponha o chapu. Agora, mando eu. Ponha o chapu, avie-se. Isso que no... O respeito no fica mal a ningum. um dever... -Se no pe o chapu, zango-me e vou-me embora... Ora essa!... Pois!... Afirmo-lho! Ou faz o que lhe peo ou retiro-me... Ento, com sua licena, fidalgo... E vamos conversar ba paz... Est contente com os terrenos que traz arrendados? Eu no me queixo... Vo dando para viver, com a ninhada dos filhos e a mulher entrevada, melhor ou pior, como Deus servido. [27] Pois, no tira lucros? Umas vezes pelas outras tiro, sim, senhor, que a terra anda bem tratada. No lhe roubo ao sustento preciso... Mas l vem um ano mau em que parte das colheitas se perde, l morre um boi, e vo-se as economias escassas, para uma pessoa no ficar envergonhada... Adeus, minhas encomendas! Percam-se os aneis, mas conservam-se os dedos, como o outro que diz... Ah! eu julgava que a lavoura era remuneradora. A terra quse sempre ingrata para os que dela vivem, senhor... Alm disso, para recolher necessrio semear e o dinheiro no me sobra... Mas isto no chorar-me. No quero aborrec-lo. Vive-se com o muito e vive-se tambm com o pouquinho... E a mulher entrevada, disse? verdade, coitada! Fiquei dum dia para o outro sem o brao que me ajudava, e ando consumido, c por dentro, de v-la sofrer. Depois que teve o ltimo filho, nunca mais se ergueu... Infeliz!... E os mdicos?!... Os mdicos... So muito caros. Veio a um algumas vezes, para me dizer que o mal no era de morte mas que no tinha cura!... E o que mais me custa, meu senhor, que a pobre de Cristo est sempre a pensar na labuta, na canseira do trabalho, e quando vou para comer a migalha, costuma dizer:Oh! meu homem, que te matas... Oh! criatura que no tens um momento de descanso e eu para aqui a curtir a minha doena, sem poder auxiliar-te... Que Deus me leve!... Enfim, corta o corao, coitadinha... E fo ......Buy Now (To Read More)

Product details

Ebook Number: 23687
Author: Grave, João José
Release Date: Dec 3, 2007
Format: eBook
Language: Portuguese
Publisher: Livraria Chardron, de Lélo & Irmão, L.^{da} editores--Rua das Carmelitas
Publication Date: 1922

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