Eurico, o presbytero

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Eurico, o presbytero Title: Eurico, o presbytero Author: Alexandre Herculano Release Date: June 14, 2014 [EBook #45966]...
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Author: Herculano, Alexandre,1810-1877
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Eurico, o presbytero

Title: Eurico, o presbytero Author: Alexandre Herculano Release Date: June 14, 2014 [EBook #45966] Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha, Alberto Manuel Brando Simes and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) Nota de editor: Devido existncia de erros tipogrficos neste texto, foram tomadas vrias decises quanto verso final. Em caso de dvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrar a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Junho 2014) EURICO O PRESBYTERO QUINTA EDIO LISBOA IMPRENSA NACIONAL 1864 Para as almas, no sei se diga demasiadamente positivas, se demasiadamente grosseiras, o celibato do sacerdocio no passa de uma condio, de uma formula social applicada a certa classe d'individuos cuja existencia ella modifica vantajosamente por um lado e desfavoravelmente por outro. A philosophia do celibato para os espiritos vulgares acaba aqui. Aos olhos dos que avaliam as cousas e os homens s pela sua utilidade social, essa especie d'insulao domestica do sacerdote, essa indirecta abjurao dos affectos mais puros e sanctos, os da familia, [vi] condemnada por uns como contraria ao interesse das naes, como damnosa em moral e em politica, e defendida por outros como util e moral. Deus me livre de debater materia tantas vezes disputada, tantas vezes exhaurida pelos que sabem a sciencia do mundo e pelos que sabem a sciencia do cu! Eu, por minha parte, fraco argumentador, s tenho pensado no celibato luz do sentimento e sob a influencia da impresso singular que desde verdes annos fez em mim a ida da irremediavel solido d'alma a que a igreja condemnou os seus ministros, especie de amputao espiritual, em que para o sacerdote morre a esperana de completar a sua existencia na terra. Supponde todos os contentamentos, todas as consolaes que as imagens celestiaes e a crena viva podem gerar, e achareis que estas no supprem o triste vacuo da soledade do corao. Dae s paixes todo o ardor que poderdes, aos prazeres mil vezes mais intensidade, [vii] aos sentidos a maxima energia e convertei o mundo em paraizo, mas tirae delle a mulher, e o mundo ser um ermo melancholico, os deleites sero apenas o preludio do tedio. Muitas vezes, na verdade, ella desce, arrastada por ns, ao charco immundo da extrema depravao moral; muitissimas mais, porm, nos salva de ns mesmos e, pelo affecto e enthusiasmo, nos impelle a quanto ha bom e generoso. Quem, ao menos uma vez, no creu na existencia dos anjos revelada nos profundos vestigios dessa existencia impressos n'um corao de mulher? E porque no sera ella na escala da creao um anel da cadeia dos entes, presa, de um lado, humanidade pela fraqueza e pela morte e, do outro, aos espiritos puros pelo amor e pelo mysterio? Porque no sera a mulher o intermedio entre o cu e a terra? Mas, se isto assim , ao sacerdote no foi dado comprehend-lo; no lhe foi dado julg-lo pelos mil factos que no-lo tem dicto, [viii] a ns os que no jurmos juncto do altar repellir metade da nossa alma, quando a providencia no-la fizesse encontrar na vida. Ao sacerdote cumpre acceitar esta por verdadeiro desterro: para elle o mundo deve passar desconsolado e triste, como se nos apresenta ao despovoarmo-lo daquellas por quem e para quem vivemos. A historia das agonias ntimas geradas pela lucta desta situao excepcional do clero com as tendencias naturaes do homem sera bem dolorosa e variada, se as phases do corao tivessem os seus annaes como os tem as geraes e os povos. A obra da logica potente da imaginao que cria o romance sera bem grosseira e fria comparada com a terrivel realidade historica de uma alma devorada pela solido do sacerdocio. Essa chronica de amarguras procurei-a j pelos mosteiros quando elles desabavam no meio das nossas transformaes politicas. Era um buscar insensato. Nem nos codices [ix] illminados da idade mdia, nem nos pallidos pergaminhos dos archivos monasticos estava ella. Debaixo das lageas que cubriam os sepulchros claustraes havia, por certo, muitos que a sabiam; mas as sepulturas dos monges achei-as mudas. Alguns fragmentos avulsos que nas minhas indagaes encontrei eram apenas phrases soltas e obscuras da historia que eu buscava debalde; debalde, porque pobre victima, quer voluntaria, quer forada ao sacrificio, no era lcito o gemer, nem dizer aos vindouros:sabei quanto eu padeci! E, por isso mesmo que sobre ella pesava o mysterio, a imaginao vinha ahi para supprir a historia. Da ida do celibato religioso, das suas consequencias forosas e dos raros vestigios que destas achei nas tradies monasticas nasceu o presente livro. Desde o palacio at a taberna e o prostibulo; desde o mais esplendido viver at o vejetar do vulgacho mais rude, todos os logares [x] e todas as condies tem tido o seu romancista. Deixae que o mais obscuro de todos seja o do clero. Pouco perdereis com isso. O Monasticon uma intuio quasi prophetica do passado, s vezes intuio mais difficultosa que a do futuro. Sabeis qual seja o valor da palavra monge na sua origem remota, na sua frma primitiva? o des e triste. Por isso na minha concepo complexa, cujos limites no sei de antemo assignalar, dei cabida chronica-poema, lenda ou o que quer que seja do Presbytero godo: dei-lh'a, tambem, porque o pensamento della foi despertado pela narrativa de certo manuscripto gothico, affumado e gasto do roar dos seculos que outr'ora pertenceu a um antigo mosteiro do Minho. O Monge de Cister, que deve seguir-se a Eurico, teve, proximamente, a mesma origem. ajudanovembro de 1843. EURICO O PRESBYTERO I OS WISIGODOS A um tempo toda a raa goda, soltas as redeas do governo, comeou a inclinar o animo para a lascivia e suberba. Monge de Silos: Chronicon. c. 2. A raa dos wisigodos conquistadora das Hespanhas subjugara toda a Peninsula havia mais de um seculo. Nenhuma das tribus germanicas que, dividindo entre si as provincias do imperio dos cesares, tinham tentado vestir sua barbara nudez com os trajos despedaados, mas esplendidos, da civilisao romana [2] soubera como os godos ajunctar esses fragmentos de purpura e ouro para se compr a exemplo de povo civilisado. Leuwighild expulsara da Hespanha os derradeiros soldados dos imperadores gregos, reprimira a audacia dos frankos, que em suas correrias assolavam as provincias wisigothicas d'alm dos Pyreneus, acabara com a especie de monarchia que os suevos tinham instituido na Gallecia e expirara em Toletum, depois de ter estabelecido leis politicas e civis e a paz e ordem publicas nos seus vastos dominios, que se estendiam de mar a mar e, ainda, transpondo as montanhas da Vasconia, abrangiam uma grande poro da antiga Gallia narbonense. Desde essa epocha a distinco das duas raas, a conquistadora ou goda e a romana ou conquistada, quasi desapparecera, e os homens do norte haviam-se confundido com os do meio-dia em uma s nao, para cuja grandeza contribuira aquella com as virtudes asperas da Germania, esta com as tradies da cultura e policia romanas. As leis dos cesares, pelas quaes se regiam os vencidos, misturaram-se com as singelas e rudes instituies wisigothicas, e j um codigo unico, escripto na lingua latina, regulava [3] os direitos e deveres communs quando o arianismo, que os godos tinham abraado abraando o evangelho, se declarou vencido pelo catholicismo, a que pertencia a raa romana. Esta converso dos vencedores crena dos subjugados foi o complemento da fuso social dos dous povos. A civilisao, porm, que suavisou a rudeza dos barbaros era uma civilisao velha e corrupta. Por alguns bens que produziu para aquelles homens primitivos trouxe-lhes o peior dos males, a perverso moral. A monarchia wisigothica procurou imitar o luxo do imperio que morrera e que ella substituira. Toletum quiz ser a imagem de Roma ou de Constantinopola. Esta causa principal, ajudada por muitas outras, nascidas em grande parte da mesma origem, gerou a dissoluo politica por via da dissoluo moral. Debalde muitos homens de genio revestidos da auctoridade suprema tentaram evitar a ruina que viam no futuro: debalde o clero hespanhol, incomparavelmente o mais alumiado da Europa naquellas eras tenebrosas e cuja influencia nos negocios publicos era maior que a de todas as outras classes junctas, procurou nas severas leis dos concilios, que eram verdadeiros parlamentos politicos, [4] reter a nao que se despenhava. A podrido tinha chegado ao amago da arvore, e ella devia seccar: o proprio clero se corrompeu por fim. O vicio e a degenerao corriam soltamente, rota a ultima barreira. Foi ento que o celebre Ruderico se apossou da coroa. Os filhos do seu predecessor Witiza, os mancebos Sisebuto e Ebbas, disputaram-lh'a largo tempo; mas, segundo parece dos escaos monumentos historicos dessa escura epocha, cederam por fim, no usurpao, porque o throno gothico no era legalmente hereditario, mas fortuna e ousadia do ambicioso soldado, que os deixou viver em paz na propria corte e os revestiu de dignidades militares. D'ahi, se dermos credito a antigos historiadores, lhe veiu a ultima ruina na batalha do rio Chryssus ou Guadalete, em que o imperio gothico foi anniquilado. No meio, porm, da decadencia dos godos algumas almas conservavam ainda a tempera robusta dos antigos homens da Germania. Da civilisao romana ellas no haviam acceitado seno a cultura intellectual e as sublimes theorias moraes do christianismo. As virtudes civs e, sobretudo, o amor da patria tinham nascido para os godos [5] logo que, fixando o seu domicilio nas Hespanhas, possuiram de paes a filhos o campo agricultado, o lar domestico, o templo da orao e o cemiterio do repouso e da saudade. Nestes coraes, onde reinavam affectos ao mesmo tempo ardentes e profundos, porque nelles a indole meridional se misturava com o caracter tenaz dos povos do norte, a moral evangelica revestia esses affectos d'uma poesia divina, e a civilisao ornava-os de uma expresso suave, que lhes realava a poesia. Mas no fim do seculo septimo eram j bem raros aquelles em quem as tradies da cultura romana no haviam subjugado os instinctos generosos da barbaria germanica e a quem o christianismo fazia ainda escutar o seu verbo intimo, esquecido no meio do luxo profano do clero e da pompa insensata do culto exterior. Uma longa paz com as outras naes tinha convertido a antiga energia dos godos em alimento das dissenses intestinas, e a guerra civil, gastando essa energia, havia posto em logar della o habito das traies covardes, das vinganas mesquinhas, dos enredos infames e das abjeces ambiciosas. O povo, esmagado debaixo do peso dos tributos, dilacerado pelas luctas dos bandos civis, prostituido [6] s paixes dos poderosos, esquecera completamente as virtudes guerreiras de seus avs. As leis de Wamba e as expresses de Erwig no duodecimo concilio de Toletum revelam quo fundo a nesta parte o cancro da degenerao moral das Hespanhas. No meio de tantos e to duros vexames e padecimentos, o mais custoso e aborrecido de todos elles para os afeminados descendentes dos soldados de Theoderik, de Thorsmund, de Theudes e de Leuwighild era o vestir as armas em defenso daquella mesma patria que os heroes wisigodos tinham conquistado para a legarem a seus filhos, e a maioria do povo preferia a infamia que a lei impunha aos que recusavam defender a terra natal aos riscos gloriosos dos combates e vida fadigosa da guerra. Tal era, em resumo, o estado politico e moral da Hespanha na epocha em que aconteceram os sucessos que vamos narrar. II O PRESBYTERO Sublimado ao grau de presbytero.... quanta brandura, qual caridade fosse a sua o amor de todos lh'o demonstrava. Alvaro de Cordova: Vida de S. Eulogio c. 1. No reconcavo da bahia que se encurva ao oeste do Calpe, Carteia, a filha dos phenicios, mira ao longe as correntes rapidas do estreito que divide a Europa da Africa. Opulenta outr'ora, os seus estaleiros tinham sido famosos antes da conquista romana, mas apenas restam vestigios delles; as suas muralhas [8] haviam sido extensas e solidas, mas jazem desmoronadas; os seus edificios foram cheios de magnificencia, mas cahiram em ruinas; a sua povoao era numerosa e activa, mas rareiou e tornou-se indolente. Passaram por l as revolues, as conquistas, todas as vicissitudes da Iberia durante doze seculos, e cada vicissitude dessas deixou ahi uma pgada de decadencia. Os curtos annos d'explendor da monarchia wisigothica tinham sido para ella como um dia formoso d'inverno, em que os raios do sol resvalam pela face da terra sem a aquecerem, para depois vir a noite, humida e fria como as que a precederam. Debaixo do governo de Witiza e de Ruderico a antiga Carteia uma povoao decrepita e mesquinha, roda da qual esto espalhados os fragmentos da passada opulencia e que, talvez, na sua miseria, apenas nas recordaes que lhe suggerem esses farrapos de louainhas juvenis acha algum refrigerio s amarguras da malfadada velhice. No!Resta-lhe ainda outro: a religio do Christo. O presbyterio, situado no meio da povoao, era um edificio humilde, como todos os que ainda subsistem alevantados pelos godos sobre o slo da Hespanha. Cantos [9] enormes sem cimento alteiam-lhe os muros, cobre-lhe o ambito tecto achatado, tecido de grossas traves de carvalho sobpostas ao tnue colmo: o seu portal profundo e estreito presagia de certo modo a mysteriosa portada da cathedral da idade-mdia: as suas janellas, por onde a claridade, passando para o interior, se transforma em tristonho crepusculo, so como um typo indeciso e rude das frestas que, depois, alumiaram os templos edificados no decimo quarto seculo, atravs das quaes, coada por vidros de mil cores, a luz ia bater melancholica nos alvos pannos dos muros gigantes e estampar nelles as sombras das columnas e arcos enredados das naves. Mas se o presbyterio wisigothico, no escao da claridade, se approxima do typo christo d'architectura, no resto revela que ainda as idas grosseiras do culto de Odin no se tem apagado de todo nos filhos e netos dos barbaros, convertidos ha tres ou quatro seculos crena do crucificado. O presbytero Eurico era o pastor da pobre parochia de Carteia. Descendente de uma antiga familia barbara, gardingo na corte de Witiza, tiuphado ou millenario do exercito wisigothico, vivera os ligeiros dias da mocidade no meio dos deleites da opulenta [10] Toletum. Rico, poderoso, gentil, o amor viera, apesar disso, quebrar a cadeia brilhante da sua felicidade. Namorado d'Hermengarda, filha de Favila, duque de Cantabria, e irman do valoroso e depois to celebre Pelagio, o seu amor fora infeliz. O orgulhoso Favila no consentira que o menos nobre gardingo pusesse to alto a mira dos seus desejos. Depois de mil provas de um affecto immenso, de uma paixo ardente, o moo guerreiro vira submergir todas as suas esperanas. Eurico era uma destas almas ricas de sublime poesia a que o mundo deu o nome d'imaginaes desregradas, porque no para o mundo entend-las. Desventurado, o seu corao de fogo queimou-lhe o vio da existencia ao despertar dos sonhos do amor que o tinham embalado. A ingratido d'Hermengarda, que parecera ceder sem resistencia vontade de seu pae, e o orgulho insultuoso do velho procer deram em terra com aquelle animo, que o aspecto da morte no sera capaz de abater. A melancholia que o devorava, consumindo-lhe as foras, fe-lo cahir em longa e perigosa enfermidade, e, quando a energia de uma constituio vigorosa o arrancou das bordas do tumulo, semelhante ao anjo rebelde, os [11] toques bellos e puros do seu gesto formoso e varonil transpareciam-lhe a custo atravs do vu de muda tristeza que lhe entenebrecia a fronte. O cedro pendia fulminado pelo fogo do cu. Uma destas revolues moraes que as grandes crises produzem no espirito humano se operou ento no moo Eurico. Educado na crena viva daquelles tempos; naturalmente religioso porque poeta, foi procurar abrigo e consolaes aos ps d'Aquelle cujos braos esto sempre abertos para receber o desgraado que nelles vai buscar o derradeiro refugio. Ao cabo das grandezas cortesans o pobre gardingo encontrara a morte do espirito, o desengano do mundo. Ao cabo da estreita senda da cruz acharia elle, porventura, a vida e o repouso intimos? Era este problema, no qual se resumia todo o seu futuro, que tentava resolver o pastor do pobre presbyterio da velha cidade do Calpe. Depois de passar pelos differentes grus do sacerdocio, Eurico recebera ainda de Siseberto, o predecessor de Oppas na s de Hispalis, o encargo de pastoreiar esse diminuto rebanho da povoao phenicia. O moo presbytero, legando cathedral uma poro dos dominios que herdara junctamente com [12] a espada conquistadora de seus avs, havia reservado apenas uma parte das proprias riquezas. Era esta a herana dos miseraveis, que elle sabia no escaceiarem na quasi solitaria e meia arruinada Carteia. A nova existencia d'Eurico tinha modificado, porm no destruido o seu brilhante caracter. A maior das humanas desventuras, a viuvez do espirito, abrandara, pela melancholia, as impetuosas paixes do mancebo e apagara nos seus labios o riso do contentamento, mas no podera desvanecer no corao do sacerdote os generosos affectos do guerreiro, nem as inspiraes do poeta. O templo havia sanctificado aquelles, moldando-os pelo evangelho, e tornado estas mais solemnes, alimentando-as com as imagens e sentimentos sublimes estampados nas paginas sacrosanctas da Biblia. O enthusiasmo e o amor tinham resurgido naquelle corao que parecera morto, mas transformados; o enthusiasmo em enthusiasmo pela virtude; o amor em amor dos homens. E a esperana? Oh, a esperana, essa que no renascera! III O POETA Nenhum de vs ouse reprovar os hymnos compostos em louvor de Deus. Concilio de Toledo IV. can. 13. Muitas vezes, pela tarde, quando o sol, transpondo a bahia de Carteia, descia affogueiado para a banda de Mellaria, dourando com os ultimos resplendores os cimos da montanha pyramidal do Calpe, via-se ao longo da praia vestido com a fluctuante stringe o presbytero Eurico, encaminhando-se para [14] os alcantis aprumados beira-mar. Os pastores que o encontravam, voltando ao povoado, diziam que, ao passarem por elle e ao saudarem-no, nem sequer os escutava e que dos seus labios semi-abertos e tremulos rompia um sussurro de palavras inarticuladas, semelhante ao ciciar da aragem pelas ramas da selva. Os que lhe espreitavam os passos, nestes largos passeios da tarde, viam-no chegar s raizes do Calpe, trepar aos precipicios, sumir-se entre os rochedos e apparecer, por fim, l ao longe, immovel sobre algum pincaro requeimado pelos soes do estio e poido pelas tempestades do inverno. Ao lusco-fusco, as amplas pregas da stringe d'Eurico, branquejando movedias merc do vento, eram o signal de que elle estava l, e, quando a lua subia s alturas do cu, esse alvejar de roupas tremulas durava, quasi sempre, at que o planeta da saudade se atufava nas aguas do Estreito. D'ahi a poucas horas, os habitantes de Carteia que se erguiam para os seus trabalhos ruraes antes do alvorecer, olhando para o presbyterio, viam, atravs dos vidros corados da solitaria morada de Eurico, a luz da lampada nocturna que esmorecia, desvanecendo-se na claridade matutina. Cada qual tecia ento sua novella [15] ajudado pelas crenas da superstio popular: artes criminosas, tracto com o espirito mau, penitencia de uma abominavel vida passada e, at, a loucura, tudo serviu successivamente para explicar o proceder mysterioso do presbytero. O povo rude de Carteia no podia entender esta vida d'excepo, porque no percebia que a intelligencia do poeta precisa de viver n'um mundo mais amplo do que esse a que a sociedade traou to mesquinhos limites. Mas Eurico era como um anjo tutelar dos amargurados. Nunca a sua mo benefica deixou de estender-se para o logar em que a afflico se assentava; nunca os seus olhos recusaram lagrymas que se misturassem com lagrymas d'alheias desventuras. Servo ou homem livre, liberto ou patrono, para elle todos eram filhos. Todas as condies se livelavam onde elle apparecia; porque, pae commum daquelles que a providencia lhe confiara, todos para elle eram irmos. Sacerdote do Christo, ensinado pelas largas horas de intima agonia, esmagado o seu corao pela suberba dos homens, Eurico percebera, emfim, claramente que o christianismo se resume em uma palavrafraternidade. Saba que o evangelho um protesto dictado por [16] Deus, para os seculos, contra as vans distinces que a fora e o orgulho radicaram neste mundo de lodo, d'oppresso e de sangue; saba que a unica nobreza a dos coraes e dos entendimentos que buscam erguer-se para as alturas do cu, mas que essa superioridade real exteriormente humilde e singela. Pouco a pouco, a severidade dos costumes do pastor de Carteia e a sua beneficencia, to meiga, to despida das insolencias que costumam acompanhar e encher d'amargor para os miseraveis a piedade hypocrita dos felizes da terra; essa beneficencia que a religio chamou caridade, porque a linguagem dos homens no tinha palavra que exprimisse rigorosamente um affecto revelado terra pela victima do Calvario; essa beneficencia que a gratido geral recompensava com amor sincero tinha desvanecido gradualmente as suspeitas odiosas que o proceder extraordinario do presbytero suscitara a principio. Emfim, certo domingo em que, tendo aberto as portas do templo, e havendo j o psalmista entoado os canticos matutinos, o ostiario buscava cuidadoso o sacerdote, que parecia ter-se esquecido da hora em que devia sacrificar a hostia do cordeiro e abenoar [17] o povo, foi encontr-lo adormecido juncto sua lampada ainda accesa e com o brao firmado sobre um pergaminho cuberto de linhas desiguaes. Antes de despertar Eurico, o ostiario correu com os olhos a parte da escriptura que o brao do presbytero no encobria. Era um novo hymno no genero daquelles que Isidoro, o celebre bispo de Hispalis, introduzira nas solemnidades da igreja goda. Ento o ostiario entendeu o mysterio da vida errante do pastor de Carteia e as suas vigilias nocturnas. No tardou em espalhar-se na povoao e nos logares circumvizinhos que Eurico era o auctor de alguns canticos religiosos transcriptos nos hymnarios de varias dioceses, e uma parte dos quaes brevemente foi admittida na propria cathedral d'Hispalis. O caracter de poeta tornou-o ainda mais respeitado. A poesia, dedicada quasi exclusivamente entre os wisigodos s solemnidades da igreja, sanctificava a arte e augmentava a venerao publica para quem a exercitava. O nome do presbytero comeou a soar por toda a Hespanha, como o de um successor de Draconio, de Merobaude e de Orencio. Desde ento ninguem mais lhe seguiu os passos. Assentado nos alcantis do Calpe,vagabundo [18] pelas campinas vizinhas ou embrenhado pelas selvas sertanejas, deixaram-no tranquillo embalar-se nos seus pensamentos. Na conta de inspirado por Deus, quasi na de propheta, o tinham as multides. No gastava elle as horas que lhe sobejavam do exercicio de seu laborioso ministerio n'uma obra do Senhor? No deviam esses hymnos da soledade e da noite derramar-se como um perfume ao p dos altares? No completava Eurico a sua misso sacerdotal, revestindo a orao das harmonias do cu, estudadas e colhidas por elle no silencio e na meditao? Mancebo, o numeroso clero das parochias vizinhas considerava-o como o mais veneravel entre os seus irmos no sacerdocio, e os velhos procuravam na sua fronte, quasi sempre carregada e triste, e nas suas breves mas eloquentes palavras o segredo das inspiraes e o ensino da sabedoria. Mas, se os que o acatavam como um predestinado soubessem quo negra era a predestinao do poeta, porventura que essa especie de culto de que o cercavam se converteria em compaixo ou antes em terror. Os hymnos to suaves, to cheios d'unco, to intimos, que os psalmistas das cathedraes de [19] Hespanha repetiam com enthusiasmo eram como o respirar tranquillo do somno da madrugada que vem depois de arquejar e gemer de pesadello nocturno. Rapido e raro passava o sorrir nas faces de Eurico; profundas e indeleveis eram as rugas da sua fronte. No sorriso reverberava o hymno pio, harmonioso, sancto dessa alma, quando, alevantando-se da terra, se entranhava nos sonhos de um mundo melhor. s rugas, porm, da fronte do presbytero, semelhantes s vagas varridas pelo noroeste, respondia um canto lugubre de colera ou desalento, que rebramia l dentro, quando a sua imaginao, cahindo, como a aguia ferida, das alturas do espao, se rojava pela morada dos homens. Era este canto doloroso e tetrico, o qual lhe transsudava do corao em noites no dormidas, na montanha ou na selva, na campina ou no estreito aposento, que elle derramava em torrentes de amargura ou de fel sobre pergaminhos que nem o ostiario nem ninguem tinha visto. Estes poemas, em que palpitava a indignao e a dor de um animo generoso, eram o Gethsemani do poeta. Todavia, os virtuosos nem sequer o imaginavam, porque no perceberiam como, tranquilla a consciencia e repousada a vida, um [20] corao pde devorar-se a si proprio, e os maus no criam que o sacerdote, embebido unicamente em suas esperanas credulas, em suas cogitaes d'alm do tumulo, curasse dos males e crimes que roam o imperio moribundo dos wisigodos; no criam que tivesse um verbo de colera para amaldicoar os homens aquelle que ensinava o perdo e o amor. Era por isto que o poeta escondia as suas terriveis inspiraes. Monstruosas para uns, objecto de ludibrio para outros, n'uma sociedade corrupta, em que a virtude era egoista e o vicio incredulo, ninguem o escutara ou, antes, ninguem o entenderia. Levado existencia tranquilla do sacerdocio pela desesperana, Eurico sentira a principio uma suave melancholia refrigerar-lhe a alma requeimada ao fogo da desdita. A especie de torpor moral em que uma rapida transio de habitos e pensamentos o lanara pareceu-lhe paz e repouso. A ferida affizera-se ao ferro que estava dentro della, e Eurico suppunha-a sarada. Quando um novo affecto veio esprem-la que sentiu que no se havia cerrado e que o sangue manava ainda, porventura, com mais fora. Um amor de mulher mal correspondido a tinha aberto: o amor da patria, despertado pelos acontecimentos [21] que rapidamente succediam uns aos outros na Hespanha despedaada pelos bandos civis, foi a mo que de novo abriu essa chaga. As dores recentes, avivando as antigas, comearam a converter pouco a pouco os severos principios do christianismo em flagello e martyrio daquella alma, que, a um tempo, o mundo repellia e chamava e que nos seus transes d'angustia sentia escripta na consciencia com a penna do destino esta sentena cruel:nem a todos d o tumulo a bonana das tempestades do espirito. As scenas de dissoluo social que naquelle tempo se representavam na Peninsula eram capazes de despertar a indignao mais vehemente em todos os animos que ainda conservavam um diminuto vestigio do antigo caracter godo. Desde que Eurico trocara o gardingato pelo sacerdocio, os odios civs, as ambies, a ousadia dos bandos e a corrupo dos costumes haviam feito incriveis progressos. Nas solides do Calpe tinha reboado a desastrada morte de Witiza, a enthronisao violenta de Ruderico e as conspiraes que ameaavam rebentar por toda a parte e que a muito custo o novo monarcha a affogando em sangue. Ebbas e Sisebuto, filhos de Witiza, Oppas, seu tio, successor de Siseberto [22] na s de Hispalis, e Juliano, conde dos dominios hespanhoes nas costas d'Africa, do outro lado do Estreito, eram os cabeas dos conspiradores. Unicamente o povo conservava anda alguma virtude, a qual, semelhante ao liquido transvasado por cendal delgado e gasto, escoara inteiramente atravez das classes superiores. Opprimido, todavia, por muitos generos de violencias, esmagado debaixo dos ps dos grandes que luctavam, descrera por fim da patria, tornando-se indifferente e covarde, prestes a sacrificar a sua existencia collectiva paz individual e domestica. A fora moral da nao tinha, portanto, desapparecido, e a fora material era apenas um phantasma; porque, debaixo das lorigas dos cavalleiros e dos saios dos pees das hostes no havia seno animos gelados, que no podiam aquecer-se ao fogo do sancto amor da terra natal. Com a profunda intelligencia de poeta, o Presbytero contemplava este horrivel espectaculo de uma nao cadaver e, longe do bafo empestado das paixes mesquinhas e torpes daquella gerao degenerada, ou derramava sobre o pergaminho em torrentes de fel, d'ironia e de colera a amargura que lhe trasbordava do corao ou, recordando-se dos [23] tempos em que era feliz porque tinha esperana, escrevia com lagrymas os hymnos de amor e de saudade. Das elegias tremendas do Presbytero alguns fragmentos que duraram at hoje diziam assim: IV RECORDAES Onde que se escondeu enfraquecida a antiga fortaleza? S. Eulogio: Memorial dos Sanct. liv. 3. Presbyterio de Carteia. meia noite dos Idos de Dezembro de 748. 1 Era por uma destas noites vagarosas do inverno em que o brilho do cu sem lua vivo e tremulo; em que o gemer das selvas profundo e longo; em que a soledade das praias e ribas fragosas do oceano absoluta e tetrica. [25] Era a hora em que o homem est recolhido nas suas mesquinhas moradas; em que pelos cemiterios o orvalho se pendura do topo das cruzes e, ssinho, goteja das bordas das campas; em que s elle chora os mortos. As larvas da imaginao e o gear nocturno affastam do campo sancto a saudade da viuva e do orpham, a desesperao da amante, o corao despedaado do amigo. Para se consolarem, os infelizes dormiam tranquillos em seus leitos macios!... em quanto os vrmes am roendo esses cadaveres amarrados pelos grilhes da morte. Hypocritas dos affectos humanos, o somno enxugou-lhes as lagrymas! E depois, as lousas eram j to frias! Nos seios de um torro humido o sudario do cadaver tinha apodrecido com elle. Haver paz no tumulo? Deus sabe o destino de cada homem. Para o que ahi repousa sei eu que ha na terra o esquecimento! Os mares pareciam naquella hora recordar-se ainda do rugido harmonioso do estio, e a vaga arqueiava-se, rolava e, espreguiando-se pela praia, reflectia a espaos nas golfadas de escuma a luz indecisa dos cus. E o animal que ri e chora, o rei da creao, [26] a imagem da divindade, onde que se escondera? Tremia de frio em aposento cerrado, e sentia confrangido a brisa fresca do norte que passava nas trevas e sibilava contente nas saras rasteiras dos maninhos desertos. Sem dvida, o homem forte e a mais excellente obra da creao. Gloria ao rei da natureza que tiritando geme! Orgulho humano, qual s tu mais?feroz, estupido ou ridiculo? 2 No eram assim os godos do oeste quando, ora arrastando por terra as aguias romanas, ora segurando com o seu brao de ferro o imperio que desabava, imperavam na Italia, nas Gallias e nas Hespanhas, moderadores e arbitros entre o Septemtrio e o Meio-dia: No era assim, quando o velho Theoderik, semelhante ao urso feroz da montanha, combatia nos campos catalaunicos rodeiado de tres filhos contra o terrivel Attila e ganhava no seu ultimo dia a sua ultima victoria: Quando a larga e curta espada de dous gumes se convertera em fouce de morte nas [27] mos dos godos, e diante della retrocedia a cavallaria dos gpidas, e os esquadres dos hunos vacillavam, dando roucos gritos d'espanto e terror. Quando as trevas eram mais cerradas e profundas viam-se claridade das estrellas relampagueiar as armas dos hunos, volteiando em roda dos seus carros, que lhes serviam de vallos. Como o caador espreita o leo tomado no fojo, os wisigodos os vigiavam, esperando o romper da alvorada. L, o sopro gelado da noite no fazia confranger nossos avs debaixo das armaduras. L, a neve era um leito como outro qualquer, e o rugir do bosque, debatendo-se nas azas da tempestade, era uma cantilena de repouso. O velho Theoderik cahira atravessado por uma frecha despedida pelo ostrogodo Handags, que com os da sua tribu combatia pelos hunos. Os wisigodos viram-no, passaram vante e vingaram-no. Ao pr do sol, gpidas, ostrogodos, scyros, burgundos, thuringios, hunos, misturados uns com outros, tinham mordido a terra catalaunica, e os restos da innumeravel hoste d'Attila, encerrados no seu acampamento fortificado, preparavam-se para [28] morrer; porque Theoderik jazia para sempre, e o frankisk dos wisigodos era vingador e inexoravel. O romano Aecio teve ......Buy Now (To Read More)

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Ebook Number: 45966
Author: Herculano, Alexandre
Release Date: Jun 14, 2014
Format: eBook
Language: Portuguese

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