O Mandarim

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O Mandarim Title: O Mandarim Author: Ea de Queirs Release Date: July 29, 2005 [EBook #16384] Language:...
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Author: Queirós, Eça de,1845-1900
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Author: Queirós, Eça de,1845-1900
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O Mandarim

Title: O Mandarim Author: Ea de Queirs Release Date: July 29, 2005 [EBook #16384] Language: Portuguese Credits: Produced by Biblioteca Nacional Digital ( http://bnd.bn.pt ), Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net EA DE QUEIROZ O MANDARIM LIVRARIA INTERNACIONAL DE ERNESTO CHARDRON, EDITOR. Porto e Braga 1880 O MANDARIM PROLOGO 1. Amigo (bebendo Cognac e soda, debaixo d'arvores, n'um terrao, beira d'agua) Camarada, por estes calores do estio que embotam a ponta da sagacidade, repousemos do aspero estudo da Realidade humana... Partamos para os campos do Sonho, vaguear por essas azuladas collinas romanticas [2]onde se ergue a torre abandonada do Sobrenatural, e musgos frescos recobrem as ruinas do Idealismo... Faamos phantasia!... 2. Amigo Mas sobriamente, camarada, parcamente!... E como nas sabias e amaveis Allegorias da Renascena, misturando-lhe sempre uma Moralidade discreta... (Comedia Inedita). I Eu chamo-me Theodoroe fui amanuense do Ministerio do Reino. N'esse tempo vivia eu travessa da Conceio n. 106, na casa d'hospedes da D. Augusta, a esplendida D. Augusta, viuva do major Marques. Tinha dois companheiros: o Cabrita, empregado na Administrao do bairro central, esguio [4] e amarello como uma tocha d'enterro; e o possante, o exuberante tenente Couceiro, grande tocador de viola franceza. A minha existencia era bem equilibrada e suave. Toda a semana, de mangas de lustrina carteira da minha repartio, ia lanando, n'uma formosa letra cursiva, sobre o papel Tojal do Estado, estas phrases faceis: Ill.mo e Exc.mo Snr.Tenho a honra de communicar a V. Exc.... Tenho a honra de passar s mos de V. Exc., Ill.mo e Exc.mo Snr... Aos domingos repousava: installava-me ento no canap da sala de jantar, de cachimbo nos dentes, e admirava a D. Augusta, que, em dias de missa, costumava limpar com clara d'ovo a caspa do tenente Couceiro. Esta hora, sobretudo no vero, era deliciosa: pelas [5] janellas meio cerradas penetrava o bafo da soalheira, algum repique distante dos sinos da Conceio Nova, e o arrulhar das rolas na varanda; a monotona susurrao das moscas balanava-se sobre a velha cambraia, antigo vo nupcial da Madame Marques, que cobria agora no aparador os pratos de cerejas bicaes; pouco a pouco o tenente, envolvido n'um lenol como um idolo no seu manto, ia adormecendo, sob a frico molle das carinhosas mos da D. Augusta; e ella, arrebitando o dedo minimo branquinho e papudo, sulcava-lhe as rpas lustrosas com o pentesinho dos bichos... Eu ento, enternecido, dizia deleitosa senhora: Ai D. Augusta, que anjo que ! Ella ria; chamava-me enguio! Eu sorria, sem me escandalisar. Enguio era com effeito o nome que me davam [6] na casapor eu ser magro, entrar sempre as portas com o p direito, tremer de ratos, ter cabeceira da cama uma lithographia de Nossa Senhora das Dres que pertencera mam, e corcovar. Infelizmente corcvodo muito que verguei o espinhao, na Universidade, recuando como uma pga assustada diante dos senhores Lentes; na repartio, dobrando a fronte ao p perante os meus Directores Geraes. Esta attitude de resto convm ao bacharel; ella mantem a disciplina n'um Estado bem organisado; e a mim garantia-me a tranquillidade dos domingos, o uso d'alguma roupa branca, e vinte mil reis mensaes. No posso negar, porm, que n'esse tempo eu era ambiciosocomo o reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lepido Couceiro. No que me [7] revolvesse o peito o appetite heroico de dirigir, do alto d'um throno, vastos rebanhos humanos; no que a minha louca alma jmais aspirasse a rodar pela Baixa em trem da Companhia, seguida d'um correio choitando;mas pungia-me o desejo de poder jantar no Hotel Central com Champagne, apertar a mo mimosa de viscondessas, e, pelo menos duas vezes por semana, adormecer, n'um extasi mudo, sobre o seio fresco de Venus. Oh! moos que vos dirigieis vivamente a S. Carlos, atabafados em paletots caros onde alvejava a gravata de soire! Oh! tipoias, apinhadas de andaluzas, batendo galhardamente para os tourosquantas vezes me fizestes suspirar! Porque a certeza de que os meus vinte mil reis por mez e o meu geito encolhido de enguio me excluiam para sempre d'essas alegrias sociaes vinha-me [8]ento ferir o peitocomo uma frecha que se crava n'um tronco, e fica muito tempo vibrando! Ainda assim, eu no me considerava sombriamente um pria. A vida humilde tem douras: grato, n'uma manh de sol alegre, com o guardanapo ao pescoo, diante do bife de grelha, desdobrar o Diario de Noticias; pelas tardes de vero, nos bancos gratuitos do Passeio, gozam-se suavidades de idyllio; saboroso noite no Martinho, sorvendo aos goles um caf, ouvir os verbosos injuriar a patria... Depois, nunca fui excessivamente infelizporque no tenho imaginao: no me consumia, rondando e almejando em torno de paraisos ficticios, nascidos da minha propria alma desejosa como nuvens da evaporao d'um lago; no suspirava, olhando as lucidas estrellas, por um amor Romeo, [9]ou por uma gloria social Camors. Sou um positivo. S aspirava ao racional, ao tangivel, ao que j fra alcanado por outros no meu bairro, ao que accessivel ao bacharel. E ia-me resignando, como quem a uma table d'hte mastiga a bucha de po secco espera que lhe chegue o prato rico da Charlotte russe. As felicidades haviam de vir: e para as apressar eu fazia tudo o que devia como portuguez e como constitucional:pedia-as todas as noites a Nossa Senhora das Dres, e comprava decimos da loteria. No entanto procurava distrahir-me. E como as circumvolues do meu cerebro me no habilitavam a compr odes, maneira de tantos outros ao meu lado que se desforravam assim do tedio da profisso; como o meu ordenado, paga a casa e o tabaco, me no permittia [10]um viciotinha tomado o habito discreto de comprar na feira da Ladra antigos volumes desirmanados, e noite, no meu quarto, repastava-me d'essas leituras curiosas. Eram sempre obras de titulos ponderosos: Galera da Innocencia, Espelho Milagroso, Tristeza dos Mal Desherdados... O typo venerando, o papel amarellado com picadas de traa, a grave encadernao freiratica, a fitinha verde marcando a paginaencantavam-me! Depois, aquelles dizeres ingenuos em letra gorda davam uma pacificao a todo o meu sr, sensao comparavel paz penetrante d'uma velha crca de mosteiro, na quebrada d'um valle, por um fim suave de tarde, ouvindo o correr d'agua triste... Uma noite, ha annos, eu comera a lr, n'um d'esses in-folios vetustos, um [11]capitulo intitulado Brecha das Almas; e ia cahindo n'uma somnolencia grata, quando este periodo singular se me destacou do tom neutro e apagado da pagina, com o relevo d'uma medalha d'ouro nova brilhando sobre um tapete escuro: copo textualmente: No fundo da China existe um Mandarim mais rico que todos os reis de que a Fabula ou a Historia contam. D'elle nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a sda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedaes infindaveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Elle soltar apenas um suspiro, n'esses confins da Mongolia. Ser ento um cadaver: e tu vers a teus ps mais ouro do que pde sonhar a ambio d'um avaro. Tu, que me [12]ls e s um homem mortal, tocars tu a campainha? Estaquei, assombrado, diante da pagina aberta: aquella interrogao homem mortal, tocars tu a campainha? parecia-me facta, picaresca, e todavia perturbava-me prodigiosamente. Quiz lr mais; mas as linhas fugiam, ondeando como cobras assustadas, e no vazio que deixavam, d'uma lividez de pergaminho, l ficava, rebrilhando em negro, a interpellao estranhatocars tu a compainha? Se o volume fosse d'uma honesta edio Michel-Levy, de capa amarella, eu, que por fim no me achava perdido n'uma floresta de ballada allem, e podia da minha sacada vr branquejar luz do gaz o correame da patrulhateria simplesmente fechado o livro, e [13]estava dissipada a allucinao nervosa. Mas aquelle sombrio in-folio parecia estalar magia; cada letra affectava a inquietadora configurao d'esses signaes da velha cabala, que encerram um attributo fatidico; as virgulas tinham o retorcido petulante de rabos de diabinhos, entrevistos n'uma alvura de luar; no ponto d'interrogao final eu via o pavoroso gancho com que o Tentador vai fisgando as almas que adormeceram sem se refugiar na inviolavel cidadella da Orao!... Uma influencia sobrenatural apoderando-se de mim, arrebatava-me devagar para fra da realidade, do raciocinio: e no meu espirito foram-se formando duas visesd'um lado um Mandarim, decrepito, morrendo sem dr, longe, n'um kiosque chinez, a um ti-li-tin de campainha; do outro toda uma montanha de ouro scintillando aos meus [14]ps! Isto era to nitido, que eu via os olhos obliquos do velho personagem embaciarem-se, como cobertos d'uma tenue camada de p; e sentia o fino tinir de libras rolando juntas. E immovel, arripiado, cravava os olhos ardentes na campainha, pousada pacatamente diante de mim sobre um diccionario franceza campainha prevista, citada no mirifico in-folio... Foi ento que, do outro lado da mesa, uma voz insinuante e metallica me disse, no silencio: Vamos, Theodoro, meu amigo, estenda a mo, toque a campainha, seja um forte! O abat-jour verde da vela punha uma penumbra em redor. Ergui-o, a tremer. E vi, muito pacificamente sentado, um individuo corpulento, todo vestido de preto, de chapo alto, com as [15]duas mos caladas de luvas negras gravemente apoiadas ao cabo d'um guarda-chuva. No tinha nada de phantastico. Parecia to contemporaneo, to regular, to classe-mdia como se viesse da minha repartio... Toda a sua originalidade estava no rosto, sem barba, de linhas fortes e duras; o nariz brusco, d'um aquilino formidavel, apresentava a expresso rapace e atacante d'um bico d'aguia; o crte dos labios, muito firme, fazia-lhe como uma bocca de bronze; os olhos, ao fixar-se, assemelhavam dois clares de tiro, partindo subitamente d'entre as saras tenebrosas das sobrancelhas unidas; era lividomas, aqui e alm na pelle, corriam-lhe raiaes sanguineas como n'um velho marmore phenicio. Veio-me ida de repente que tinha diante de mim o Diabo: mas logo [16]todo o meu raciocinio se insurgiu resolutamente contra esta imaginao. Eu nunca acreditei no Diabocomo nunca acreditei em Deus. Jmais o disse alto, ou o escrevi nas gazetas, para no descontentar os poderes publicos, encarregados de manter o respeito por taes entidades: mas que existam estes dois personagens, velhos como a Substancia, rivaes bonacheires, fazendo-se mutuamente pirraas amaveis,um de barbas nevadas e tunica azul, na toilette do antigo Jove, habitando os altos luminosos, entre uma crte mais complicada que a de Luiz XIV; e o outro enfarruscado e manhoso, ornado de cornos, vivendo nas chammas inferiores, n'uma imitao burgueza do pitoresco Plutono acredito. No, no acredito! Co e Inferno so concepes sociaes para uso da plebee eu perteno classe-mdia. [17]Rezo, verdade, a Nossa Senhora das Dres: porque, assim como pedi o favor do senhor doutor para passar no meu acto; assim como, para obter os meus vinte mil reis, implorei a benevolencia do senhor deputado; igualmente para me subtrahir tisica, angina, navalha de ponta, febre que vem da sargeta, casca de laranja escorregadia onde se quebra a perna, a outros males publicos, necessito ter uma proteco extra-humana. Ou pelo rapa-p ou pelo incensador o homem prudente deve ir fazendo assim uma serie de sabias adulaes desde a Arcada at ao Paraiso. Com um compadre no bairro, e uma comadre mystica nas Alturaso destino do bacharel est seguro. Por isso, livre de torpes supersties, disse familiarmente ao individuo vestido de negro: [18] Ento, realmente, aconselha-me que toque a campainha? Elle ergueu um pouco o chapo, descobrindo a fronte estreita, enfeitada d'uma gaforinha crespa e negrejante como a do fabuloso Alcides, e respondeu, palavra a palavra: Aqui est o seu caso, estimavel Theodoro. Vinte mil reis mensaes so uma vergonha social! Por outro lado, ha sobre este globo coisas prodigiosas: ha vinhos de Borgonha, como por exemplo o Romane-Conti de 58 e o Chambertin de 61, que custam, cada garrafa, de dez a onze mil reis; e quem bebe o primeiro calix, no hesitar, para beber o segundo, em assassinar seu pai... Fabricam-se em Paris e em Londres carruagens de to suaves molas, de to mimosos estofos, que preferivel percorrer n'ellas o Campo Grande, a viajar, [19]como os antigos deuses, pelos cos, sobre os ffos coxins das nuvens... No farei sua instruco a offensa de o informar que se mobilam hoje casas, d'um estylo e d'um conforto, que so ellas que realisam superiormente esse regalo ficticio, chamado outr'ora a Bemaventurana. No lhe fallarei, Theodoro, d'outros gozos terrestres: como, por exemplo, o Theatro do Palais Royal, o baile Laborde, o Caf Anglais... S chamarei a sua atteno para este facto: existem sres que se chamam Mulheresdifferentes d'aquelles que conhece, e que se denominam Femeas. Estes sres, Theodoro, no meu tempo, a paginas 3 da Biblia, apenas usavam exteriormente uma folha de vinha. Hoje, Theodoro, toda uma symphonia, todo um engenhoso e delicado poema de rendas, baptistes, setins, flres, joias, [20]cachemiras, gazes e velludos... Comprehende a satsfao inenarravel que haver, para os cinco dedos de um christo, em percorrer, palpar estas maravilhas macias;mas tambem percebe que no com o troco d'uma placa honesta de cinco tostes que se pagam as contas d'estes cherubins... Mas ellas possuem melhor, Theodoro: so os cabellos cr do ouro ou cr da treva, tendo assim nas suas tranas a apparencia emblematica das duas grandes tentaes humanasa fome do metal precioso e o conhecimento do absoluto transcendente. E ainda teem mais: so os braos cr de marmore, d'uma frescura de lirio orvalhado; so os seios, sobre os quaes o grande Praxiteles modelou a sua Taa, que a linha mais pura e mais deal da Antiguidade.... Os seios, outr'ora (na ida d'esse ingenuo [21]Ancio que os formou, que fabricou o mundo, e de quem uma inimizade secular me veda de pronunciar o nome), eram destinados nutrio augusta da humanidade; socegue porm, Theodoro; hoje nenhuma maman racional os expe a essa funco deterioradora e severa; servem s para resplandecer, aninhados em rendas, ao gaz das soires,e para outros usos secretos. As conveniencias impedem-me de proseguir n'esta exposio radiosa das bellezas, que constituem o Fatal Feminino... De resto as suas pupillas j rebrilham.... Ora todas estas coisas, Theodoro, esto para alm, infinitamente para alm dos seus vinte mil res por mez... Confesse, ao menos, que estas palavras teem o veneravel sello da verdade!... Eu murmurei com as faces abrasadas: [22] Teem. E a sua voz proseguiu, paciente e suave: Que me diz a cento e cinco, ou cento e seis mil contos? Bem sei, uma bagatella... Mas emfim, constituem um comeo; so uma ligeira habilitao para conquistar a felicidade. Agora pondere estes factos: o Mandarim, esse Mandarim do fundo da China, est decrepito e est gottoso: como homem, como funccionario do celeste imperio, mais inutil em Pekin e na humanidade, que um seixo na bocca d'um co esfomeado. Mas a transformao da substancia existe: garanto-lh'a eu, que sei o segredo das coisas... Porque a terra assim: recolhe aqui um homem apodrecido, e restitue-o alm ao conjuncto das frmas como vegetal vioso. Bem pde ser que elle, inutil como [23]Mandarim no Imperio do Meio, v ser util n'outra terra como rosa perfumada ou saboroso replho. Matar, meu filho, quasi sempre equilibrar as necessidades universaes. eliminar aqui a excrescencia para ir alm supprir a falta. Penetre-se d'estas solidas philosophias. Uma pobre costureira de Londres anceia por vr florir, na sua trapeira, um vaso cheio de terra negra: uma flr consolaria aquella desherdada; mas na disposio dos sres, infelizmente, n'esse momento, a substancia que l devia ser rosa aqui na Baixa homem d'Estado... Vem ento o fadista de navalha aberta, e fende o estadista; o enxurro leva-lhe os intestinos; enterram-no, com tipoias atraz; a materia comea a desorganisar-se, mistura-se vasta evoluo dos atomose o superfluo homem de governo vai alegrar, sob a frma de [24]amor perfeito, a agua furtada da loura costureira. O assassino um philanthropo! Deixe-me resumir, Theodoro: a morte d'esse velho Mandarim idiota traz-lhe algibeira alguns milhares de contos. Pde desde esse momento dar pontaps nos poderes publicos: medite na intensidade d'este gozo! desde logo citado nos jornaes: reveja-se n'esse maximo da gloria humana! E agora note: s agarrar a campainha, e fazer ti-li-tin. Eu no sou um barbaro: comprehendo a repugnancia d'um gentleman em assassinar um contemporaneo: o espirrar do sangue suja vergonhosamente os punhos, e repulsivo o agonisar d'um corpo humano. Mas aqui, nenhum d'esses espectaculos torpes... como quem chama um criado... E so cento e cinco ou cento e seis mil contos; no me lembro, mas tenho-o nos meus apontamentos... [25]O Theodoro no duvda de mim. Sou um cavalheiro:provei-o, quando, fazendo a guerra a um tyranno na primeira insurreio da justia, me vi precipitado d'alturas que nem Vossa Senhoria concebe... Um trambulho consideravel, meu caro senhor! Grandes desgostos! O que me consola que o OUTRO est tambem muito abalado: porque, meu amigo, quando um Jehovah tem apenas contra si um Satanaz, tira-se bem de difficuldades mandando carregar mais uma legio d'archanjos; mas quando o inimigo o homem, armado d'uma penna de pato e d'um caderno de papel brancoest perdido... Emfim so seis mil contos. Vamos, Theodoro, ahi tem a campainha, seja um homem. Eu sei o que deve a si mesmo um christo. Se este personagem me tivesse [26]levado ao cume d'uma montanha na Palestina, por uma noite de lua cheia, e ahi, mostrando-me cidades, raas e imperios adormecidos, sombriamente me dissesse:Mata o Mandarim, e tudo o que vs em valle e collina ser teu,eu saberia replicar-lhe, seguindo um exemplo illustre, e erguendo o dedo s profundidades constelladas:O meu reino no d'este mundo! Eu conheo os meus authores. Mas eram cento e tantos mil contos, offerecidos luz d'uma vela de stearina, na travessa da Conceio, por um sujeito de chapo alto, apoiado a um guarda-chuva... Ento no hesitei. E, de mo firme, repeniquei a campainha. Foi talvez uma illuso; mas pareceu-me que um sino, de bocca to vasta como o mesmo co, badalava na escurido, atravs do Universo, n'um tom temeroso que decerto [27]foi acordar ses que faziam n-n e planetas panudos resonando sobre os seus eixos... O individuo levou um dedo palpebra, e limpando a lagrima que ennevora um instante o seu olho rutilante: Pobre Ti-Chin-F!... Morreu? Estava no seu jardim, socegado, armando, para o lanar ao ar, um papagaio de papel, no passatempo honesto d'um Mandarim retirado,quando o surprehendeu este ti-li-tin da campainha. Agora jaz beira d'um arroio cantante, todo vestido de sda amarella, morto, de pana ao ar, sobre a relva verde: e nos braos frios tem o seu papagaio de papel, que parece to morto como elle. manh so os funeraes. Que a sabedoria de Confucio, penetrando-o, ajude a bem emigrar a sua alma! [28] E o sujeito, erguendo-se, tirou respeitosamente o chapo, sahiu, com o seu guarda-chuva debaixo do brao. Ento, ao sentir bater a porta, afigurou-se-me que emergia d'um pesadlo. Saltei ao corredor. Uma voz jovial fallava com a Madame Marques; e a cancella da escada cerrou-se subtilmente. Quem que sahiu agora, D. Augusta?perguntei, n'um suor. Foi o Cabritinha que vai um bocadinho batota... Voltei ao quarto: tudo l repousava tranquillo, identico, real. O in-folio ainda estava aberto na pagina temerosa. Reli-a: agora parecia-me apenas a prosa antiquada d'um moralista caturra; cada palavra se tornra como um carvo apagado... Deitei-me:e sonhei que estava longe, para alm de Pekin, nas fronteiras [29]da Tartaria, no kosque d'um convento de Lamas, ouvindo maximas prudentes e suaves que escorriam, com um aroma fino de ch, dos labios de um Buddha vivo. II Decorreu um mez. Eu, no entanto, rotineiro e triste, l ia pondo o meu cursivo ao servio dos poderes publicos, e admirando aos domingos a pericia tocante com que a D. Augusta lavava a caspa do Couceiro. Era [32]agora evidente para mim que, n'essa noite, eu adormecera sobre o in-folio, e sonhra com uma Tentao da Montanha sob frmas familiares. Instinctivamente, porm, comecei a preoccupar-me com a China. Ia lr os telegrammas Havaneza; e o que o meu interesse l buscava, eram sempre as noticias do Imperio do Meio; parece porm que, a esse tempo, nada se passava na regio das raas amarellas... A Agencia Havas s tagarellava sobre a Herzegovina, a Bosnia, a Bulgaria e outras curiosidades barbaras.... Pouco a pouco fui esquecendo o meu episodio phantasmagorico: e ao mesmo tempo, como gradualmente o meu espirito reserenava, voltaram de novo a mover-se as antigas ambies que l habitavam,um ordenado de Director Geral, um seio amoroso de Lola, bifes [33]mais tenros que os da D. Augusta. Mas taes regalos pareciam-me to inaccessiveis, to nascidos do sonhocomo os proprios milhes do Mandarim. E pelo monotono deserto da vida,l foi seguindo, l foi marchando, a lenta caravana das minhas melancolias... Um domingo de agosto, de manh, estirado na cama em mangas de camisa, eu dormitava, com o cigarro apagado no labioquando a porta rangeu devagarinho, e entreabrindo a palpebra dormente, vi curvar-se ao meu lado uma calva respeitosa. E logo uma voz perturbada murmurou: O snr. Theodoro?... O snr. Theodoro do Ministerio do Reino?... Ergui-me lentamente sobre o cotovlo e respondi, n'um bocejo: Sou eu, cavalheiro. O individuo recurvou o espinhao: [34]assim na presena augusta d'el-rei Bobeche se arqua o cortezo... Era pequenino e obeso: a ponta das suias brancas roava-lhe as lapellas do fraque d'alpaca: veneraveis oculos d'oiro reluziam na sua face bochechuda, que parecia uma prospera personificao da Ordem: e todo elle tremia desde a calva, lustrosa at aos botns de bezerro. Pigarreou, cuspilhou, balbuciou: So noticias para vossa senhoria! Considerveis noticias! O meu nome Silvestre... Silvestre, Juliano & C.a... Um servial criado de vossa excellencia... Chegaram justamente pelo paquete de Southampton... Ns somos correspondentes de Brito, Alves & C.a de Macau... Correspondentes de Craig and Co d'Hong-Kong... As letras vem d'Hong-Kong... O sujeito engasgava-se; e a sua [35]mo gordinha agitava em tremuras um enveloppe repleto, com um sello de lacre negro. Vossa excellenciaproseguiuestava decerto prevenido... Ns que o no estavamos... A atrapalhao natural... O que esperamos que vossa excellencia nos conserve a sua benevolencia... Ns sempre respeitmos muito o caracter de vossa excellencia... Vossa excellencia n'esta terra uma flr de virtude, e espelho de bons! Aqui esto os primeiros saques sobre Bhering and Brothers de Londres... Letras a trinta dias sobre Rothschild... A este nome, resoante como o mesmo oiro, saltei vorazmente do leito. O que isso, senhor?gritei. E elle, gritando mais, brandindo o [36]enveloppe, todo alado no bico dos botins: So cento e seis mil contos, senhor! Cento e seis mil contos sobre Londres, Paris, Hamburgo e Amsterdam, sacados a seu favor, excellentissimo senhor!... A seu favor, excellentissimo senhor! Pelas casas de Hong-Kong, de Chang-Hai e de Canto, da herana depositada do Mandarim Ti-Chin-F!! Senti tremer o Globo sob os meus pse cerrei um momento os olhos. Mas comprehendi, n'um relance, que eu era, desde essa hora, como uma incarnao do Sobrenatural, recebendo d'elle a minha fora e possuindo os seus attributos. No podia comportar-me como um homem, nem desconsiderar-me em expanses humanas. At, para no quebrar a linha hieraticaabstive-me de [37]ir soluar, como m'o pedia a alma, sobre o vasto seio da Madame Marques... D'ora em diante cabia-me a impassibilidade d'um Deusou d'um Demonio: dei, com naturalidade, um puxo s calas, e disse a Silvestre, Juliano & C.a estas palavras: Est bem! O Mandarim... Esse Mandarim que disse portou-se com cavalheirismo. Eu sei de que se trata. uma questo de familia. Deixe ahi os papeis... Bons dias. Silvestre, Juliano & C.a retirou-se, s arrecuas, de dorso vergado e fronte voltada ao cho. Eu ento fui abrir, toda larga, a janella: e, dobrando para traz a cabea, respirei o ar calido, consoladamente, como uma cora canada... Depois olhei para baixo, para a rua, onde toda uma burguezia se escoava, [38]n'uma pacata sahida de missa, entre duas filas de trens. Fixei, aqui e alm, inconscientemente, algumas cuias de senhoras, alguns metaes brilhantes d'arreios. E de repente, veio-me esta ida, esta triumphante certezaque todas aquellas tipoias as podia eu tomar hora ou ao anno! Que nenhuma das mulheres que via, deixaria de me offerecer o seu seio n, a um aceno do meu desejo! Que todos esses homens, de sobrecasaca de domingo, se prostrariam diante de mim como diante de um Christo, de um Mahomet ou de um Buddha, se eu lhes sacudisse junto face cento e seis mil contos sobre as praas da Europa!... Apoiei-me varanda: e ri, com tedio, vendo a agitao ephemera d'aquella humanidade subalternaque se considerava livre e forte, em quanto por cima, [39]n'uma sacada de quarto andar, eu tinha na mo, n'um enveloppe lacrado de negro, o principio mesmo da sua fraqueza e da sua escravido!... Ento, satisfaes do Luxo, regalos do Amor, orgulhos do Poder, tudo gozei, pela imaginao, n'um instante, e d'um s srvo. Mas logo, uma grande saciedade me foi invadindo a alma: e sentindo o mundo aos meus psbocejei como um leo farto. De que me serviam por fim tantos milhes, seno para me trazerem, dia a dia, a affirmao desoladora da villeza humana?... E assim, ao choque de tanto oiro, ia desapparecer aos meus olhos como um fumo a belleza moral do Universo! Tomou-me uma tristeza mystica. Abati-me sobre uma cadeira; e, com a face entre as mos, chorei abundantemente. D'ahi a pouco a Madame Marques [40]abria a porta, toda vistosa nas suas sdas pretas. Est-se sua espera para jantar, enguio!... Emergi da minha amargura para lhe responder seccamente: No janto. Mais fica! N'esse momento estalavam foguetes ao longe. Lembrei-me que era domingo, dia de touros: de repente uma viso rebrilhou, flammejou, attrahindo-me deliciosamente:era a tourada vista d'um camarote; depois um jantar com Champagne; noite a orgia, como uma iniciao! Corri mesa. Atulhei as algibeiras de letras sobre Londres. Desci rua com um furor d'abutre fendendo o ar contra a presa. Uma caleche passava, vazia. Detive-a, berrei: Aos touros! [41] So dez tostes, meu amo! Encarei com repulso aquelle reles pedao de materia organisadaque fallava em placas de prata a um colosso d'oiro! Enterrei a mo na algibeira ajoujada de milhes, e tirei o meu metal: tinha setecentos e vinte! O cocheiro bateu a anca da egoa e seguiu, resmungando. Eu balbuciei: Mas tenho letras!... Aqui esto! Sobre Londres! Sobre Hamburgo!... No pga. Setecentos e vinte!... E touros, jantar de lord, andaluzas nuas, todo esse sonho expirou como uma bola de sabo que bate a ponta de um prego. Odiei a Humanidade, abominei o Numerario. Outra tipoia, lanada a trote, apinhada de gente festiva, quasi me atropellou n'aquella abstraco em que [42]eu ficra com os meus setecentos e vinte na palma da mo suada. Cabisbaixo, enchumaado de milhes sobre Rothschild, voltei ao meu quarto andar; humilhei-me Madame Marques, aceitei-lhe o bife corneo; e passei essa primeira noite de riqueza, bocejando sobre o leito solitario,em quanto fra o alegre Couceiro, o mesquinho tenente de quinze mil reis de soldo, ria com a D. Augusta, repenicando viola o Fado da Cotovia. Foi s na manh seguinte, ao fazer a barba, que reflecti sobre a origem dos meus milhes. Ella era evidentemente sobrenatural e suspeita. Mas como o meu Racionalismo me [43]impedia d'attribuir estes thesouros imprevistos generosidade caprichosa de Deus ou do Diabo, fices puramente escolasticas; como os fragmentos de Positivismo, que constituem o fundo da minha Philosophia, no me permittiam a indagao das causas primarias, das origens essenciaesbem depressa me decidi a aceitar seccamente este Phenomeno; e a utilisal-o com largueza. Portanto corri de quinzena ao vento para o London Brazlian Bank... Ahi, arremessei para cima do balco um papel sobre o Banco d'Inglaterra, de mil libras; e soltei esta deliciosa palavra: Oiro! Um caixeiro suggeriu-me com doura: Talvez lho fosse mais commodo em notas... [44] Repeti seccamente: Oiro! Atulhei as algibeiras, devagar, aos punhados: e na rua, ajoujado, icei-me para uma caleche. Senta-me gordo, sentia-me obeso; tinha na bocca um sabor d'oiro, uma seccura de p d'oiro na pelle das mos: as paredes das casas pareciam-me faiscar como longas laminas d'oiro: e dentro do cerebro ia-me um rumor surdo onde retilintavam metaescomo o movimento d'um oceano que nas vagas rolasse barras d'oiro. Abandonando-me oscillao das molas, rebolante como um odre mal firme, deixava cahir sobre a rua, sobre a gente, o olhar turvo e tedioso do sr repleto. Emfim, atirando o chapo para a nuca, estirando a perna, empinando o ventre, arrotei formidavelmente de flatulencia ricaa... [45] Muito tempo rolei assim pela cidade, bestialisado n'um gozo de Nababo. Subitamente um brusco appetite de gastar, de dissipar oiro, veio-me enfunar o peito como uma rajada que incha uma vla. Pra, animal!berrei, ao cocheiro. A parelha estacou. Procurei em redor com a palpebra meio cerrada alguma coisa cara a comprarjoia de rainha ou consciencia de estadista: nada vi; precipitei-me ento para um estanco. Charutos! de tosto! de cruzado! Mais caros! de dez tostes! Quantos?perguntou servilmente o homem. Todos!respondi, com brutalidade. porta, uma pobre toda de luto, com o filho encolhido ao seio, estendeu-me [46]a mo transparente. Incommodava-me procurar os trocos de cobre por entre os meus punhados d'oiro. Repelli-a, impaciente: e, de chapo sobre o olho, encarei friamente a turba. Foi ento que avistei, adiantando-se, o vulto ponderoso do meu Director Geral: immediatamente, achei-me com o dorso curvado em arco e o chapo comprimentador roando as lages. Era o habito da dependencia: os meus milhes no me tinham dado ainda a verticalidade espinha... Em casa despejei o oiro sobre o leito, e rolei-me por cima d'elle, muito tempo, grunhindo n'um gozo surdo. A torre, ao lado, bateu tres horas; e o sol apressado j descia, levando comsigo o meu primeiro dia de opulencia... Ento, couraado de libras, corri a saciar-me! [47] Ah, que dia! Jantei n'um gabinete do Hotel Central, solitario e egoista, com a mesa alastrada de Bordeus, Borgonha, Champagne, Rheno, licres de todas as communidades religiosascomo para matar uma sde de trinta annos! Mas s me fartei de Collares. Depois, cambaleando, arrastei-me para o Lupanar! Que noite! A alvorada clareou por traz das persianas; e achei-me estatelado no tapete, exhausto e semi-n, sentindo o corpo e a alma como esvarem-se, dissolverem-se n'aquelle ambiente abafado onde errava um cheiro de p de arroz, de fmea e de punch... Quando voltei travessa da Conceio, as janellas do meu quarto estavam fechadas, e a vla expirava, com fogachos lividos, no castial de lato. Ento ao chegar junto cama, vi isto: estirada de travs, sobre a coberta, jazia uma figura [48]bojuda, de Mandarim fulminado, vestida de sda amarella, com um grande rabicho solto; e entre os braos como morto tambem, tinha um papagaio de papel! Abri desesperadamente a janella: tudo desappareceu;o que estava agora sobre o leito era um velho paletot alvadio. III Ento comeou a minha vida de milionario. Deixei bem depressa a casa da Madame Marquesque, desde que me saba rico, me tratava todos os dias a arroz dce, e ella mesma me servia, com o seu vestido de sda dos domingos. [50]Comprei, habitei o palacete amarello, ao Loreto: as magnificencias da minha installao so bem conhecidas pelas gravuras indiscretas da Illustrao Franceza. Tornou-se famoso na Europa o meu leito, d'um gosto exuberante e barbaro, com a barra recoberta de laminas d'ouro lavrado, e cortinados d'um raro broc ......Buy Now (To Read More)

Product details

Ebook Number: 16384
Author: Queirós, Eça de
Release Date: Jul 29, 2005
Format: eBook
Language: Portuguese

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