Os Pobres

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Os Pobres - Precedido de uma Carta-Prefacio de Guerra Junqueiro Title: Os Pobres Subtitle: Precedido de uma...
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Os Pobres - Precedido de uma Carta-Prefacio de Guerra Junqueiro

Title: Os Pobres Subtitle: Precedido de uma Carta-Prefacio de Guerra Junqueiro Author: Raul Brando Release Date: March 17, 2007 [EBook #20841] Language: Portuguese Original Publication: , Lisboa: Empreza da Historia de Portugal Sociedade Editora Livraria Moderna, R. Augusta, 95 Typographia R. Ivens, 45 e 47 1906 Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal) Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) NOTA: Este texto tem uma verso em lngua portuguesa moderna, a que pode ser acederclicando na ligao: TEXT OS POBRES OBRAS DO AUCTOR A Arvore: I -- Historia d'um palhao. II -- Os pobres. III -- Raizes (em preparao). Romance: A Fara. Theatro: (De collaborao com Julio Brando) A noite de Natal, drama em 3 actos, representado no theatro de D. Maria II. RAUL BRANDO OS POBRES Precedido de uma CARTA-PREFACIO DE GUERRA JUNQUEIRO LISBOA EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL SOCIEDADE EDITORA Livraria Moderna, R. Augusta, 95 | Typographia R. Ivens, 45 e 47 1906 CARTA--PREFACIO Meu bom amigo: O seu livro a historia patetica d'uma alma. Qual? A do Gebo, a de Luiza, a de Sophia, a da Mouca, a dos Pobres emfim? No. A sua. Historias diversas, que se resumem n'uma historia unica: a da sua alma, transitando almas, a da sua vida, percorrendo vidas. Autobiografia espiritual, dilacerada e furiosa, demoniaca e santa, blasfemadora e divina. Confisso verdadeira, plena, absoluta d'um organismo que sente a musica mysteriosa do universo, d'um corao que repercute a dr eterna da natureza, mas que s ao cabo de oscilaes, duvidas e desanimos, coordena a idealidade do ser com as aparencias do ser, o espirito com as formas, o Deus,--amor e beatitude, com a materia,--crime e soffrimento. No vejo diante de mim um poema esteril, obra dos sentidos, da imaginao e da volupia. Vejo um acto profundo, [VI] espontaneo, d'imensidade religiosa. O homem que se confessa abala-me e deslumbra-me. No a confisso mentirosa, a confisso vulgar, da boca que tem dentes, para o ouvido que tem sombras. No a confisso-analise, a confisso dos criticos, rol de inteligencia, catalogo de ideias. Mas a esplendida confisso das almas vertiginosas, desagregando-se, transidas de eternidade e de mysterio. Como o fogo devorador dissocia o rochedo, ha lavaredas ignotas que dissociam as almas. E, se taes almas se desdobram, a natureza denuncia-se. O homem um resumo ideal da natureza. Andou o infinito, e lembra-se; andar o infinito, e j o sonha. Quando o genio explue, conta-nos a natureza a sua historia. O genio supremo o santo. O verbo do santo, eis a lingua clara do universo. As confisses augustas so as dos poetas e dos santos. No homem vulgar a personalidade rigida encarcera e coalha as personalidades volateis e difusas. O inconsciente imenso no acorda, porque est, como um aroma, dentro d'um bloco duro, impenetravel. o sonho captivo n'um ovo hermetico de bronse. As almas emotivas dos grandes visionarios, essas conservam aquella graa radiante, aquella omnipresena espiritual, que as deixa embeber, mover, existir na fraternidade cosmica e divina. O sonhador dos Pobres um evocador atormentado e religioso. Busquei no seu livro a imagem ardente da sua alma. Vamos vr se a desenho com rapidez e preciso. Alma vibratil e fugaz, olhando a natureza, o que sentiu? Assombro, esplendor, pavor, enigma, deslumbramento. Tudo vive, deseja, estremece, palpita, murmura [VII] e sonha. Tudo vive, tudo vive: o homem, a fra, a rocha, o lodo, a agua, o ar, braseiros de mundos, aluvies de nebulosas, incorporeidade genesica do ether. Fervedoiro de vidas insondavel, que o tempo no exgota, porque a morte creadora continuamente o desorganisa e reproduz em formas novas e diversas. E todas se cruzam, beijam, penetram, correspondem. uma teia vertiginosa de fios sem fim, de fios moveis, ondeantes, cambeantes, urdindo-se ella mesma, na eternidade impenetravel, sem ninguem ver o tecelo. Rigidez, solidez, inercia, no existem. Na fraga mais dura, no bronse mais compacto circulam desejos, dramas, turbilhes de moleculas e vontades. As cordilheiras inabalaveis so redemoinhos dentro de enxovias. O concreto dilue-se, o material evapora-se. O sol tombando, aniquilaria cardumes de planetas, e a lua do sol, que sol volatilisado, pesa menos que uma folha de rosa na mo d'uma creana. Em cada bloco metalico latejam oceanos dormentes, de vagas fluidas, invisiveis. Acordem-n'os, e o bloco obtuso, electrisado, irradia no ether. Vde um penedo monstruoso: Parece firme. Desagregou-se, e lama; a raz tocou-lhe e seiva; a seiva gerou, e flor e fructo; o fructo, alimento; o alimento sangue; e o sangue vermelho, corpo que caminha, carne que fala, cerebro que pensa. Natureza! universo!... Vidas infindaveis eternamente circulando n'uma vida unica. Assombro, esplendor, pavor, deslumbramento! O homem vacila, desmaia, quer equilibrar-se... mas onde, se no ha terra em que poise, nem muro a que se encoste?! Tudo impalpavel, fugaz, incerto, ilusorio, ilimitado... tudo vida, tudo sonho, tudo voragem... Se baixa [VIII] os olhos do imenso ao gro d'areia, o gro d'areia, infinitessimo, resolve-se-lhe em vidas infinitas. Quer contemple o universo, quer examine um corpusculo, a alma engolfa-se, estonteada, no mesmo abismo devorador e creador. Abismo de aparencias ocultas, abismo de vozes que se no ouvem. A natureza taciturna exprime-se magicamente, em linguas vagas, silenciosas. E quando n'um pouco de cisco murmuram mais vontades do que bocas humanas ha na terra, o que no dir o coloquio formidando de todas as vontades do universo! Tem cada organismo a sua lingua peculiar. Os que vivem mais proximos entendem-se melhor. O ar segreda agua, a raiz ao lodo, a luz folha, o polen ao ovario. Ha fluidos que se casam, raizes que se querem bem. O oxigenio intimo do ferro, o azougue intimo do ouro. Os orbes fraternisam, os metaes amalgamam-se, e as electricidades sexuadas buscam-se avidamente, para copular! Materia infinita,--foras infinitas, infinitamente caminhando. E no pelago vertiginoso da mobilidade universal cada atomo invisivel um desejo que nasce, um desejo que sente, um desejo que fala... O lexicon sem principio nem fim, das vozes mudas do increado, das linguas tacitas da natureza, alguem o ouviu que se recorde? Alguem: o homem. O homem, crisalida do anjo, foi monstro e planta e verme e rocha e onda; foi nebulosa, foi gaz impalpavel, foi ether invisivel. Articulou todas as linguas, e d'ellas conserva, obscuramente, vagas memorias dormitando. Por isso os poetas adivinham, e raros com a intuio prodigiosa do meu amigo. [IX] Abreviando: A sua alma, diante do universo, reagiu por tres formas ou em tres fases emotivas. Estudei a primeira,--a emoo dinamica. O mundo resolve se lhe n'um jogo de foras, n'um conflicto de vontades, brigando, casando-se, transfigurando-se em aparencias rapidas, ilusorias. Tudo se move, tudo quer e tudo vive. Mas o que a vida? Chega segunda fase. Deslisa da emoo dinamica emoo moral. Depois de ver o mundo atravez dos sentidos, julga-o atravez da raso e da consciencia. O que a vida? A vida o mal. A expresso ultima da vida terrestre a vida humana, e a vida dos homens cifra-se n'uma batalha inexoravel de apetites, n'um tumulto desordenado de egoismos, que se entrechocam, rasgam, dilaceram. O Progresso, marca-o a distancia que vae do salto do tigre, que de dez metros, ao curso da bala, que de vinte kilometros. A fera, a dez passos, perturba-nos. O homem, a quatro leguas, enche-nos de terror. O homem a fera dilatada. Nunca os abismos das ondas pariram monstro equivalente ao navio de guerra, com as escamas d'ao, os intestinos de bronse, o olhar de relampagos, e as bocas hiantes, pavorosas, rugindo metralha, mastigando lavaredas, vomitando morte. A pata prehistorica do atlantosauro esmagava o rochedo. As dinamites do chimico estoiram montanhas, como nozes. Se a preza do mastodonte escavacava um cedro, o canho Krup rebenta baluartes e trincheiras. Uma vibora envenena um homem, mas um homem, sosinho, arraza uma capital. [X] Os grandes monstros no chegam verdadeiramente na epoca secundaria; aparecem na ultima, com o homem. Ao p d'um Napoleo um megalosauro uma formiga. Os lobos da velha Europa trucidam algumas duzias de viandantes, emquanto milhes e milhes de miseraveis cahem de fome e de abandono, sacrificados soberba dos principes, mentira dos padres e gula devoradora da burguezia christ e democratica. O matadoiro a formula crua da sociedade em que vivemos. Uns nascem para rezes, outros para verdugos. Uns jantam, outros so jantados. Ha creaturas lobregas, vestidas de trapos, minando montes, e creaturas esplendidas, cobertas d'oiro e de veludo, radiando ao sol. No cofre do banqueiro dormem pobresas metalisadas. Ha homens que ceiam n'uma noite um bairro funebre de mendigos. Enfeitam gargantas de cortesans rosarios d'esmeraldas e diamantes, bem mais sinistros e lutuosos que rosarios de craneos ao peito de selvagens. Vivem quadrupedes em estrebarias de marmore, e agonisam parias em alfurjas infectas, roidos de vermes. A latrina de Vanderbilt custou aldeolas de miseraveis. E, visto os palacios devorarem pocilgas, todo o boulevard grandioso reclama um quartel, um carcere e uma forca. O deus milho no digere sem a guilhotina de sentinella. Os homens repartem o globo, como os abutres o carneiro. Maior abutre, maior quinho. Homens que tm imperios, e homens que no tm lar. Os ps mimosos das princezas deslizam lusentes d'oiro por alfombras, e os ps vagabundos calcam, sangrando, [XI] rochedos hirtos e matagaes. Bebem champagne alguns cavalos do sport, usam anneis de brilhantes alguns ces de regao, e algumas creaturas, por falta d'uma codea, acendem fogareiros para morrer. Bemdito o oxido de carbone, que exhala paz e esquecimento! E a natureza, insensivel ao drama barbaro do homem! Guerras, odios, crimes, tiranias, hecatombes, desastres, iniquidades, deixam-na to indiferente e inconsciente, como o rochedo imovel, bulindo-lhe a asa d'uma vespa. O clamor atroador de todas as angustias no arranca um ai da imensidade inexoravel. A aurora sorri com o mesmo esplendor aos campos de batalha ou ao bero infantil, e as hervas gulosas no distinguem a podrido de Locusta da podrido de Joana d'Arc. Reguem vergeis com sangue de Iscariote ou com sangue de Christo, e os lyrios inocentes (estranha inocencia!) desabrocharo, egualmente candidos e nevados. A humanidade, emfim, a victoria dos arrogantes sobre os humildes, dos fortes sobre os debeis, da besta sobre o anjo. E tendo de escolher entre vencidos e vencedores, entre o amor e o odio, o mal e o bem, o riso e as lagrimas, o seu corao misericordioso de poeta inclinou-se espontaneamente para a Dor, como as vergonteas para a luz. A dr o seu deleite. Busca-a, desejo febril!--por hospitaes, por cadeias, por antros, por alcoices. Fareja-a de noite nos bairros leprosos, cloacas de humanidade, vasadoiros d'almas, onde crimes, virtudes, vicios, angustias, raivas, desesperos, fermentam promiscuamente, aglomerados e abandonados, como esterqueiras, como entulhos. Pesquisa dedalos caliginosos, cafurnas [XII] sem fundo, abismos hiantes, boqueires de sombra. Explora desvos, trapeiras, minas, covas, esconderijos. Louco de piedade, engolfa-se nas trevas mudas e soturnas, que gotejam sangue, nas roucas escurides tumultuosas, pavidas de gemidos, cortadas de clamores, anavalhadas de blasfemias. E do amago d'essas noites insondaveis pululam turbas espectraes de crucificados, hordas de monstros, bandos de miserias, cardumes de abominaes e de agonias. Ullulam tropeis disformes e sangrentos, regougam fauces patibulares, choram, coroadas de ulceras, Magdalenas lividas, bocas de escarneo crocitam sem dentes e sem pudor, arquejam ralas estorturantes, gemem creanas vagabundas, tossem tisicos, ardem febres, lusem gangrenas e podrides... E tudo vago, indistincto, confuso, n'um rumor longo e subterraneo. No se destacam, no se desenham as formas. Olhos, bocas, gestos, relampeando na sombra... Nada mais. A sombra voraz esbate as linhas e os contornos. o mundo cahotico da miseria, que a noite putrida gerou e a noite soturna ha-de engulir... o seu mundo, o mundo dos pobres, meu grande visionario, quasi desconhecido e genial. Homens de gosto colecionam quadros ou estatuas. O meu amigo coleciona dr. No em galerias ou museus, como quem se dedica ao estudo biologico das varias formas de sofrer. Quando uma chaga aterradora o surprehende, no a invasilha n'um frasco, guarda-a no corao. Conta-lhe os ais, no os microbios. Em vez de a analisar, decompondo-a, analisa-a beijando-a. No seu [XIII] laboratorio chimico existe apenas um reagente, que dissolve tudo: lagrimas. O poeta dos Pobres no um romancista. A alma do evocador fluidicamente se desagrega nas almas de sonho que elle evoca. Dir-se-hiam espelhos, brancos, verdes ou azues, planos, concavos ou convexos, reflectindo todos elles um unico semblante, que julgamos distinto, porque aparece deformado. Chamei aos Pobres uma confisso religiosa. No ha duvida. Os seus pobres, meu amigo, so bocas de vises, articulando a alma d'um vidente. Falam a sua lingua e contam-nos a sua historia. No a historia, no minuto e na rua, do homem-sicrano, mas a historia, no espao e no tempo, do homem infinito, que vem de Deus e para Deus caminha. No drama dos Pobres ha duzias de actores e um s personagem: o dramaturgo. As suas figuras no constituem individualidades reaes, caracteres verosimeis, logicamente architetados e definidos pelas inumeras causas de existencia, conglobados em duas ordens genericas,--a herana e o meio. Os seus ladres, assassinos e meretrises, no roubam, no matam, no copulam: sofrem. Sofrer, eis o seu mister. Mouca, Luiza, Gebo, Golim,--pseudonimos. O nome real, o nome verdadeiro de todos elles um s: a Dr. Inevitavel. Desde que o meu amigo rasgou as mascaras enganadoras ao Universo, para lhe descobrir a essencia e natureza intima, e desde que a lei do Universo o predominio do mais feroz e do mais forte, toda a imensa humanidade, tumultuosa e vria, se resume logicamente em dois homens apenas: o algoz [XIV] e a vitima, o homem que sofre e o homem que faz sofrer. Os bons so os que padecem. A miseria, mesmo sinistra e delinquente, j um principio de virtude. Nenhum dos ladres, nenhuma das prostitutas do seu poema resvalaram ao vicio ou ao crime por vontade propria, por fatalidade fisiologica. Obrigou-os a fome, calcou-os a injustia. A sua infamia e a sua ignominia a avareza ou a luxuria dos homens opulentos e devassos. Todos os ricos, ainda os caridosos, so perversos, e todos os miseraveis, ainda roubando ou esfaqueando, so creaturas boas, porque so vitimas dos primeiros. Os retratos dos bemfeitores do seu hospicio (pag. 59) parecem-lhe uma galeria de afogados, todos solemnes, ricos e maldosos, hirtos, de labios finos e ar de cerimonia. E as alfurjas, cadeias e prostibulos, onde se amontoam, n'um horror tenebroso, os vicios alucinados e os crimes exorbitantes, afiguram-se-lhe imaginao misericordiosa como templos de angustias, santuarios sagrados de tribulaes e de martirios. um flos-sanctorum da miseria, a dor do enxurro canonisada e sublimada. Mas se a lei da natureza iniqua e feroz, visto os maus triunfarem e os bons sucumbirem, d'onde vem essa lei, quem a gerou, quem a impoz ao universo? Quer a creasse, com o universo, uma vontade alheia, quer ella seja imanente ao universo infinito, , nos dois casos, uma lei monstruosa, negadora da suprema ideia do espirito do homem, a ideia do bem e da justia. Contradio inexplicavel: A natureza iniquidade, porque a lei que a rege assegura o predominio e a sobrevivencia do mais forte. Mas quem me leva a dizer que [XV] a natureza iniqua? O sentimento do bem e da justia, desenraisavel do meu corao e do meu cerebro. Logo existe tambem na natureza, pois que eu sou natureza, a lei do amor e da justia, contraposta lei da fora e da violencia. Se Christo morreu na cruz, a natureza o mal. Mas sendo a natureza o mal, como que d'ella nasceu o mesmo Christo, afirmao de todo o bem? A ideia do bem e da perfeio, levada ao infinito, a ideia de Deus. Mas como hamornisar o absoluto perfeito com a natureza imperfeita? Como fazer sahir a diversidade da identidade, o complexo do simples, o mal do bem, o universo de Deus? Chegamos terceira e ultima fase do seu espirito: fase religiosa, emoo divina. A natureza desagregada em movimento, traduziu-se-lhe em dr e resolveu-se lhe em amor. Movimento infinito, dr infinita, amor infinito, eis os tres rostos da natureza no espelho cada vez mais profundo da sua consciencia, nos olhos cada vez mais abertos da sua alma. O dinamismo atomico do universo reduziu-o,--pavorosa sinteze!-- dr sem fim, dr universal. Viver sofrer, e tudo vive, tudo sofre. Vida infinita egual dr eterna, eis a equao matematica da natureza. Pandiabolismo, satanaz-universo. Um circulo infernal, hermeticamente inexoravel. No ha, pois, evasiva? Ha. D'esse inferno sobe uma escada de chamas tenebrosas, que vae ao purgatorio, e do purgatorio uma espiral de luz radiante, que nos leva ao co. A dr, que se lhe afigurou a essencia intima da vida e sua unica expresso, no era, ao cabo, o substracto ultimo da natureza, o fundo [XVI] irredutivel do universo. A dr no era irredutivel. A alma, vencendo-a, converteu-a em amor. No ha bellesa esplendente, que no fosse dr caliginosa. A flor a dr da raiz, a lua a dr das estrellas, e a virtude ou o genio a dor ascendente do ether luminoso, cristalisando no homem, ao fim de um calvario inenarravel de milhes e milhes de seculos sem conta. A alma de Jesus proclama o triunfo da santidade sobre o crime, como o corpo de Venus entoa a victoria da linha viva e musical sobre a linha inerte, a linha brta e desharmonica. Bellesa de essencia ou bellesa de aparencia, virtude de Jesus ou formosura de Venus, tem, ancestralmente, a inicial-as o mesmo horror e a mesma imperfeio. Do verbo odiar nasceu, evolutivamente, o verbo amar. Se o homem foi tigre, o beijo foi dentada. Toda a alegria vem do amor, e todo o amor do sofrimento. A alegria o sofrimento amoroso, o sofrimento espiritualisado. Deus , pois, o amor infinito, vencendo infinitamente a infinita dr. E, vencendo a infinita dr, elle a infinita alegria, a paz absoluta, a gloria eterna, a bemaventurana ilimitada. Deus sustenta-se realmente, como diz o meu amigo, do sofrimento universal. Nos meus Ensaios Espirituaes, ainda ineditos, eu exprimo inumeras vezes a mesma ideia. Quer vr? Destaco uma pagina: S a dor infinita produz o amor absoluto. Deus, amor absoluto, sustenta-se do sofrimento do universo. uma luz eterna, alimentada por um incendio eterno. Deus, amor absoluto, projeta-se em dr [XVII] infinita da natureza. Para ser a perfeio absoluta, encarnou se na imperfeio ilimitada do universo. Deus no se comprehende sem universo. O perfeito vive do imperfeito, como a chama vive do combustivel. O mal a condio do bem, o erro a condio da verdade, o crime a condio da virtude. O santo santo, porque venceu o demonio. Sem o demonio, o santo no se comprehende. Sem universo imperfeito no ha Deus perfeito. Satanaz uma das faces de Deus. Mais ainda: Satanaz o corpo de Deus. Deus Deus, isto infinita perfeio, infinito amor, porque vence eternamente infinitas imperfeies e infinitas dres. Deus a completa affirmao do Bem, pela completa e continua victoria sobre o mal. No instante em que o mal acabasse, acabava Deus. Deus no ida, pensando-se infinitamente: acto infinito, amor infinito, a realisar-se pela infinita vontade na durao infinita. Eliminando o imperfeito, o perfeito evapora-se. Destruindo o relativo, destruireis o absoluto: o absoluto que fica o absoluto no-ser. O infinito amor de semelhante Deus seria o infinito amor de si proprio, o infinito egoismo. como se quizessemos resumir a infinidade dos numeros em um numero unico, infinito, eterno, inalteravel, o numero absoluto perfeito, e realizassemos a sinteze da infinidade numerica no absoluto do zero. Tudo egual a nada. No! Deus infinito amor, esforo infinito, actividade infinita. O universo o corpo de Deus, a carne de Deus. Deus absolutamente perfeito na diversidade infinita, porque sem essa diversidade infinita no ha, nem pde haver, a unio suprema. Mas a sinteze da vida irrealisavel na ideia de numero e quantidade, na ideia concreta de [XVIII] materia. S na ordem moral se unifica absolutamente a vida varia do universo. As quantidades, traduzidas em imperfeies, os numeros traduzidos em egoismos, so reductiveis ao absoluto na ideia unica d'amor. Ahi o imperfeito torna-se a condio matematica do perfeito. Deus, amor absoluto, vive e sustenta se dos egoismos infinitos, continuamente evolucionando para elle. Deus, beatitude eterna, vive e sustenta-se das dres infinitas do universo. Deus como corpo, como natureza, sofre infinitamente; mas Deus, espirito puro, Deus, amor absoluto, no sente dr, nem sofrimento. a bemaventurana e a gloria eterna, porque eternamente triunfa dos sofrimentos eternos do seu corpo. O santo verdadeiro d-nos a imagem palida de Deus. Deus o santo perfeito, o Christo absoluto e universal. Adoramos, pois, o mesmo Deus, unificamos a vida na mesma sinteze. Mas o auctor dos Pobres no desvendou, ideologicamente, abstractamente, o segredo da natureza, a explicao religiosa e intima da vida universal. No a estudou como filosofo, descarnando-a, dissecando-a, at lhe descobrir as leis inalteraveis e reconditas da sua estructura evolutiva. No fez do cerebro um instrumento de viso, agudo e claro, gelido e penetrante, com elle interrogando, dia a dia, no sorvedoiro cosmico, o borbulhar infinitiforme da existencia. No mediu a vida a compasso, no a formulou em theoremas ou equaes. Viveu-a. O seu livro no a historia dialetica da razo d'um homem, sistematisando e codificando a natureza. No a historia d'um encefalo, desdobrada em ideias. a historia d'um homem, [XIX] a historia plena e formidavel d'um organismo inteiro,--da carne e dos ossos, do sangue e das lagrimas, das mos que abenoam e que destroem, dos olhos que choram e que fulminam, da boca que resa e que tritura, da alma do lobo, que vem de Satanaz, da alma do anjo que se encaminha para Deus. Sim, a historia universal d'um homem, gemida e rugida, furiosa e candida, no para que o mundo lha oua (ento seria hipocrita) mas para que Deus lha escute, na eternidade e no silencio. a confisso clamorosa, satanica ou celeste, das energias infinitas, evolutivamente amalgamadas e condensadas no misterio pavido d'um homem. O abismo insondavel, retrahindo-se, cristalisou n'um ponto; e esse ponto, adquirindo voz, confessou o abismo, revelou o insondavel. Almas inumeras se agrupam na alma sintetica e central. Ha em cada alma infinidades d'almas. E umas to horriveis e loucas, que as escondemos para que as no vejam, e outras to inconscientes e profundas, que, habitando comnosco, as no chegamos sequer a conhecer. O poeta dos Pobres conheceu-as e confessou-as todas. Desde a mais clara mais crepuscular e tenebrosa, irradiou-as todas plenamente, no estado nascente, ingenuas e vivas, sem occultar uma unica. O seu Deus no o ultimo termo d'uma cadeia logica de silogismos. No o descobre pela razo, atinge-o pela emoo. O meu amigo no raciocina, isoladamente, com o encefalo. Raciocina de chofre e com todo o corpo. As ideias brotam-lhe espontaneas, como o sangue da facada ou a flor da haste. Palpitam de vida, mas vida viva,--no estado genesico. No falam, [XX] no discursam, no discorrem. Gritam, uivam, ululam, gemem, resam, blasfemam. Ciclones d'ais, de oraes, de imprecaes, de furias, de lamentos. O meu amigo pensa, forma juizos, como as eletricidades formam raios. O seu Deus a expresso da sua emotividade. Ou, bem no fundo, da sua moralidade. S cr em Deus, s descobre Deus, quando em si, pela virtude, momentaneamente o realisa, ou tenta realisar. Se a bondade e a paz lhe existem no corao, a natureza resolve se-lhe em Deus, em amor supremo. Mas, d'ahi a instantes, o egoismo invade-o, e no j em Deus, na chimica, que a explicao do mundo lhe apparece. Qual a fonte do ser, a raso da vida? o acaso, o apetite, o amor, Deus ou Satanaz, conforme as horas ou os dias conforme o equilibrio instavel da sua carne e do seu espirito. Logo de comeo, a paginas 29 e 30, define Deus abrazadoramente n'uma lingua de chamas, n'um paroxismo de dor e de misericordia, n'um extase candente e lagrimoso, to fervido e to lucido, que arrebata e deslumbra. Fulgiu-lhe subito, no amago da alma, a verdade da vida. A vida um calvario. Sbe-se ao amor pela dr, redempo pelo sofrimento. Christo um redemptor humano, Deus o redemptor universal. o ser infinito, porque o amor ilimitado. E a natureza tenebrosa, vista de Deus, divinisou-se por encanto. Guerras, lutas, crimes, catastrofes, desordens, evaporam se e fundem-se em harmonia magica e perfeita. Mas logo adiante, a paginas 42, a natureza, divinisada, reverte e regressa sua forma demoniaca, de materia bruta. [XXI] Ser s, sem amigos, sem apertos de mo, sem conhecidos, ser s e livre, que sonho! Do altruismo absoluto, do absoluto amor, que Deus, retrogradou ao individualismo anarquista, ao egoismo feroz, que Satanaz. Do polo positivo saltou ao polo negativo. Entre os dois polos, entre o bem e o mal, entre Deus e o Diabo, vae oscilar e flutuar a sua alma, ora aproximando-se de um, ora aproximando-se do outro, ora imobilisando-se quasi, pelo hausto indutivo das duas correntes antagonicas. Tal um Christo, penosa e religiosamente escalando o calvario, e que, a meio da encosta, varado de dr, esvahido o animo e evolada a f, arrojasse a cruz dos hombros, exclamando n'um impeto: Basta! Se o caminho do co um martirio abrupto, uma inferneira ingreme, desisto do co e volto para traz para o conchego do meu lar, para a ternura de minha me, para o afecto dos meus parentes e meus irmos. Antes risonho e feliz, junto do meu pae humano, que carpinteiro, a aplainarmos cruzes, do que, morto e crucificado, na gloria infinita do meu divino Pae celestial! E assim blasfemando, retrocederia na encosta do sofrimento e da amargura, para j l no fundo, voltar a subil-a novamente, a cruz nos hombros, com maior f e maior ancia. O seu poema a historia da escalada tragica do seu calvario. Mil vezes o meu amigo tomou nos hombros a cruz da dr e da paixo, e outras tantas a deixou cahir, exhausto, com ais de desanimo, ou a sacudiu exasperado, cuspindo invectivas no lenho duro do resgate. Mas por fim, sangrando e chorando, galgou a [XXII] montanha do erro e do sofrimento. Chegou a Deus, e em Deus ficaram imoveis e serenos os olhos tristes da sua alma. Polarisou-se em Deus, de vez e de vontade. Livre, emfim! Libertou-se. No volte servido, escravatura negra e demoniaca. Mantendo-se liberto, a obra d'hoje, patetica, mas angustiosa e desigual, a obras futuras, vastas, claras e radiantes, servir de entrada e de prefacio. A arte vale mais ou menos, segundo a poro de amor que abrange e que revela. A arte soberana a que conjuga a natureza toda,--homens e monstros, aguas e arvores, pedras e nuvens, soes e nebulosas, com o verbo infinito e perfeito, o unico verbo creador, que o verbo amar. O universo atomico, particulas inumeras e vagabundas, fraternisa em Deus, unificado n'uma s alma e n'um s corpo. Resar o universo polarisal-o no infinito amor. Cantar no basta. Resar mais. Resar o superlativo divino de cantar. A orao a cano angelisada, a cano chorada e de mos postas. O universo absorve a, comprehende-a. Ouve-a Deus, os homens escutam-na, e as ondas, as aguas e os rochedos, vagamente a percebem, como um halito amigo, uma caricia branda e luminosa. Rese todas as dres, pobresas, miserias, lutos, soffrimentos. Rese o lodo e o sangue, o ninho, o covil, o hospital, o carcere, a enxovia, a terra tragica, ulcerada de mortes, e a noite concava e funebre, ulcerada de soes e de nebulosas. Rese a dr, mas rese tambem a alegria, que dr vencida e desbaratada pelo amor. Rese o triunfo do amor, a alegria ascendente da natureza, a marcha pica da vida pelo caminho [XXIII] eterno, que no tem fim. Rese chorando, mas lagrimas fecundas, que faam parir a terra, palpitar o seio e germinar a semente. Lagrimas d'aurora, orvalho vivo e creador. Resar e chorar, mas heroicamente, na aco e na luta, no mundo e para o mundo. Resar, como Nuno Alvares, entre o fogo ardente da batalha. Enganam-se os que vo para Deus, voltando as costas natureza. Quem se quizer salvar, ha de salvar os outros. Quem renegar a natureza, renega Deus. A ascese egoista, eis o atheismo verdadeiro. A imobilidade sacrilega, a escurido sacrilega, o silencio sacrilego. A vida som, luz, movimento. A vida marcha por abismos, tragica e formidavel, mas ruidosa e simfonica, vestida de luz e de mil cres. Amortalhal-a de negro, arrancar-lhe a lingua, para que no cante, e os olhos, para que no deslumbre e no dardeje, como se lhe cravassemos no corao uma facada sinistra. O quietismo beato, apagando o universo, apaga Deus. Quietismo e nihilismo,--dois zeros, dois sinonimos. O frade catolico, na concha da mo, exangue e paralitica, sustenta uma caveira. o nada olhando o no ser. O monge ideal, na dextra poderosa, em vez da caveira, tem um globo d'oiro constelado. Tem o universo. o monge futuro. Seja elle o tipo a que se encaminhe, embora de longe, a nossa f e a nossa arte. Resemos, vivificando e sublimando. Arte creadora, que seja po e seja luz. Se nos acusarem de hipocritas, deixal-os accusar; mentem. E a mentira s aos mentirosos prejudica. Se nos amesquinharem a fama e cercearem a gloria, desviando de ns as multides, que no pensam e vo para [XXIV] onde as levam, melhor. Os que nos querem, os que nos amam, os que nos entendem, ficaro comnosco. Os outros, deixando-nos, prestam-nos favor. Lezam-nos smente na vaidade, que vicio ruim, grama que custa a deitar fra. Portanto, melhor. E se nos insultarem e injuriarem, melhor. E se nos perseguirem, melhor. E se nos apedrejarem e ensanguentarem, melhor ainda, muito melhor. Quando a alma, ao termo de mil hesitaes e desenganos, cravou as raizes para sempre n'um ideal de amor e de verdade, pdem calcal-a e tortural-a, pdem-na ferir e ensanguentar, que quanto mais a calcam, mais ella penetra no ideal que busca, mais ella se entranha no seio ardente que deseja. Seu amigo e camarada cordealissimo 1902.3 Guerra Junqueiro. OS POBRES I O ENXURRO Vem o inverno e os montes pedregosos, as arvores despidas, a natureza inteira envolve-se n'uma grande nuvem humida que tudo abafa e penetra. As coisas dil-as-hieis recolhidas e scismaticas. como um rlo mysterioso e profundo que vem d'um mar desconhecido. E a chuva comea. um ruido dce o da chuva. Faz sonhar em tantas coisas idas e tristes! Primeiro a terra imbebe-se e incha. E, depois de cheia, a torrente jorra at polir as pedras: ara na terra, pe raizes mostra, arrasta n'alluvio o humus, as folhas seccas das arvores, os cadaveres dos bichos, os detrictos desagregados das rochas, que rola juntos, dispersa e reune, atira, entre a baba da agua, para um destino ignoto. Assim a vida. um rio de lagrimas, de brados, de mysterio. A onda turva pe as mais fundas raizes [2] mostra, a torrente leva comsigo de roldo a desgraa e o riso; sem cessar carreia este terrio humano para uma praia, onde as mos esqualidas dos que soffreram encontram emfim a mo que os ampara, onde os olhos dos pobres, que se fartaram de chorar, ficam attonitos diante da madrugada eterna, onde todo o sonho se converte em realidade... Vde... noite. A ventania redobra e nas lufadas que passam viajam gritos, catastrophes, lamentos. Sou pobre e transido e nada sei da vida, mas sou um principe. De que terra? direis.--Do sonho. E assim n'este predio revolvido me qudo, ssinho e triste, a escutar... Ouo um rio que os mais no sentem. Cada cre ......Buy Now (To Read More)

Product details

Ebook Number: 20841
Author: Brandão, Raul
Release Date: Mar 17, 2007
Format: eBook
Language: Portuguese
Publisher: Empreza da Historia de Portugal Sociedade Editora Livraria Moderna, R. Augusta, 95 Typographia R. Ivens
Publication Date: 1906

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