A correspondência de Fradique Mendes

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Author: Queirós, Eça de,1845-1900
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A correspondência de Fradique Mendes

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Author: Queirós, Eça de,1845-1900
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A correspondência de Fradique Mendes - memórias e notas

Title: A correspondncia de Fradique Mendes Subtitle: memrias e notas Author: Ea de Queirs Release Date: December 27, 2008 [EBook #27637] Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) A CORRESPONDENCIA DE Fradique Mendes Obras do mesmo auctor: Revista de Portugal. 4 grossos volumes 12$000 As Minas de Salomo. 1 volume 600 Os Maias. 2 grossos volumes 2$000 O Crime do Padre Amaro. Terceira edio inteiramente refundida, recomposta e differente na frma e na aco da edio primitiva. 1 grosso volume 1$200 O Primo Bazilio. Terceira edio. 1 grosso volume 1$000 A Reliquia. 1 grosso volume 1$000 O Mandarim. Quarta edio. 1 volume 500 A Illustre Casa de Ramires. 1 volume 1$000 No prelo: A Cidade e as Serras. Ea de Queiroz A CORRESPONDENCIA DE FRADIQUE MENDES (MEMORIAS E NOTAS) PORTO LIVRARIA CHARDRON De Lello & Irmo, editores 1900 Pertence no Brazil o direito de propriedade d'esta obra ao cidado Francisco Alves, livreiro editor no Rio de Janeiro, que para a garantia que lhe offerece a lei n. 496 de 1 d'Agosto de 1898, fez o competente deposito na Bibliotheca nacional, segundo a determinao do art. 13. da mesma Lei. PortoImprensa Moderna A CORRESPONDENCIA DE FRADIQUE MENDES FRADIQUE MENDES (MEMORIAS E NOTAS) I A minha intimidade com Fradique Mendes comeou em 1880, em Paris, pela Paschoa,justamente na semana em que elle regressra da sua viagem Africa Austral. O meu conhecimento porm com esse homem admiravel datava de Lisboa, do anno remoto de 1867. Foi no vero d'esse anno, uma tarde, no caf Martinho, que encontrei, n'um numero j amarrotado da Revoluo de Setembro, este nome de C. Fradique Mendes, em letras enormes, por baixo de versos que me maravilharam. Os themas (os motivos emocionaes, como ns diziamos em 1867) d'essas cinco ou seis poesias, reunidas em folhetim sob o titulo de Lapidarias, tinham logo para mim uma originalidade captivante e bemvinda. Era o tempo em que eu e os [2] meus camaradas de Cenaculo, deslumbrados pelo Lyrismo Epico da Lgende des Sicles, o livro que um grande vento nos trouxera de Guerneseydecidiramos abominar e combater a rijos brados o Lyrismo Intimo, que, enclausurado nas duas pollegadas do corao, no comprehendendo d'entre todos os rumores do Universo seno o rumor das saias d'Elvira, tornava a Poesia, sobretudo em Portugal, uma monotona e interminavel confidencia de glorias e martyrios de amor. Ora Fradique Mendes pertencia evidentemente aos poetas novos que, seguindo o Mestre sem-igual da Lgende des Sicles, iam, n'uma universal sympathia buscar motivos emocionaes fra das limitadas palpitaes do corao Historia, Lenda, aos Costumes, s Religies, a tudo que atravs das idades, diversamente e unamente, revela e define o Homem. Mas alm d'isso Fradique Mendes trabalhava um outro filo poetico que me seduziao da Modernidade, a notao fina e sobria das graas e dos horrores da Vida, da Vida ambiente e costumada, tal como a podemos testemunhar ou presentir nas ruas que todos trilhamos nas moradas visinhas das nossas, nos humildes destinos deslizando em torno de ns por penumbras humildes. Esses poemetos das Lapidarias desenrolavam com effeito themas magnificamente novos. Ahi um Santo allegorico, um Solitario do seculo VI, morria uma tarde sobre as neves da Silesia, assaltado e [3] domado por uma to inesperada e bestial rebellio da Carne, que, beira da Bemaventurana, subitamente a perdia, e com ella o fructo divino e custoso de cincoenta annos de penitencia e d'ermo: um corvo, facundo e velho alm de toda a velhice, contava faanhas do tempo em que seguira pelas Gallias, n'um bando alegre, as legies de Cesar, depois as hordas de Alarico rolando para a Italia, branca e toda de marmores sob o azul: o bom cavalleiro Percival, espelho e flr d'Idealistas, deixava por cidades e campos o sulco silencioso da sua armadura d'ouro, correndo o mundo, desde longas ras, busca do San-Gral, o mystico vaso cheio de sangue de Christo, que, n'uma manh de Natal, elle vira passar e lampejar entre nuvens por sobre as torres de Camerlon: um Satanaz de feitio germanico, lido em Spinosa e Leibnitz, dava n'uma viella de cidade medieval uma serenada ironica aos astros, gottas de luz no frio ar geladas... E, entre estes motivos de esplendido symbolismo, l vinha o quadro de singela modernidade, as Velhinhas, cinco velhinhas, com chales de ramagens pelos hombros, um leno ou um cabaz na mo, sentadas sobre um banco de pedra, n'um longo silencio de saudade, a uma restea de sol d'outono. No asseguro todavia a nitidez d'estas bellas reminiscencias. Desde essa ssta de agosto, no Martinho, no encontrei mais as Lapidarias: e, de resto, o que n'ellas ento me prendeu, no foi a Ida, mas a Frmauma frma soberba de plasticidade [4] e de vida, que ao mesmo tempo me lembrava o verso marmoreo de Lecomte de Lisle com um sangue mais quente nas veias do marmore, e a nervosidade intensa de Baudelaire vibrando com mais norma e cadencia. Ora precisamente, n'esse anno de 1867, eu, J. Teixeira de Azevedo e outros camaradas tinhamos descoberto no co da Poesia Franceza (unico para que nossos olhos se erguiam) toda uma pleiade d'estrellas novas onde sobresahiam, pela sua refulgencia superior e especial, esses dois sesBaudelaire e Lecomte de Lisle. Victor Hugo, a quem chamavamos j pap Hugo ou Senhor Hugo-Todo-Poderoso, no era para ns um astromas o Deus mesmo, inicial e immanente, de quem os astros recebiam a luz, o movimento e o rythmo. Aos seus ps Lecomte de Lisle e Baudelaire faziam duas constellaes de adoravel brilho: e o seu encontro fra para ns um deslumbramento e um amor! A mocidade d'hoje, positiva e estreita, que pratca a Politica, estuda as cotaes da Bolsa e l George Ohnet, mal pde comprehender os santos enthusiasmos com que ns recebiamos a iniciao d'essa Arte Nova, que em Frana, nos comeos do Segundo Imperio, surgira das ruinas do Romantismo como sua derradeira encarnao, e que nos era trazida em Poesia pelos versos de Lecomte de Lisle, de Baudelaire, de Coppe, de Dierx, de Mallarm, e d'outros menores: e menos talvez pde comprehender taes fervores essa parte da mocidade culta que logo desde as escolas [5] se nutre de Spencer e de Taine, e que procura com ancia e agudeza exercer a critica, onde ns outr'ora, mais ingenuos e ardentes, nos abandonavamos emoo. Eu mesmo sorrio hoje ao pensar n'essas noites em que, no quarto de J. Teixeira d'Azevedo, enchia de sobresalto e duvida dois conegos que ao lado moravam, rompendo por horas mortas a clamar a Charogne de Baudelaire, tremulo e pallido de paixo: Et pourtant vous serez semblable cette ordure, A cette horrible infection, toile de mes yeux, soleil de ma nature, Vous, mon ange et ma passion! Do outro lado do tabique sentiamos ranger as camas dos ecclesiasticos, o raspar espavorido de phosphoros. E eu, mais pallido, n'um extase tremente: Alors, oh ma beaut, dites la vermine Qui vous mangera de baisers, Que j'ai gard la forme et l'essence divine De mes amours dcomposs! Certamente Baudelaire no valia este tremor e esta pallidez. Todo o culto sincero, porm, tem uma belleza essencial, independente dos merecimentos do Deus para quem se evola. Duas mos postas com legitima f sero sempre tocantesmesmo quando se ergam para um Santo to affectado e postio como S. Simeo Stylita. E o nosso [6] transporte era candido, genuinamente nascido do Ideal satisfeito, s comparavel quelle que outr'ora invadia os navegadores peninsulares ao pisarem as terras nunca d'antes pisadas, Eldorados maravilhosos, ferteis em delicias e thesouros, onde os seixos das praias lhes pareciam logo diamantes a reluzir. Li algures que Juan Ponce de Leon, enfastiado das cinzentas planicies de Castella-a-Velha, no encontrando tambem j encanto nos pomares verde-negros da Andaluziase fizera ao mar, para buscar outras terras, e mirar algo nuevo. Tres annos sulcou incertamente a melancolia das aguas atlanticas: mezes tristes errou perdido nos nevoeiros das Bermudas: toda a esperana findra, j as pras gastas se voltavam para os lados onde ficra a Hespanha. E eis que n'uma manh de grande sol, em dia de S. Joo, surgem ante a armada extatica os esplendores da Florida! Gracias te sean, mi S. Juan bendito, que he mirado algo nuevo! As lagrimas corriam-lhe pelas barbas brancase Juan Ponce de Leon morreu de emoo. Ns no morremos: mas lagrimas congeneres com as do velho mareante saltaram-me dos olhos, quando pela primeira vez penetrei por entre o brilho sombrio e os perfumes acres das Flres do Mal. Eramos assim absurdos em 1867! De resto, exactamente como Ponce de Leon, eu s procurava em Litteratura e Poesia algo nuevo que mirar. E para um meridional de vinte annos, [7] amando sobretudo a Cr e o Som na plenitude da sua riqueza, que poderia ser esse algo nuevo seno o luxo novo das frmas novas? A Frma, a belleza inedita e rara da Frma, eis realmente, n'esses tempos de delicado sensualismo, todo o meu interesse e todo o meu cuidado! Decerto eu adorava a Ida na sua essencia;mas quanto mais o Verbo que a encarnava! Baudelaire, mostrando sua amante na Charogne a carcassa pdre do co e equiparando em ambas as miserias da carne, era para mim de magnifica surpreza e enlevo: e diante d'esta crespa e atormentada subtilisao do sentir, que podia valer o facil e velho Lamartine no Lago, mostrando a Elvira a cansada lua, e comparando em ambas a pallidez e a graa meiga? Mas se este aspero e funebre espiritualismo de Baudelaire me chegasse expresso na lingua lassa e molle de Casimir Delavigneeu no lhe teria dado mais apreo do que a versos vis do Almanach de Lembranas. Foi sensualmente enterrado n'esta idolatria da Frma, que deparei com essas Lapidarias de Fradique Mendes, onde julguei vr reunidas e fundidas as qualidades discordantes de magestade e de nervosidade que constituiam, ou me pareciam constituir, a grandeza dos meus dois idoloso auctor das Flres do Mal e o auctor dos Poemas Barbaros. A isto accrescia, para me fascinar, que este poeta era portuguez, cinzelava assim preciosamente a lingua que at ahi tivera como joias acclamadas o Noivado do Sepulchro e o Av Cesar!, habitava [8] Lisboa, pertencia aos Novos, possuia decerto na alma, talvez no viver, tanta originalidade poetica como nos seus poemas! E esse folhetim amarrotado da Revoluo de Setembro tomava assim a importancia d'uma revelao d'Arte, uma aurora de Poesia, nascendo para banhar as almas moas na luz e no calor especial a que ellas aspiravam, meio adormecidas, quasi regeladas sob o algido luar do Romantismo. Graas te sejam dadas, meu Fradique bemdito, que na minha velha lingua h mirado algo nuevo! Creio que murmurei isto, banhado em gratido. E, com o numero da Revoluo de Setembro, corri a casa de J. Teixeira de Azevedo, travessa do Guarda-Mr, a annunciar o advento esplendido! Encontrei-o, como de costume, nos silenciosos vagares das tardes de vero, em mangas de camisa, diante de uma bacia que trasbordava de morangos e de vinho de Torres. Com vozes clamorosas, atirando gestos at ao tecto, declamei-lhe a Morte do Santo. Se bem recordo, este asceta, ao findar sobre as neves da Silesia, era miserrimamente trahido pela desleal Natureza! Todos os appetites da paixo e do corpo, to laboriosamente recalcados por elle durante meio seculo d'ermo, irrompiam de repente, beira da eternidade, n'um tumulto bestial, no querendo para sempre findar com a carne que ia findarantes de serem uma vez satisfeitos! E os anjos que, para o receber, desciam d'aza serena, sobraando mlhos de Palmas [9] e cantando os Epithalamios, encontravam, em vez d'um Santo, um Satyro, senil e grotescoque de rojos, entre bramidos sordidos, mordia com beijos vorazes a neve, a macia alvura da neve, onde o seu delirio furiosamente imaginava nudezes de cortezs!... Tudo isto era tratado com uma grandeza sobria e rude que me parecia sublime. J. Teixeira d'Azevedo achou tambem sublimemas brjeiro. E concordou que convinha desentulhar Fradique Mendes da obscuridade, e erguel-o no alto do escudo como o radiante mestre dos Novos. Fui logo n'essa noite Revoluo de Setembro, procurar um companheiro meu de Coimbra, Marcos Vidigal, que, nos nossos alegres tempos de Direito Romano e Canonico, ganhra, por tocar concertina, lr a Historia da Musica de Scudo, e lanar atravs da Academia os nomes de Mozart e de Beethoven, uma soberba auctoridade sobre Musica classica. Agora, vadiando em Lisboa, escrevia na Revoluo, aos domingos, uma Chronica lyricapara gozar gratuitamente o bilhete de S. Carlos. Era um moo com cabellos ralos e cr de manteiga, sardento, apagado de idas e de modosmas que despertava e se illuminava todo quando lograva a chance (como elle dizia) de roar por um homem celebre, ou de arranchar n'uma coisa original; e isto tornra-o a elle, pouco a pouco, quasi original e quasi celebre. N'essa noite, que era sabbado e de pesado calor, l estava banca, com uma quinzena d'alpaca, suando, bufando, a espremer [10] do seu pobre craneo, como d'um limo meio scco, gottas d'uma Chronica sobre a Volpini. Apenas eu alludi a Fradique Mendes, quelles versos que me tinham maravilhadoVidigal arrojou a penna, j risonho, com um claro alvoroado na face molle: Fradique? Se conheo o grande Fradique? meu parente! meu patricio! meu parceiro! Ainda bem, Vidigal, ainda bem! Fomos ao Passeio Publico (onde Marcos se ia encontrar com um agiota). Tommos sorvetes debaixo das acacias: e pelo chronista da Revoluo conheci a origem, a mocidade, os feitos do poeta das Lapidarias. Carlos Fradique Mendes pertencia a uma velha e rica familia dos Aores; e descendia por varonia do navegador D. Lopo Mendes, filho segundo da casa da Troba, e donatario d'uma das primeiras capitanias creadas nas Ilhas por comeos do seculo XVI. Seu pai, homem magnificamente bello, mas de gostos rudes, morrera (quando Carlos ainda gatinhava) d'um desastre, na caa. Seis annos depois sua mi, senhora to airosa, pensativa e loura que merecera d'um poeta da Terceira o nome de Virgem d'Ossian, morria tambem d'uma febre trazida dos campos, onde andra bucolicamente, n'um dia de sol forte, cantando e ceifando feno. Carlos ficou em companhia e sob a tutela de sua av materna, D. Angelina Fradique, velha estouvada, erudita e [11] exotica que colleccionava aves empalhadas, traduzia Klopstock, e perpetuamente soffria dos dardos d'Amor. A sua primeira educao fra singularmente emmaranhada: o capello de D. Angelina, antigo frade benedictino, ensinou-lhe o latim, a doutrina, o horror maonaria, e outros principios solidos; depois um coronel francez, duro jacobino que se batera em 1830 na barricada de St-Merry, veio abalar estes alicerces espirituaes fazendo traduzir ao rapaz a Pucelle de Voltaire e a Declarao dos direitos do homem; e finalmente um allemo, que ajudava D. Angelina a enfardelar Klopstock na vernaculidade de Filinto Elysio, e se dizia parente de Emmanuel Kant, completou a confuso iniciando Carlos, ainda antes de lhe nascer o buo, na Critica da Razo pura e na heterodoxia metaphysica dos professores de Tubinguen. Felizmente Carlos j ento gastava longos dias a cavallo pelos campos, com a sua matilha de galgos:e da anemia que lhe teriam causado as abstraces do raciocinio, salvou-o o spro fresco dos montados e a natural pureza dos regatos em que bebia. A av, tendo imparcialmente approvado estas embrulhadas linhas d'educaco, decidiu de repente, quando Carlos completou dezeseis annos, mandal-o para Coimbra que ella considerava um nobre centro d'estudos classicos e o derradeiro refugio das Humanidades. Corria porm na Ilha que a traductora de Klopstock, apesar dos sessenta annos que lhe revestiam a face d'um pllo mais denso que a hera [12] d'uma ruina, decidira afastar o netopara casar com o bolieiro. Durante tres annos Carlos tocou guitarra pelo Penedo da Saudade, encharcou-se de carrasco na tasca das Camlas, publicou na Ida sonetos asceticos, e amou desesperadamente a filha d'um ferrador de Lorvo. Acabava de ser reprovado em Geometria quando a av morreu subitamente, na sua quinta das Tornas, n'um caramancho de rosas, onde se esquecera toda uma ssta de junho, tomando caf, e escutando a viola que o cocheiro repicava com os dedos carregados d'anneis. Restava a Carlos um tio, Thadeu Mendes, homem de luxo e de boa mesa, que vivia em Paris preparando a salvao da Sociedade com Persigny, com Morny, e com o principe Luiz Napoleo de quem era devoto e crdor. E Carlos foi para Paris estudar Direito nas cervejarias que cercam a Sorbonne, espera da maioridade que lhe devia trazer as heranas accumuladas do pai e da avcalculadas por Vidigal n'um farto milho de cruzados. Vidigal, filho d'uma sobrinha de D. Angelina, nascido na Terceira, possuia por legado, conjuntamente com Carlos, uma quinta chamada o Corvovello. D'ahi lhe vinha ser parente, patricio e parceiro do homem das Lapidarias . Depois d'isto Vidigal sabia apenas que Fradique, livre e rico, sahira do Quartier-Latin a comear uma existencia soberba e fogosa. Com um impeto de ave solta, viajra logo por todo o mundo, a [13]todos os sopros do vento, desde Chicago at Jerusalem, desde a Islandia at ao Sahar. N'estas jornadas, sempre emprehendidas por uma solicitao da intelligencia ou por ancia d'emoes, achra-se envolvido em feitos historicos e tratra altas personalidades do seculo. Vestido com a camisa escarlate, acompanhra Garibaldi na conquista das Duas-Sicilias. Encorporado no Estado-Maior do velho Napier, que lhe chamava the Portuguese Lion (o Leo Portuguez), fizera toda a campanha da Abyssinia. Recebia cartas de Mazzini. Havia apenas mezes que visitra Hugo no seu rochedo de Guernesey... Aqui recuei, com os olhos esbugalhados! Victor Hugo (todos ainda se lembram), desterrado ento em Guernesey, tinha para ns, idealistas e democratas de 1867, as propores sublimes e lendarias d'um S. Joo em Pathmos. E recuei protestando, com os olhos esbugalhados, tanto se me afigurava fra das possibilidades que um portuguez, um Mendes tivesse apertado nas suas a mo augusta que escrevera a Lenda dos Seculos! Correspondencia com Mazzini, camaradagem com Garibaldi, v! Mas na ilha sagrada, ao rumor das ondas da Mancha, passear, conversar, scismar com o vidente dos Miseraveisparecia-me a impudente exaggerao d'um ilho que me queria intrujar... Juro! gritou Vidigal, levantando a mo veridica s acacias que nos cobriam. E immediatamente, para demonstrar a verosimilhana d'aquella gloria, j altissima para Fradique, [14] contou-me outra, bem superior, e que cercava o estranho homem d'uma aureola mais refulgente. No se tratava j de ser estimado por um homem excelsomas, coisa preciosa entre todas, de ser amado por uma excelsa mulher. Pois bem! Durante dois annos, em Paris, Fradique fra o eleito de Anna de Lon, a gloriosa Anna de Lon, a mais culta e bella cortez (Vidigal dizia o melhor bocado) do Segundo Imperio, de que ella, pela graa especial da sua voluptuosidade intelligente, como Aspasia no seculo de Pericles, fra a expresso e a flr! Muitas vezes eu lra no Figaro os louvores de Anna de Lon, e sabia que poetas a tinham celebrado sob o nome de Venus Victoriosa. Os amores com a cortez no me impressionaram decerto tanto como a intimidade com o homem das Contemplaes: mas a minha incredulidade cessoue Fradique assumiu para mim a estatura d'um d'esses sres que, pela seduco ou pelo genio, como Alcibiades ou como Goethe, dominam uma civilisao, e d'ella colhem deliciosamente tudo o que ella pde dar em gostos e em triumphos. Foi por isso talvez que crei, intimidado, quando Vidigal, reclamando outro sorvete de leite, se offereceu para me levar ao surprehendente Fradique. Sem me decidir, pensando em Novalis que tambem assim hesitava, enleado, ao subir uma manh em Berlim as escadas d'Hegelperguntei a Vidigal se o poeta das Lapidarias residia em Lisboa... [15] No! Fradique viera de Inglaterra visitar Cintra, que adorava, e onde comprra a quinta da Saragoa, no caminho dos Capuchos, para ter de vero em Portugal um repouso fidalgo. Estivera l desde o dia de Santo Antonio:e agora parra em Lisboa, no Hotel Central, antes de recolher a Paris, seu centro e seu lar. De resto, accrescentou Marcos, no havia como Fradique ninguem to simples, to alegre, to facil. E, se eu desejava conhecer um homem genial, que esperasse ao outro dia, domingo, s duas, depois da missa do Loreto, porta da Casa Havaneza. Valeu? s duas, religiosamente, depois da missa! Bateu-me o corao. Por fim, com um esforo, como Novalis no patamar d'Hegel, afiancei, pagando os sorvetes, que ao outro dia, s duas, religiosamente, mas sem missa, estaria no portal da Havaneza! II Gastei a noite preparando phrases, cheias de profundidade e belleza, para lanar a Fradique Mendes! Tendiam todas glorificao das Lapidarias. E lembro-me de ter, com amoroso cuidado, burilado [16] e repolido esta:A frma de v. exc.a um marmore divino com estremecimentos humanos! De manh apurei requintadamente a minha toilette como se, em vez de Fradique, fosse encontrar Anna de Loncom quem j n'essa madrugada, n'um sonho repassado de erudio e sensibilidade, eu passera na Via Sagrada que vai de Athenas a Eleusis, conversando, por entre os lyrios que desfolhavamos, sobre o ensino de Plato e a versificao das Lapidarias. E s duas horas, dentro de uma tipoia, para que o macadam regado me no maculasse o verniz dos sapatos, parava na Havaneza, pallido, perfumado, commovido, com uma tremenda rosa de ch na lapella. Eramos assim em 1867! Marcos Vidigal j me esperava, impaciente, roendo o charuto. Saltou para a tipoia; e batemos atravs do Loreto, que escaldava ao sol do agosto. Na rua do Alecrim (para combater a pueril emoo que me enleava) perguntei ao meu companheiro quando publicaria Fradique as Lapidarias. Por entre o barulho das rodas Vidigal gritou: Nunca! E contou que a publicao d'aquelles trechos na Revoluo de Setembro quasi occasionra, entre Fradique e elle, uma pega intellectual. Um dia, depois de almoo, em Cintra, emquanto Fradique fumava o seu chibouk persa, Vidigal, na sua familiaridade, como patricio e como parente, abrira sobre [17] a mesa uma pasta de velludo negro. Descobrira, surprehendido, largas folhas de versos, n'uma tinta j amarellada. Eram as Lapidarias. Lra a primeira, a Serenada de Satan aos astros. E, maravilhado, pedira a Fradique para publicar na Revoluo algumas d'essas estrophes divinas. O primo sorrira, consentiracom a rigida condio de serem firmadas por um pseudonymo. Qual?... Fradique abandonava a escolha phantasia de Vidigal. Na redaco, porm, ao revr as provas, s lhe acudiram pseudonymos decrepitos e safados, o Independente, o Amigo da Verdade, o Observadornenhum bastante novo para dignamente firmar poesia to nova. Disse comsigo:Acabou-se! Sublimidade no vergonha. Ponho-lhe o nome! Mas quando Fradique viu a Revoluo de Setembro ficou livido, e chamou regeladamente a Vidigal indiscreto, burguez e philisteu!E aqui Vidigal parou para me pedir a significao de philisteu. Eu no sabia; mas archivei gulosamente o termo, como amargo. Recordo at que logo n'essa tarde, no Martinho, tratei de philisteu o auctor consideravel do Av Csar! De modo que, rematou Vidigal, melhor no lhe fallares nas Lapidarias! Sim! pensava eu. Talvez Fradique, maneira do chanceller Bacon e d'outros homens grandes pela aco, deseje esconder d'este mundo de materialidade e de fora o seu fino genio poetico! Ou talvez essa ira, ao vr o seu nome impresso debaixo [18] de versos com que se orgulharia Lecomte de Lisle, seja a do artista nobremente e perpetuamente insatisfeito que no aceita ante os homens como sua a obra onde sente imperfeies! Estes modos de ser, to superiores e novos, cahiam na minha admirao como oleo n'uma fogueira. Ao pararmos no Central tremia d'acanhamento. Senti um allivio quando o porteiro annunciou que o snr. Fradique Mendes, n'essa manh, cedo, tomra uma caleche para Belem. Vidigal empallideceu, de desespero: Uma caleche! Para Belem!... Ha alguma coisa em Belem? Murmurei, n'uma ida d'Arte, que havia os Jeronymos. N'esse instante uma tipoia, lanada a trote, estacou na rua, com as pilecas fumegando. Um homem desceu, ligeiro e forte. Era Fradique Mendes. Vidigal, alvoroado, apresentou-me como um poeta seu amigo. Elle adiantou a mo sorrindomo delicada e branca onde vermelhejava um rubi. Depois, acariciando o hombro do primo Marcos, abriu uma carta que lhe estendia o porteiro. Pude ento, vontade, contemplar o cinzelador das Lapidarias, o familiar de Mazzini, o conquistador das Duas-Sicilias, o bem-adorado de Anna de Lon! O que me seduziu logo foi a sua esplendida solidez, a s e viril proporo dos membros rijos, o aspecto calmo de poderosa estabilidade com que parecia assentar na vida, to livremente e to firmemente como sobre aquelle cho de ladrilhos [19] onde pousavam os seus largos sapatos de verniz resplandecendo sob polainas de linho. A face era do feitio aquilino e grave que se chama cesareano, mas sem as linhas empastadas e a espessura flaccida que a tradio das Esclas invariavelmente attribue aos Cesares, na tela ou no gesso, para os revestir de magestade; antes pura e fina como a d'um Lucrecio moo, em plena gloria, todo nos sonhos da Virtude e da Arte. Na pelle, d'uma brancura lactea e fresca, a barba, por ser pouca decerto, no deixava depois de escanhoada nem aspereza nem sombra; apenas um buo crespo e leve lhe orlava os labios que, pela vermelhido humida e pela sinuosidade subtil, pareciam igual e superiormente talhados para a Ironia e para o Amor. E toda a sua finura, misturada de energia, estava nos olhosolhos pequenos e negros, brilhantes como contas de onyx, d'uma penetrao aguda, talvez insistente de mais, que perfurava, se enterrava sem esforo, como uma verruma d'ao em madeira molle. Trazia uma quinzena solta, d'uma fazenda preta e macia, igual das calas que cahiam sem um vinco: o collete de linho branco fechava por botes de coral pallido: e o lao da gravata de setim negro, dando relevo alvura espelhada dos collarinhos quebrados, offerecia a perfeio concisa que j me encantra no seu verso. No sei se as mulheres o considerariam bello. Eu achei-o um varo magnificodominando sobretudo por uma graa clara que sahia de toda a [20] sua fora mascula. Era o seu vio que deslumbrava. A vida de to varias e trabalhosas actividades no lhe cavra uma prega de fadiga. Parecia ter emergido, havia momentos, assim de quinzena preta e barbeado, do fundo vivo da Natureza. E apesar de Vidigal me ter contado que Fradique festejra os trinta e tres em Cintra, pela festa de S. Pedro, eu sentia n'aquelle corpo a robustez tenra e agil de um ephebo, na infancia do mundo grego. S quando sorria ou quando olhava se surprehendiam immediatamente n'elle vinte seculos de litteratura. Depois de lr a carta, Fradique Mendes abriu os braos, n'um gesto desolado e risonho, implorando a misericordia de Vidigal. Tratava-se, como sempre, da Alfandega, fonte perenne das suas amarguras! Agora tinha l encalhado um caixote, contendo uma mumia egypcia... Uma mumia...? Sim, perfeitamente, uma mumia historica, o corpo veridico e veneravel de Pentaour, escriba ritual do Templo de Amnon em Thebas, e chronista de Ramzes II. Mandra-o vir de Paris para dar a uma senhora da Legao d'Inglaterra, Lady Ross, sua amiga d'Athenas, que em plena frescura e plena ventura, colleccionava antiguidades funerarias do Egypto e da Assyria... Mas, apesar d'esforos sagazes, no conseguia arrancar o defunto letrado aos armazens da Alfandegaque elle enchera de confuso e de horror. Logo na primeira [21] tarde, quando Pentaour desembarcra, enfaixado dentro do seu caixo, a Alfandega aterrada avisou a policia. Depois, calmadas as desconfianas d'um crime, surgira uma insuperavel difficuldade:que artigo da pauta se poderia applicar ao cadaver d'um hierogrammata do tempo de Ramzes? Elle Fradique suggerira o artigo que taxa o arenque defumado. Realmente, no fundo, o que um arenque defumado seno a mumia, sem ligaduras e sem inscripes, d'um arenque que viveu? Ter sido peixe ou escriba nada importava para os effeitos fiscaes. O que a Alfandega via diante de si era o corpo d'uma creatura, outr'ora palpitante, hoje seccada ao fumeiro. Se ella em vida nadava n'um cardume nas ondas do mar do Norte, ou se, nas margens do Nilo, ha quatro mil annos, arrolava as rezes de Amnon e commentava os capitulos de fim de diano era certamente da conta dos Poderes Publicos. Isto parecia-lhe logico. Todavia as auctoridades da Alfandega continuavam a hesitar, coando o queixo, diante do cofre sarapintado que encerrava tanto saber e tanta piedade! E agora n'aquella carta os amigos Pintos Bastos aconselhavam, como mais nacional e mais rapido, que se arrancasse um empenho do Ministro da Fazenda para fazer sahir sem direitos o corpo augusto do escriba de Ramzes. Ora este empenho, quem melhor para o alcanar que Marcosesteio da Regenerao e seu Chronista musical? Vidigal esfregava as mos, illluminado. Ahi estava [22] uma coisa bem digna d'elle, bem catitasalvar do fisco a mumia d'um figuro pharaonico! E arrebatou a carta dos Pintos Bastos, enfiou para a tipoia, gritou ao cocheiro a morada do Ministro, seu collega na Revoluo de Setembro. Assim fiquei s com Fradiqueque me convidou a subir aos seus quartos, e esperar Vidigal, bebendo uma soda e limo. Pela escada, o poeta das Lapidarias alludiu ao torrido calor d'agosto. E eu que n'esse instante, defronte do espelho no patamar, revistava, com um olhar furtivo, a linha da minha sobrecasaca e a frescura da minha rosadeixei estouvadamente escapar esta coisa hedionda: Sim, est d'escachar! E ainda o torpe som no morrera, j uma afflico me lacerava, por esta chulice de esquina de tabacaria assim atabalhoadamente lanada como um pingo de sbo sobre o supremo artista das Lapidarias, o homem que conversra com Hugo beira-mar!... Entrei no quarto atordoado, com bagas de suor na face. E debalde rebuscava desesperadamente uma outra phrase sobre o calor, bem trabalhada, toda scintillante e nova! Nada! S me acudiam sordidezes parallelas, em calo teimoso: de rachar! est de ananazes! derrete os untos!... Atravessei alli uma d'essas angustias atrozes e grotescas, que, aos vinte annos, quando se comea a vida e a litteratura, vincam a almae jmais esquecem. [23] Felizmente Fradique desapparecera por traz d'um reposteiro de alcova. S, limpando o suor, considerando que altos pensadores se exprimem assim, com uma simplicidade rude,serenei. E perturbao succedeu a curiosidade de descobrir em torno, pelo aposento, algum vestigio da originalidade intensa do homem que o habitava. Vi apenas canadas cadeiras de reps azul-ferrete, um lustre embuado em tulle, e uma console, de altos ps dourados, entre as duas janellas que respiravam para o rio. Smente, sobre o marmore da console, e por meio dos livros que atulhavam uma velha mesa de pau preto, pousavam soberbos ramos de flres: e a um canto afofava-se um espaoso divan, installado decerto por Fradique com colches sobrepostos, que dois cobrejes orientaes revestiam de cres estridentes. Errava alm d'isso em toda a sala um aroma desconhecido, que tambem me pareceu oriental, como feito de rosas de Smyrna, mescladas a um fio de canella e mangerona. Fradique Mendes voltra de dentro, vestido com uma cabaia chineza! Cabaia de mandarim, de sda verde, bordada a flres de amendoeiraque me maravilhou e que me intimidou. Vi ento que tinha o cabello castanho-escuro, fino e levemente ondeado sobre a testa, mais polida e branca que os marfins de Normandia. E os olhos, banhados agora n'uma luz franca, no apresentavam aquella negrura profunda que eu comparra ao onyx, mas uma cr quente de tabaco escuro da Havana. Accendeu [24] uma cigarrette e ordenou a soda e limo a um creado surprehendente, muito louro, muito grave, com uma perola espetada na gravata, largas calas de xadrez verde e preto, e o peito florido por tres cravos amarellos! (Percebi que este servo magnifico se chamava Smith). O meu enleio crescia. Por fim Fradique murmurou, sorrindo, com sincera sympathia: Aquelle Marcos u ......Buy Now (To Read More)

Product details

Ebook Number: 27637
Author: Queirós, Eça de
Release Date: Dec 27, 2008
Format: eBook
Language: Portuguese

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