Amor Crioulo

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Amor Crioulo - vida argentina Title: Amor Crioulo Subtitle: vida argentina Author: Abel Accio de Almeida Botelho...
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Author: Botelho, Abel Acácio de Almeida,1856-1917
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Author: Botelho, Abel Acácio de Almeida,1856-1917
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Amor Crioulo - vida argentina

Title: Amor Crioulo Subtitle: vida argentina Author: Abel Accio de Almeida Botelho and Joo Jos Grave Release Date: March 26, 2008 [EBook #24919] Language: Portuguese Credits: Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net Nota de editor: Devido quantidade de erros tipogrficos existentes neste texto, foram tomadas vrias decises quanto verso final. Em caso de dvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrar a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Mar. 2008) DO MESMO AUTOR I O Baro de Lavos, romance, 4. edio, 1 vol. br. II O Livro de Alda, romance, 1 vol. br. III Amanh, romance do proletariado, 2. edio, 1 vol. br. IV Fatal dilema, romance, 2. edio, 1 vol. br. V Prspero Fortuna, romance, 2. edio, 1 vol. br. Sem remdio..., romance, 1 vol. br. Os Lzaros, romance, 2. edio, 1 vol. br. Mulheres da Beira, contos, 1 vol. enc. Amor crioulo, 2. edio, novela. ABEL BOTELHO Amor crioulo (vida argentina) novela Ahi est, si, magnifica, opulenta, La codiciada tierra... Guido y Spano. segunda edio PORTO LIVRARIA CHARDRON de LLO & IRMO, L.daeditores rua das carmelitas, 144 Livraria Aillaud e Bertrand, Lisboa-Paris 1921 A propriedade literria e artstica est garantida em todos os pases que aderiram conveno de Berne(Em Portugal, pela lei de 18 de Maro de 1911. No Brasil pela lei n. 2.577 de 17 de Janeiro de 1912.) propriedade absoluta dos editores PortoCompanhiaNacional Tipogrfica AO DOUTOR BRITO CAMACHO AMOR CRIOULO I Naquela tarde mormacenta de fevereiro, Joo da Silveira embarcra em Lisboa, no Almera, com rta America do Sul. Considerava-se um sem-ptria, agora, na sua ba e amorvel terra, sbre cujo manso e carinhoso seio no fumegavam seno escombros; terra perdida e maldita, pelo jacobinismo vermelho do 5 de Outubro abalada nos seus fundamentos e furtada criminosamente ao seu destino. Todo o ambiente tradicional em que havia sido criado, ste parasitrio rebento do vlho regmen vira-o derruir de roda de si com estrondo. Crenas, privilgios, isenes, benesses e preferncias, tda essa contrafeita armadura de iniqidade e obscurantismo que sustinha ainda de p a combalida fico monrquica, tudo rolra desfeito, num epilepsiado arranco, numa comoo formidvel, enquanto invadia ferozmente o espao em trno um catico fumo de confuso e [8] de treva... e a viso inquieta do futuro envlta num trvo mistrio, como um polvoru de runa. Tudo lhe havia quitado descarovelmente esta estpida ida da Rpublica: os cincoenta mil reisitos que le, mensalmente, ia ou mandava com tda a pontualidade receber, a ttulo dum amanuensado hipottico na Junta do Crdito Pblico; as bas graas da sua apetecida noiva, a Laurita, filha dum acaudalado burgus e pelo pai abominvelmente educada, a qual agora, com o Afonso Costa no poleiro, j cantava tambm de papo; e at,o seu pensamento hipcrita rematava,e at as nobres, as suavssimas cres da bandeira de seus avs, sse azul calmo e sse branco ingnuo, smbolo irrefragvel da alma nacional, ora via suplantadas por um vermelho de aougue e um verde de curral, duas tonalidades irreconciliveis, duas cres speras, irritantes, herticas, como punhais, como blasfmias. Durante os primeiros meses da Rpublica, Joo da Silveira, como tantos outros, conspirou. Aquecia-lhe a alma ste vago sebastianismo solapado no ntimo de todo o bom portugus, acicatava-lhe o desejo a gulosa lembrana daqueles magros cobres oramentais que, somados ao activo do seu escasso patrimnio, lhe serviam a governar sofrivelmente a vida. Assim, na sua ferina hostilidade contra o novo regmen, concorriam simultneos a alma e o estmago, uma predileco ancestral e um instinto [9] devorista. E foi certamente esta dualidade antinmica de inspiraes que, embora visando ambas o mesmo fim, cardou a sua actuao de conspirador de todo o carcter excessivo. Porque ste cauto Silveira firmou vrias adeses e compromissos, fez nutrida propaganda verbal entre os rsticos, prontificou-se a recrutar gente, enviou mesmo algum dinheiro; mas sem arriscar-se nunca pessoalmente no campo da luta militante. Aps a frustrada incurso de Chaves, no quis mais. Os seus 40 anos previsores e calculistas haviam grado em grado esmoitado, na gafa estrutura moral dste malogrado d'Artagnan, o esprito de aventura. Vendeu a sua reputada vinha do Pinho, arrendou a linda quinta da Folgosa com o solar de sete capelas, seu fidalgo bero natal e residncia muito em conta quando em apuros de dinheiro; noiva escreveu que a sua dignidade, em briga com o seu amor, o forava quele exlio doloroso; e a o temos agora dobrado com indolncia sbre a amura do Almera em marcha, vergado o busto, as mos pendentes ao abandno, evitando olhar o manso deslise da cidade donde sentia que lhe vinha um frio vento de repulsa, com as plpebras froixas seguindo, em baixo, o rasgar da pra pela limosa torrente caudal do rio, e os lbios vorazes vagamente encrespados na voluptuosa anteviso do Desconhecido. Primognito dos trs filhos dos Silveiras Lbo, de Mosteir, o pequeno Joo fra criado [10] com tdas as mimadas preferncias e tda a jactanciosa despreocupao dos antigos morgados. Todos os perniciosos desvos lhe havia consentido o dissolvente meio familiar e ste odioso prejuzo educativo, todos: desde o achincalho, o abandno burlo dos mestres, at ao abuso feudal das raparigas. Da que, resultando uma organizao inadaptvel ao trabalho e um carcter voluntarioso e cego, o Silveira havia consumido o melhor da sua vida ou bambochando em saborosas sensualidades, ou luzindo em brbaras pimponices, porm um msero hspede sempre da pura emoo, sempre refractrio s reaces da alquimia ideal do sentimento. Alto, forte, moreno, com uns negros olhos dominadores e uma estrutura apolnea, entretanto no seu belo rosto varonil espatinava-se a tinta de vulgaridade que imprime s fisionomias de hoje a dureza, a ausncia do sentir. Pronto sempre e lerte ao galanteio, volpia, brutalidade, ao prazer, nunca at quele momento se sentira capaz duma paixo que o arrancasse a si mesmo, que montasse o seu egosmo e as suas ambies tacanhas, que lhe pusesse asas na vontade e lhe espiritualizasse o desejo. Nutria um tdio altaneiro pelos aspectos triviais da vida,ste tdio que o triste apangio das almas sem vo, dos coraes vazios. Jmais consentira intimidades e votava, pelo geral, aos homens um desdm corts, s coisas uma indiferena amvel. Podia ser assim na medida do seu critrio material, o mais feliz [11]dos homens, de vida rolando e fluindo suavemente como um exerccio de patinagem, se no tivera a furuncular-lhe, como uma fatalidade ancestral, a crsta da alma empedernida, o culto ardoroso, desptico, incessante, brbaro, da mulher. Era ste o flanco vulnervel do seu eu, o nico ponto em brecha naquele carcter dominador e altivo. Absteno feita da condio, da raa e da moral, o alarmante odor di femina, fsse urbano ou rstico, fidalgo ou plebeu, negro, amarelo ou branco, amolecia-o. Posta em conflito com o perturbador mistrio feminino, a sua melindrosa sensibilidade capitulava, cedendo a um vcio de receptibidade extrema que se traduzia na falta absoluta de energia. Nem por isso o nosso heri consentira nunca em descer aos atormentados abismos da paixo, ou se deixra enlear no labirinto vsgo da loucura. Mal aflorava com o desdenhoso lbio o mel turvo do prazer, saltitando despreocupado dum amor a outro amor,epidrmicos todos, breves, fugazes, como frutos apenas mordidos e logo deitados fra. Era de ordinrio a vulgaridade do instinto que o dirigia, arrastando-o no raro a scenas ridculas; mas j tambm, uma que outra vez, a virtude suprema da emoo, transfigurando-o, o erguera a desgarradas alucinaes de artista. Nesses altos, raros momentos de libertao le sofrera, numa atnita inconscincia, o puro domnio da Beleza. E agora mesmo, nesta sua voluntria demanda da Solido, neste atoado caminhar para o Infinito, [12] sem o amparo duma doce mulherita ao lado, o Silveira sentia o corao rido e triste como o ardido leito duma torrente sem gua... Tremeu um instante, como no terror mortal de ir transpr o vcuo, e sacudiu-o um confrangido alvoro, uma como que compaixo de si mesmo, que o fez aprumar-se, esperto, na amurada, erguendo os inquietos olhos ao espao, por onde lhe parecera ouvir bater um esparrdo incerto de asas, e depois, com as plpebras hmidas num ensopamento de ternura, querendo reter o perfil indeciso da cidade que lhe fugia, na magoada luz do crepsculo, envlta em lvidas musselinas de mistrio. Para onde ia le? que ignorados destinos o aguardavam l longe, nesse novo grande mundo, para le um enigma, e onde tudo era colossal,o progresso e a barbrie, a misria e a riqueza?... Interrogaes que naturalmente lhe acudiam e vinham, freqentes, cocegar-lhe a inculta mas viva inteligncia. Vagamente sentia que o homem que viaja aumenta sempre e a cada momento enriquece a sua bagagem impressionista interior, a qual, bago a bago, se vai ento enceleirando, como um precioso tesouro sentimental, no arco das ntimas recordaes, das lembranas carinhosas. Cada povo, cada ambiente, cada pas, cada raa deixam a a sua marca indelvel, e essas pitorescas estratificaes so outras tantas parcelas novas que veem somar-se histria da nossa vida, despertando-nos cordas inditas no sentir ou alargando a latitude [13] moral da experincia. No eram estas coisas postas bem a claro nem sentidas ntidamente pela insuficincia mental de Joo da Silveira; ntidamente, contudo, le sabia,isto sim!ser a Amrica do Sul terra de lindas mulheres; e o relmpago desta promessa acirrante fazia-lhe o passo leve, encrespava-lhe a medula e acendia-lhe o desejo. Depois, havia ainda que ver os seus scios de viagem, havia que observar e indagar quem, quanta e que qualidade de gente vinha ali a bordo com le. Sem que soubesse explicar-se bem porqu, tomava-o ste antecipado encanto dos conhecimentos adquiridos em viagem, breves contactos de almas volitando ligeiras entre os dois infinitos do co e do mar, qualquer coisa de adorvelmente vago, de efmero e profundo ao mesmo tempo. So como que brisas do sentimento: se no prendem o corao tonificam a alma. Os primeiros dois dias de viagem, t Madeira, foram maus. Tempestade constante. Aquele primeiro mormao ameaador engrossra e fechra t disparar na trgica violncia dum temporal desfeito. A chuva, a cerrao, o mar revlto e o sudoeste rijo, soprando contrrio, atrasavam o barco e com le jogavam perdidamente, sacudindo o transatlntico em rijas convulses que reduziam a arrogncia industrial do seu poderoso arcaboio a propores irrisrias. Nada estava [14] seguro, pairava-se indeciso na comoo e na treva. De quando em quando, varria de ls a ls a embarcao uma rfaga mais intensa, e tudo ento a bordo danava, estalava, tiritava e gemia, no estrangulamento brutal da garra do Desconhecido. Grupos descalos de marinheiros, trotando rpidos, faziam, aqui, ali, a sua apario fantstica, cerrando escotilhas, aprontando escaleres, correndo presto a manobra. E agora, a intervalos, na opacidade da noite como tinta, acima do ranger do cavername do monstro e do rugir cavo das guas, por sbre tda essa brava orquestrao da Morte roncava e erguia-se alarmante o grosso apitar da mquina em desespro. E era como se no houvesse viv'alma ali dentro. A ningum era permitido estacionar nos sales, no bar ou nas cobertas; mas de horas antes que perante a ameaadora fria do vendaval, poucos se sentiam em segurana, e da que uns pelo enjo, outros pelo terror, outros por mra prudncia, tudo, na timorata demanda do seu beliche, fra sucessivamente desertando. Joo da Silveira, tomado dum indefinvel mal-estar, com a cabea como chumbo, descera tambm ao seu camarote, que era situado num dos extremos do barco, formando esquina, junto pra. Tinha uma ventanilha sbre o mar e outra sbre aquele ngulo avanado da coberta, descobrindo assim um trecho dessa renovao inqua das gals, essa enorme grilheta ambulante, onde, sob um miservel [15] tldo, intemprie, ao abandno, no mais absoluto desamparo, na mais srdida promiscuidade, num baralhamento ignbil de idades, de sexos e de raas, rolando ao spero sabor da tormenta, como lastro, como calhaus, como ldo, como viva espuma, seguiam, empilhados a monte, os passageiros de 3. classe. Foi a primeira sorte de gente que, a bordo, se lhe antolhou ver mais de perto; tinha agora ali assim, ao alcance inevitvel, prximo da ateno, misrias, tristezas, espantos, dores que at ao momento le arredra sempre com dureza do seu corao, de ordinrio avesso piedade. Agora tinha que forosamente senti-las, ouvia-lhes o singelo relato das suas penas e angstias, chegavam-lhe lamuriados protestos, tmidos gritos de rebelio, surdas frases doloridas; comeava a interess-lo o aspecto resignado, humilde, sofredor daquelas rtas mscaras de agonia, vinha-lhe o fartum nauseabundo da comida que lhes serviam; e durante a sua primeira noite de mar, noite de pesadelo, noite de insnia, noite de incomportvel pavor, em que a madorna do cansao lhe era a cada momento posta em sobressalto pelo sbito martelar dos mais estranhos rudos,o ferrolhar brusco de cremalheiras, silvos raspantes de cordagens, choques brancos de metais, ringidos como rasges, estalidos como pragas,quem, neste poema de extermnio, dava ainda a nota mais sinistramente aguda, era essa atormentada frandulagem humana, quando, sbre o convs encharcado [16] rojados mistura, os seus altos gemidos em splica rasgavam ululantes o espao, formando um concertante macabro com o alardo brbaro da tormenta. Quando o Almera conseguiu por fim fundear, frente Madeira, a caligem persistente no cu, as grossas cordas de gua e as vagas alterosas no permitiam fcil s pequenas embarcaes acercarem-se do paquete, e furtavam arreliativamente contemplao do Silveira a maravilha habitual dsse scenrio paradisaco,o amoroso encanto da luz, a aragem perfumada do ambiente, a graa ingnua das construes, o azul translcido das guas, a esmeraldina frescura, o contrno sensual daquele monte atrevido de colinas salpicadas de claras harmonias, o deslumbramento sem par e a euritma incomparvel dsse atrevido anfiteatro pago, nico no mundo, apenas agora entrevisto pelos claros farpados na neblina, como atravs um entremeio de renda. Entretanto, bjo acima da pequena cidade flutuante, os vrios decks comeavam a animar-se; de tda a parte surdiam lindos rostitos timoratos, cautelosos bustos, ou enrgicos perfs, duras e arrogantes linhas masculinas, incrdulos ainda, vidos, curiosos, abertos numa cantante expresso de alvio ou movidos numa alegre inquirio de intersse; miravam-se solcitos, acercavam-se efusivos e palreiros, formando vivos grupos de acaso, intromiscando-se, reconhecendo-se, beijando-se; no salo aparatoso da 1. [17] classe, todo em boiseries e estofos, os compassos da orquestra espraiavam-se em molhadas ressonncias; no extremo oposto, pela grossa atmosfera heteroclita do bar, as rlhas do Champagne saltavam, preludiando estrdiamente o distanciar do perigo. Mas o Silveira, de fito sempre ao largo, no cessava de considerar o deslumbramento panormico da ilha; e ento viu como de roda do grande barco, arfante ainda e a escorrer, sbre a juba crespa e revlta do mar, dezenas de lanchas bailavam doidamente, em riscos de, num choque mais violento, se estilhaarem contra o colosso, na impossibilidade duma aproximao tranqila. E notou que vinham atulhadas de emigrantes, outros tantos mseros foragidos como aqueles seus tristes vizinhos de bordo, uns centos mais de desgraados que iam ser pasto da voragem insacivel dessas regies intrminas onde fulgura o mito precrio da riqueza; protico enxurro humano, encarnao polimorfa da desgraa na demanda hipottica da fortuna. Eram carne votada gleba, vtimas foradas da iniqidade econmica, a quem nem por isso o duro mercantilismo reconhecia a importncia do seu valor, como utilidade social. Eram lgrimas que vo trocar-se em prolas, vidas hericas que vo fundir-se em oiro, e que, no obstante, so tidas por nada por aqueles mesmos para quem o seu descraziante esfro tudo. Eram almas tratadas como coisas, e que ali em baixo esperavam transidas, no mar em clera, sob a chuva, [18] que os iassem como fardos midos, como valores mercants, como bagatelas, como bugiaras, como sucata, por uma corda. A operao era primitiva: atados em pequenos molhos por um grosso cabo, sem escolha, no importa como nem por onde, l vo subindo em cachos, escorrendo gua, atoadamente, morosamente,as mes com os filhitos a drso, chorando, agitando no espao as mos como vermes; os vlhos pendendo resignados na frouxido da impotncia; os moos ganhando distncia em arrancadas simiescas, e todos numa ansiada alternncia movendo os olhos pvidos entre a promissora segurana do navio, ao alto, e em baixo a fria glauca do abismo. Passada, porm, a Madeira, o tempo amainra, e agora, enquanto a dupla hlice do Almera fazia o seu arroteio manso de espuma, pela imensidade movedia do oceano o espelhamento lmpido do cu prolongava-se, guas adentro, em opalinas suavidades, em claridades duma transparncia infinita. Como conseqncia, a bordo restabelecia-se a tranqilidade e pelas diferentes cobertas a mancha buliosa e a sonora chalra dos viajeiros alastravam, cruzavam-se, demandavam-se e cresciam numa algarada cantante de alegria. hora de comer, j noite, Joo da Silveira baixou, entre os primeiros, a ocupar o logar de acaso que lhe haviam indicado e le aceitra dcilmente, no seu altaneiro desdm por aquela camaradagem fortuita de gentes vindas no sabia bem donde e destinadas a desvanecer-se [19] pronto, finda a viagem, no distanciamento vago da indiferena. Era o nico logar que havia ainda vago, numa pequena mesa para cinco talheres. Sentou-se. At quele momento, mal havia tido ocasio de encarar os outros comensais, abotoados naturalmente na constrangida reserva em que se nos fecha de ordinrio a expresso, visinhana de estranhos; porm, agora comeava a v-los sob um novo aspecto, voltava cada um aos seus gestos habituais, mutuavam-se olhares de confiante inquirio, sadavam-se efusivos, seguros, contentes. Fizera-os comunicativos a simultnea vibrao do perigo. direita tinha o Silveira um curioso espanhol, abundante, palreiro, grosso tipo de homem roando pelos 50 anos, calvo, vermelhao, grandes dentes ralos nos grossos lbios gretados e rxos, a barba grisalha curta e mal cuidada. Vestia com vulgaridade, e na lapela usada do smoking ostentava a roseta de Isabel a Catlica, sofrvelmente suja. esquerda ia um italiano, j entrado em anos tambm, ponderado, gordote, a papugem flcida das olheiras denunciando um grande viveur, a pele rosada e fina passada de cosmticos, um ar importante, as mos muito cuidadas. Seguia depois um joven chileno, irrequieto, pomposo, farta cabeleira revlta pastichando a indumenta cerebral dum gnio, um colarinho mole inverosmil, os olhos negros e ardentes como carbnculos, os dedos como que modelando incansavelmente no espao abstrusas, incompreendidas formas, O quarto comensal era um puro gentleman, [20] de finas maneiras, olhar inteligente e doce, um rio buo incipiente sbre a lisa ctis morena penujando, e uma linha geral atraente, correcta, comedida. Rijo temporal, hein?comentava com vivacidade, sacudindo a cabea, o espanhol, quando o Silveira tomou logar mesa. Foi de respeito!acentou pronto o chileno. No acha?tornou o primeiro interpelante, adiantando com intimativa o busto para o italiano, que se limitou a baixar a cabea num tcito assentimento. O joven brasileirito julgou oportuno corrigir: Foi forte, sim... ah! mas no se compara com as borrascas da Biscaia ou da Mancha. Ao que, num abundso gesto de desaprovao, o espanhol, agitando o guardanapo: No, isso l... O meu caro marinheiro, bem sei que homem da profisso... desculpar, mas no estamos de acrdo. Ento, eu no sei?E em tom convincente para o grupo:Olhem que foi um passo... um passo de ponersele uno los dientes de vara y mdia! Mas, parece que no houve desastres a bordo?aventurou quse maquinalmente o Silveira. E logo o outro, tranquilizador, dogmtico: Ah! no senhor. Nada! Nem desperfectos nem doenas. um grande barco ste. Acabo de o assegurar ao comandante, que deposita [21] em mim tda a confiana. Ah, l isso...E, num risinho envaidecido, atestou:Amigos vlhos! Contudo, aquela pobre gente da 3. classe... O soi-disant ntimo do comandante teve um desprezvel encolher de ombros: Ah, sim, naturalmente... alguns resfrios. Mas eu j por l andei. Que o comandante, j digo, para estas coisas no qure outro... Pois no h nada, no... Vo tomar musgo e leite. Una jugadita pasajera, no ms. O caso foi que a familiaridade banal desta aresta de dilogo determinou um comeo de conciliao do Silveira com o ambiente. le passeava agora distradamente os olhos pela trivialidade cosmopolita do recinto,sse vasto quadrilongo sussurrante e refulgente, todo em branco e oiro, com os seus colunelos tarracos, os metais scintilantes das vigas dos flancos, o tilintdo lmpido dos cristais e loias, e,constatava com orgulho,as lusas caravelas simblicas pinturiladas com arrogncia nos luxuosos vitrais do teto. Interessava-o o ambiente e atraam-no as figuras. E com os seus eventuais companheiros de comida, agora, numa saborida mutuao de impresses, ia travando gradualmente conhecimento.O espanhol, dr. Contreras, era mdico, pelos modos: um pobre diabo espalhafatoso e inofensivo... quando no exercia a profisso, e em quem a arrogncia dispersiva da figura buscava caridosamente iludir [22] a inrcia tacanha do intelecto. Parece que o seu govrno, para se descartar dum importuno e juntamente evitar ao pas o aumento na cifra da mortalidade, o comissionra in perpetuum para seguir estudando as condies de sanidade a bordo dos grandes transatlnticos. Um pretexto inocente e a misso mais a carcter para ste pobre Esculpio rebours, cuja educao profissional cristalizra na teraputica obnxia dos purgantes e das sangrias. Norberto Mackenna, o joven chileno, era um pintor cubista que ao seu pas tornava, aps 4 anos de regalona vida em Paris, sectrio enrag de Picasso e grande devorador de azeitonas. O moo brasileiro era o tenente da marinha Euclides Pereira, que ia matrimoniar-se a S. Paulo, de regresso tambm duma viagem oficial de estudo. O italiano, finalmente, sse dizia-se marqus e da mais alta estirpe. Descendia dos Colonna di Mafiori, e em lances sucessivos de azar desbaratra ao jgo o melhor da sua fortuna. Esta maldita obsesso desfolhra e deixra totalmente a nu, de prospia e de oiro, o seu frondoso e arcaico talo genealgico, abatido agora burgusmente ao mercenrio ofcio de balco. Porque o marqus ia a Buenos-Aires negociar em alfombras. E dizia estas displicentes coisas numa resignada bonomia, com clara singeleza, com altivez, quse com brio, mirando as unhas; e imobilizava-se em atitudes de dignidade distrada ante a natural incidncia da ateno alheia. Com o brasileiro seguiu o Silveira, no ascensor, [23] ao salo da 1. classe, pronto irmanados os dois nesta instintiva aproximao em que os prendiam identidades seculares de lngua e de raa. Em cima, o recinto estava pleno da mais variada gente, e havia o confiante abandno familiar dos estmagos contentes. s curiosas, inquiries do Silveira mal podia o tenente Euclides, tam hspede ali como le, cabalmente responder, limitando-se quse a inform-lo sbre o que sabia das famlias suas compatriotas. E que estas no s abundavam ali, como tambm, com a sua vivacidade despretenciosa e a sua bonachona loqacidade, davam a nota dominante. Norte-americanos, e inglesesles e elas,mal avanavam, um instante, pelas portas laterais, as cabeas arrogantes e logo partiam, por um momento desviados na sua desportiva tarefa de fazer indefinidamente o circuto do barco, em largas e slidas passadas. Havia chilridos, cantos, vos, jogos inocentes de crianas; implicativos snobs que continuavam a imperturbvel leitura trazida, sem intervalo, do comedor, forrados agora na aptica moleza dum fauteuil, cruzando as pernas; e ao lado duma aparatosa francesa, de cabelo duvidosamente loiro e traje no menos equvoco, um derrancado vlho sonoleava. Mas o Silveira, que se dirigia a Buenos-Aires, buscava de preferncia exemplares argentinos; queria verificar ali, em documentos vivos, flagrantes, se lhes assentava bem essa fama de galhardia, de distino, de urbanidade e opulncia, da beleza soberana nas mulheres e de [24] enfatuado estiramiento nos homens, que fazia do nome argentino o giro dominador pelo mundo. De argentinos, aqui a bordo...informou, circunvagando em trno a vista, o Euclides, hesitante,no esta a poca... No dou conta seno duma famlia. E apontava-lhe, em cauteloso grupo parte, num dos tpos do salo, um homem grosso e grisalho, todo de negro, a face totalmente escanhoada, com uma senhora idosa, vestida de negro tambm, muitos anis e colar de prolas, sentada em meio das duas filhas. Poisavam singelamente, sem estudo, sem afectao, o ar abstracto, numa atitude natural de abandno tranqilo. As duas senhoritas principalmente parecia quererem delir-se numa suave atmosfera de simplicidade e renncia que era a anttese formal de todo o propsito de exibio galante: contudo havia na sua linha geral, sobretudo duma delas, um no sei qu de espiritual seleco, de fino, de subtil, de espontneamente belo e vagamente alado, que comeava por fixar com agrado a ateno e gradualmente nos trazia alma um superior encanto. Seguia interessadamente o Silveira, por entre as volutas quimricas do fumo do charuto, o exame desta esquiva e singular figura, quando, todo sorridente e afvel, se aproximou dle o marqus: que perdoasse, se acaso o vinha molestar... mas queria apresentar-lhe um compatriota assaz distinto, fidalgo tambm, como le... [25] no tanto... e como le arrunado. Amvelmente o Silveira acedeu, e da a instantes sentia o efusivo aprto de mo do conde Amglio di Paoli, espcie de emrito charlato internacional, vivo, matreiro, na larga face a inaltervel palidez dos cnicos, farta cabeleira negra, a mirada penetrante e fugaz, os gestos abundantes. Duros golpes da fortuna,dizia,o haviam constrangido a demandar a Amrica para ver se conseguia colocar a meia dzia das melhores telas da sua esplndida galeria. Telas dos sculos XV a XVIII. Ricos pedaos da sua alma! Um sacrifcio enorme... No tivra a coragem de o consumar na Europa, onde o extraordinrio valor das suas coleces era alis bem conhecido. Exprimia-se com abundncia teatral de efeito, num atroplo de frases mortificadas exteriorisando como que o pejo da sua precria situao; e tudo era desatar-se em atenes e lisonjas perante sse grande aristocrata portugus em que a sua cabotina codcia farejava erradamente uma vtima. Luzia no smoking uma roseta vermelha e branca. Porm, o Silveira achava-o plebeu, mrmente posto em confronto com o divino perfil, de Madona, da irlandesa que se lhe sentava ao lado. Era sua mulher. Num dado momento, a querer captar a confiana do Silveira, apresentou-a; depois, sempre nas suas prolixas aclaraes e deferncias, ia atropelando: que levava a assim... havia de ver! um pequeno mostrurio de obras tdas de mestres, que eram puras maravilhas. Vend-las-ia [26] mesmo perdendo, que remdio!... E que, em Itlia, le era assim um como que avaliador oficial de objectos de arte, pois fra o inventor dum engenhoso processo de constatar a autenticidade dum quadro por meio da microfotografia. O nico infalvel! No sabia?... Era um mtodo ignorado, exclusivo seu, porm a um tam nobre senhor,batendo-lhe amigvelmente no ombro, epilogava,no teria dvida nenhuma em o fazer comparte do segrdo. O Silveira escutava-o numa indiferena corts, distradamente; enquanto o melhor da sua ateno se fundia com deslumbrada ternura na figura adorvel da irlandesa, que lhe agradava enormemente, com o seu ar repousado e cndido, a linha purssima das feies, o arranjo tico do cabelo castanho, o busto sbriamente redondo, o gesto singelo e nobre. Da que, nos breves claros de repouso que lhe consentia a chalra interesseira do marido, le fez perante a diva o ensaio de algumas amabilidades discretas... deplorvelmente perdidas,logo le desolado verificou,porque esta deliciosa filha de Erin no falava nem compreendia seno a lngua do seu pas natal, de que o nosso desapontado gal no percebia patavina. Quando, pelas 11 horas, desceu cabine, o Silveira trazia vivo e palpitante no crebro o baralhamento policromo e difuso de tdas aquelas figuras, tda essa efmera kermesse de notas de acaso, na aparncia desconexas e de cujas cruas tintas, bruscas oposies e antitticas formas, [27] reumava contudo um encanto especial, uma clara e singular harmonia. Enquanto se despia, le notou que ali assim fra, sua ilharga, no tringulo aberto da pra, havia tambm alegria. Ali, a noite era qusi total. Uma nica pra elctrica, com reflector, esclarecia apenas o limitado espao ao seu alcance, e a maior poro do recinto ficava sob o domnio impreciso de vagas sombras danando sbre montes de andrajos. No aplastamento prprio desta hora de repouso e sob o mesmo invarivel tldo negro, os grupos, srdidos, compactos, alargavam-se e faziam monte sbre rolos de cordas, sbre as bagagens, sbre mantas vlhas, troixas, sacos, sbre esteiras; e a escassez da luz erguia em deformaes de pesadelo, emprestava monstruosas ampliaes de horror a sse caprichoso arranjo de cansao e de misria. Mas havia ainda muita gente desperta; mesmo encostados cabine do Silveira, dois rsticos italianos faziam pausadamente o interesseiro clculo de quanto poderiam vir a forrar, em cada ms, dos seus hipotticos salrios; um francs, mais longe, trauteava couplets canalhas; e tda a sorte de vozes, de idiomas, de murmrios, gritos, expanses, risadas que eram lamentos, suspiros que eram bocejos, tda a gama fruste da animalidade, tdas as brutas exploses do instinto, se entrechocavam e faziam cro nesta extica Babel flutuante, grosso concrto brbaro que afogava o marulho manso das guas e que ainda o spro galhofeiro dum [28] harmonium vinha cobrir, a espaos, com a sua toada chillona. Acomodado j o Silveira entre os lenis, pareceu-lhe distinguir o quebrado dedilhar duma guitarra, acompanhado duns acordes de violo... Apurou o ouvido, no havia dvida... a voltam les, trinaditos, leves, como quem est afinando, sses sons tam seus familiares, tam seus queridos. E agora so j os preldios dengues do fado, um fado choradinho e autntico como s a alma portuguesa, enamorada e fatalista, capaz de bem sentir. Da a momentos, em bom portugus, algum cantou: Das barbas do Afonso Costa Mandei fazer um pincel Para escovar as botinas Do querido D. Manuel. O Silveira saltou no leito, radiante, e ergueu meio busto, espera de mais, vidamente. J no se sentia tam s. A ironia gaiata daquela trova f-lo estremecer de vindicadora alegria. Esta descoberta inesperada espancava-lhe o sono, aclarava-lhe a alma. Oh, a justiceira voz do povo! O desdobramento do mote devia ser impagvel. Vamos a ver que mais vira... O ignorado trovador cantou ainda outras duas quadras, porm j sem intersse para o Silveira, porque gemiam lamechas trivialidades de amor. No entanto, o grato alvoro daquela primeira impresso ficou. No era s le... [29] comprazia-se em repetir no ntimo, vivamente sensibilizado por ste trao imprevisto de afinidade moral com gentes de condio tam abaixo da sua. Tinha ali assim, tam perto, analogias de sentir e fveras de dio como as dle, e a sbita descoberta desta conformidade palpitante trazia-lhe confrto. Inimigos tambm do novo regmen... dando-lhe costas, maldizendo-o como le. E mais eram do povo, pudra!... do povo, sim... sse pobre e sempre ingnuo povo portugus, de cuja hipcrita adulao os rpublicanos haviam feito plataforma essencial de propaganda, e que depois do triunfo estavam agora burlando inquamente. Ah, mas les lhes diriam! Brava gente! E tinha-os ali seus ......Buy Now (To Read More)

Product details

Ebook Number: 24919
Author: Botelho, Abel Acácio de Almeida
Release Date: Mar 26, 2008
Format: eBook
Language: Portuguese

Contributors

Editor: Grave, João José, 1872-1934

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