Os meus amores: Contos e baladas

Os meus amores: Contos e baladas

Os meus amores: contos e balladas Title: Os meus amores Subtitle: contos e balladas Author: Trindade Coelho...
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Author: Coelho, Trindade,1861-1908
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Author: Coelho, Trindade,1861-1908
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Os meus amores: contos e balladas

Title: Os meus amores Subtitle: contos e balladas Author: Trindade Coelho Release Date: January 12, 2006 [EBook #17503] Language: Portuguese Original Publication: , Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira 50, 52--Rua Augusta--52, 54 Typographia e Stereotypia Moderna 11--Apostolos--11 1894 Credits: Produced by Carla Martins Ramos and Ricardo Diogo. Edited by Rita Farinha (Biblioteca Nacional Digital--http://bnd.bn.pt). (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal) Produced by Carla Martins Ramos and Ricardo Diogo. Editedby Rita Farinha (Biblioteca NacionalDigital--http://bnd.bn.pt). (This file was produced from images generously made available by National Library ofPortugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) NOTA: Este texto tem uma verso em lngua portuguesa moderna, a que pode ser acederclicando na ligao: TEXT OS MEUS AMORES TRINDADE COELHO OS MEUS AMORES (Contos e Balladas) 2. edio LISBOA Livraria de Antonio Maria Pereira 50, 52Rua Augusta52, 54 1894 LISBOA Typographia e Stereotypia Moderna 11Apostolos11 Ao Doutor Antonio Xavier PERESTRELLO Os Meus Amores Folhas dispersas dos meus annos de oiro, Vivo enxame das minhas alvoradas, Tenho zelos de vs, folhas sagradas, As Desdmonas sois de um outro moiro. As brancas horas que eu em sonhos doiro, Essas horas febris, illuminadas, Eil-as fugindo, em tristes debandadas... Levaes nas azas todo o meu thesoiro. Folhas: subi, voae ao co to alto, Que o ceo em estrellas vos converta e mude, L nas longinquas illuses que exalto; Como as frementes aguas d'um aude, Levae a Deus, no derradeiro salto, O derradeiro adeus da juventude... Luiz Osorio. [1] IDYLLIO RUSTICO A Fialho d'Almeida. Quando atravessou a povoao, rua abaixo, com o rebanho atraz d'elle, era ainda muito cedo. Ao longo das ruas tortuosas, as portas conservavam-se fechadas, e no vinha das habitaes o mais insignificante ruido. Dormia-se a somno solto por todas aquellas casas. Apenas algum co, subitamente acordado em sobresalto pelo chocalhar do rebanho, ladrava do alto dos escadorios de pedra onde ficara de sentinella, ou de dentro das curraladas, onde levara a noite fazendo companhia aos novilhos. D'onde em onde, gallos madrugadores entoavam matinas sonoras, que eram como risadas vibrantes de bohemios, n'alguma esturdia, a deshoras... Mas passadas as ultimas casas, o silencio condensava-se para toda a banda, n'uma grande pacificao de templo adormecido. Nem viv'alma pela ladeira que levava ao rio, por um caminho em zig-zags. Fulgiam no co [2] azul-escuro cardumes prateados de estrellas. A toda a largura, a paizagem era torva e indecisa, immersa n'uma luz muito mortia que nem era bem a da madrugada, nem era bem a da noite. No emtanto a manh era calma; nem rumores de briza pela rama das azinheiras velhas que faziam guarda ao corrego por onde o rebanho tomara. Cigarras, grillos nas hervagens, rs que coaxavam nas regueiras, era o mais que se ouvia acima do rumor brando dos chocalhos. Nem um balido de ovelha em todo o rebanho que se ia submissamente merc do pequeno pastor, parando se elle parava a colher as amoras frescas dos silvados, recomeando marcha se de novo elle se punha a caminhar. Quando passou rente ao meloal da fidalga, ouviu-se o ruido de um tiro, que o echo levou para longe. No gastes polvora, Antonio!recommendou o pastor.Ouviste? E logo a voz do guardador: Madrugas hoje, Gonalo! P'ra que saibas: c um homem no tem medo. Est bem. Adeus! Saudinha. A esse tempo ia-se j definindo a manh, na luz, no som, na cr. Invadia a amplido da cupula celeste uma tinta alvacenta, onde as estrellas feneciam no seu brilho. Ao alto, na ladeira d'alm, entravam de fazer-se nitidas as linhas sinuosas das cristas, onde enormes rochedos tinham altitudes de uma immobilidade mysteriosa e sinistra... [3] N'este assomo d'alvorada, as coisas iam despertando lentamente para a alacridade vigorosa da luz. Das moitas e sebes, calhandras era bandos levantavam-se repentinamente, em vo perpendicular, e cortavam ares fra, chilreantes e alegres, at se perderem de vista por de traz dos arvoredos e cabeos. De cauda em riste e orelhas immoveis, o rafeiro espreitava as hervagens seccas, onde algum reptil passasse vagaroso. Busca, Turco!fazia-lhe o Gonalo que tinha medo s cobras.Busca, valente! medida que descia a ladeira, um marulhar monotono de aguas ouvia-se, mais e mais distincto. Era o rio que parecia perto; mas primeiro que l se chegasse ainda era preciso andar... Era um poder de passos e de paciencia,reflectia o pastor, a quem aborreciam de morte os interminaveis torcicollos da vereda. Ia andando, descendo sempre, frente do rebanho silencioso. E quando os sapatos comearam de calcar areia, e ali, perto, o rio lampejava, sob aquelle co ainda estrellado, o Gonalo desabafou: Uff! at que emfim!E pensava aliviado:Nada mais facil do que terem-me sahido os lobos!... Mas vista quella hora, e no meio de tal silencio, a corrente liquida tinha o que quer que fosse de sinistro, que evocava lembranas aterradoras, espectros dos que ali mesmo tinham morrido afogados, n'uma lucta desesperada com as aguas, clamando em vo que lhes acudissem, em tamanho transe afflictivo. A margem de l, especialmente, era toda accidentada de rochedos informes, blocos medonhos, por entre os quaes no inverno o vento assobiava lugubre, e as aguas faziam remoinho, o que era um perigo para os pobres barcos que se aventurassem [4] incautos, n'um descuido involuntariosimples remadela pouco a tempo, manobra menos segura de leme, ou impulso errado de vara. E ento, cabeos enormes d'um lado e d'outro, projectando sobre o largo leito do rio a sua sombra pesada e desconforme, que mais triste fazia o sitio e parece que mais solitario, pois fechavam-no bruscamente, fazendo limitada a paizagem. A todo o comprimento da margem, o rebanho pz-se ento a beber manso e manso, e sem o minimo ruido. Foi quando o Gonalo acabou de se convencer que na margem de l, um pouco mais abaixo, outro rebanho bebia tambem. Tte, Gonalo! Aquella chocalhada... E immovel, remordendo o labio, com o ouvido escuta, pensava: Ora se ser ella?... Subito, estremeceu. Ante o seu espirito infantil perpassou, como um claro de relampago, a imagem de uma rapariga, pastora como elle, com quem se havia encontrado mais vezes, mas que havia muito no vira. Ai, se fosse a Rosaria!... dizia comsigo. E impondo silencio ao rebanho, que acabara de beber, pz-se attentamente escuta do tilintar dos chocalhos na margem opposta. [5] O rebanho parecia o mesmo, l isso... Agora o pastor que podia ser outro que no a Rosaria... Seno quando, uma ideia lhe acudiu que o fez sorrir de contente. Atirou ao cho a manta e o marmeleiro, e puxando para deante o bornal, feito da pelle de uma ovelha branca, morta pelas segadas, tirou de l a sua flauta e pz-se a tocar apressadamente um trecho de cantiga rustica. No mesmo instante, uma voz muito sonora gritou-lhe: Ehl, Gonalo, s? O pastor desatou a rir. Uhl, Rosaria, eu mesmo! Guarde-te Deus, pimpona! E logo a voz fresca da rapariga lembrou: No te esqueceu a moda, rapaz! Isso esquece ella!... Ouviste, Rosaria?Se outra fosse que m'a tivesse ensinado... N'este meio tempo j o Gonalo retomara a manta e o marmeleiro para ir ter com a Rosaria. Mas primeiro perguntou: Boto pela ponte, ou s tu que vens, cachopa? Vem tu d'ahi. Por c sempre outra coisa p'r'as ovelhas. Han? Basta! [6] E dando o signal da partida, o Gonalo pz-se em marcha. D'ahi a pouco, entrava mais o rebanho pela velha ponte moirisca, toda severa de construco nos seus tres arcos lanados sem elegancia, atufados de parasitas seculares que a faziam pittoresca, heras, silvas, ortigas bravas. A meio da ponte, mo piedosa fizera construir pequeno oratorio ao Senhor Salvador, cujo rosto sereno, espreitando por grades de arame, diziam dar coragem a barqueiros e almocreves, que ante o pequeno e humilde nicho com respeito se descobrissem, e com devoo rezassem uma velha prece que era como um talisman precioso para livrar de maiores desgraasnaufragios no rio, e ento maus encontros por aquelles caminhos escabrosos, que eram um perigo constante para homens e animaes. D'ahi a pouco, as duas creanas estavam perto uma da outra, cada qual seguida do seu rebanho. Ora viva a Rosaria!disse o pastor muito alegre, parando defronte da cachopa. Bons dias, Gonalo; ento que ventos? Entre os dois travou-se ento um longo dialogo em que se contaram tudo o que haviam feito desde aquelle dia em que ambos tinham voltado juntos da feira dos Canios. Por signal que nem rez se vendeu!lembrou o Gonalo. Por signal!disse com pena a Rosaria. [7] Mas elle contou que viera por ali muitas vezes, muitas, sempre na f que a encontrava. Vl-a agora, s por milagre de santo; quem o havia de sonhar! Nanja elle... Mas se eu estive to doente!volveu triste a Rosaria. E como o outro acudiu a informar-se, ella explicou: Umas quarts que me tiveram mondada! A peste as mate! Febre que era mesmo lume desde manh at ao escurecer... Uma assim! E na sua ingenuidade infantil, contou ao Gonalo que muitas vezes, na febre, sonhara com elle, que se encontravam os dois por montes e prados, como agora tinha acontecido, tal e qual. Assim te Deus salve, Rosaria?atalhou rapido o pastor, a quem enchiam de orgulho os sonhos d'aquella pequena amiga. Assim; pois que duvida?tornou-lhe confiada a Rosaria. No!disse agastado o Gonalo.No has-de dizer assim... Diz certo, has-de jurar direito. Pois assim me Deus salve... Como verdade...Diz tudo, Rosaria!supplicava o pastor. Sim, volveu-lhe paciente a companheira,como verdade que sonhava que nos encontravamosconcluiu por fim, muito risonha. [8] E sem disfarar o jubilo, prestes o Gonalo a certificou de que tambem no a esquecera. Tanto que tirava da frauta as cantigas todas que ella lhe tinha ensinado. Lembras-te? A Rosaria faz que sim com a cabea. E logo, batendo na frauta de sabugueiro, o pastor apressou-se a declarar: Sahem d'aqui sem falhar uma.E resoluto:V feito, Rosaria, pede por bocca! A Rosaria pediu ento a Pastorinha. Eu da que mais gosto,explicou. a mais linda. E !concordou o Gonalo.Ora escuta l. E levando aos labios a avena, pz-se a tocar a Pastorinha, emquanto a Rosaria, com a sua vozita em surdina, entrava a tempo com a lettra: Onde vs, Pastorinha, Ai-li, ai-li, ai-li, ai-l... Sabes essa! mesmo assim!disse-lhe a Rosaria a rir-se. como vs!affirmou contente o Gonalo. Aos seus ps tinham-se deitado os rafeiros, e j os dois rebanhos, confundidos, andavam na pastagem. Olha as ovelhas juntas!notou o Gonalo. [9] Tambem ns nos quedmos juntos,volveu-lhe a pequena, sorrindo.As pobres do-se bem, so amigas...continuou com jubilo. E ns tambem, ora tambem, Rosaria? Tambemrespondeu afoita a pastora. E foram-se ter conta no rebanho, que choviam as coimas e as denuncias. A esse tempo, no co alto e lavado a estrella d'alva fenecera por fim, e o horisonte comeava de carminar-se ao de leve. Por todo o co em cupula, a luz fresca e viva da manh vibrava harmonias extranhas que iam despertar tudo, a cr da paizagem e a musica dos ninhos, cantigas de perdizes e rumor de gente por moinhos e atalhos. Manh de vero, serena, tranquilla, dulcissima. Ia pelo ar um movimento extraordinario de azaspassarada alegre que sahia agora dos ninhos e voava a matar a sde borda das ribeiras, andorinhas que deixavam as suas casinholas em reconcavos de rocha e tomavam para hortejos convisinhos onde a vegetao era mais rica de seiva e mais facil a presa dos insectos, perdizes gralhadoras que iam de monte em monte, tordos, poupas, melros. Nos vinhedos das encostas, por entre os renques verdejantes, gente em mangas de camisa ia fazendo as vindimas. Pelos caminhos, em torcicllos, viam-se os que desciam aos moinhos, tangendo machos carregados de taleigos, e berrando-lhes cada ch! que se ouvia na outra ladeira. J nas povoaes proximas sinos chamavam para a missa d'alva ou tocavam a Ave-Marias. Nas quintas e casas fumegavam os tectos, dizendo [10] horas de almoo. De modo que o sol quando rompeu, solemne e triumphante no co immaculado, encontrou muita vida pelos campos, toda a natureza acordada para a labuta interminavel do dia. N'uma clareira elevada, dominando o rio e um trecho de paizagem para sul, tinham-se sentado os dois pastores e continuavam conversa. Ao pastor parecia-lhe agora mais bonita a pequena amiga, com a sua cr trigueira levemente pallida desde que tivera as maleitas. No se lembrava com que santa que elle tinha visto se lhe parecia agora a Rosaria... Mas o cabello assim cortado...disse com magua, mirando-lhe a cabea nua, e passando a mo pela d'elle, que te no fica bem! Melhor fra que lhe tivessem deixado as tranas. Negras, de mais a mais, que era como elle gostava... Promessa da me se eu melhorasseexplicou a RosariaLembranas... A gente quando est afflicta... ...Quando est afflicta...repetiu como um echo o pequeno. E depois, amuado:Se promette os olhos... A rapariga fitou-o, espantada. ... porque t'os tirava!concluiu convicto. Houve um momento de silencio, em que o Gonalo se pz a escavar o cho com uma pedra, e a Rosaria a torcer um fio saliente do seu vestido grosseiro. Ouviam-se as ovelhas chocalhando nas pastagens, ia a passar na rodeira, longe, um carro que chiava, com uvas para algum lagar. [11] No fallas, Rosaria?perguntou o pastor sem levantar os olhos para ella. Tambem tu...comeou com medo a pequena,logo te zangas! Olhem a lembrana dos olhos! Se a me fazia isso, credo!E depois animando-se:J foste Senhora dos Remedios? O Gonalo fez signal que no tinha ido. Pois foi l que deixmos as tranas, eu mais a me. N'um prego ao lado do altar, um lacinho verde nas pontas. Ficou lindo. O pastor teve um movimento de enfado, no lhe agradava a conversa. E para acabar com ella: Que emfim como melhoraste...fez que concordava, pondo o bilro a girar.Olha como dana...E depois, mais pensativo, batendo com o bilro nos dentes: Que s vezes as promessas pouco fazem...E interrompendo:Sabes quem fez este bilro? Foste tu, aposto. Bateu no peito e fez com a cabea que sim, mostrando-lh'o orgulhosoque visse os torneados. Depois continuou: Vae uma pessoa andando e os santos no se importam. Ora, os santos!Olha a minha Joaquina, tu no conheceste. A gente bem resou e bem promessas fez, mas ella foi-se. [12] E pondo-se de joelhos, comeou a procurar pelo rebanho. Aquella ovelha, a branca, no vs? A que se vae agora deitar... Pois era p'ra Nossa Senhora, repara que a melhor.E deitando-se para traz:L anda ella a pastar!concluiu desalentado. Mas tinha de ser,volveu-lhe triste a Rosaria,que as promessas sempre fazem, l isso... E convicta, a pequena contou casos acontecidos para convencer o Gonalo de que sempre valiam as promessas. No emtanto, deitado de costas, com a jaqueta a fazer de travesseiro, as pernas em angulo tocando-se com os joelhos, o Gonalo soprava pela palha o bugalhinho que constantemente ia subindo e descendo, acompanhado pelo olhar bondoso do co que ali perto se deixara estar sentado. E contando, contando casos, a Rosaria ia entretendo o pastor. Mas quando ella fazia pausa, logo o rapaz acudia, firme na sua objeco: Ora! mas a nossa Joaquina morreu-se! Coitadinha da Joaquina! medida que o sol ia subindo, no co glorioso e fulvo, iam os dois conduzindo as ovelhas para sitios mais ensombrados, para se livrarem da estiagem que ia valente. Calor de rachar, ali por volta do meio dia, que foi quando tomaram para a banda das azinheiras, e para os pinheiraes, depois. E sempre ao lado um do outro, os dois companheiros levaram de conversa quasi o dia inteiro. Nunca tinham dado f que as horas passassem to depressa. [13] Ainda armaram aos passaros, mas foi o mesmo que nada, os demonios andavam espantados e j conheciam as esparrellas. Olha l no caiam,tinha dito o Gonalo, j canado de estar espreita, agachado, com o fio da armadilha preso ao dedo.Se elles fossem tolos... E foi-se a recolher as esparrellas, dando ao demonio os passaros. Ella ento propoz que jogassem a pocinha. E o fito, Rosaria? Sabes jogar ao fito? No adro, aos domingos de tarde, bato-me com qualquer, sabias? E generoso:Mas a ti dou te partido: vinte e cinco s quarenta... Como o tempo rendia, jogaram tudoa pocinha, o fito, as necas, a bilharda. Na bilharda, como o rafeiro trazia mo, era elle que ia buscar o pausinho, quando zinia longe. Turco, traz c! No emtamto, ia descaindo a tarde. Ao alto, o largo co esmorecia no seu azul suavissimo. Em todo o espao o ar estava tranquillo e sereno, e j comeava para poente a decorao phantastica do occaso. Parece que se ouvia mais distincto o marulhar das aguas no rio; j no faiscava assim to viva a areia branca das margens. Foi quando o Gonalo lembrou que era melhor irem-se chegando, mais as ovelhas, para as terras onde tinham de [14] pernoitar. E fitando fixamente os olhos negros da Rosaria, disse-lhe assim: Mas olha o que prometteste... Inda vaes feita no que disseste? Ora que lhe custava a ella! J que as ovelhas tinham andado juntas todo o santo dia, que mais era que dormissem no mesmo curral, essa noite? E o mais, Rosaria?perguntou de novo com interesse. A pequena ficou perplexa. Mas como o pastor no cessava de a olhar, respondeu: Tambem.E sorriu-se.Pois eu... S depois d'esta segunda promessa o Gonalo se levantou, e deu o signal de partida, assobiando aos ces. D'ahi a pouco, estavam de marcha para o curral, Quando passavam a velha ponte, a obliquidade dos raios do sol fazia alongar desmedidamente pelo areal a sombra dos tres arcos. Nas rugas da corrente, uma luz alaranjada tremeluzia, tirando agua a sua translucidez normal. bonito!fez notar o pastor. A Rosaria explicou logo: So as moiras a caar com redes d'oiro, sabias? Para a outra banda, um pouco mais abaixo, assomavam flr da corrente as cabeas dos dois rapazotes do moleiro. Dentro da chata que vogava serenamente, a me [15] com o mais novito ao collo no os perdia de vista, emquanto o pae, em mangas de camisa, de p n'um topo de fraga, lhes ia ensinando as manobras. Ao fundo, tres vitellas passavam o rio a vau, muito devagar, parando a espaos, alongando o pescoo para a veia d'agua serena, bebendo mansamente. Sobre o vitello das malhas brancas, o guardador cantarolava, acenando com o chapeu ao moleiroboas tardes! boas tardes! Ao sahir da ponte, o rebanho teve de se affastar um pouco do caminho: aproximava-se um almocreve com a longa fila de machos carregados, tilintando campainhas. Adeus pequenos! cumprimentou. Venha com Deus!tornaram-lhe ambos. E de novo se pozeram em marcha. As ovelhas continuavam confundidas, confraternisavam os ces como bons e leaes amigos. frente, o Gonalo ia tocando na flauta o mesmo que a Rosaria cantava. O brando rumor dos chocalhos, que se levantava de todo o rebanho, casava-se com a musica, fundindo-se n'uma nota subtil, d'um pittoresco ingenuo de ballada... At que chegaram a um topo de serra, escurentado de matagal rasteiro, e ento, parando um momento, o Gonalo perguntou, collocando na sua frente a Rosaria, e pondo-lhe cara a flauta, na direco em que devia olhar. Vs alm... n'este direito? Rez-vez do castanheiro, no enxergas? A outra fez que sim com um gesto, e interrogou: Ento ali? [16] Ali mesmovolveu-lhe j de marcha. E repoisando a mo direita sobre o hombro esquerdo da rapariga, repetiu-lhe muito contente: mesmo alm. N'uma terra de restolho, um largo quadrado de cancellas marcava o espao que as ovelhas tinham de occupar essa noite. Falta pouco; a gente vae pelo atalho que s mau p'ra quem passa a cavallo. E como elle ia expansivo, e a companheira no dava palavra, quiz ento saber: Ests triste, Rosaria? Triste... no. J agora... tem de servolveu-lhe cabisbaixa. Huum! Arrependeu-se...volveu comsigo o pastor. At que por fim chegaram, tinha anoitecido havia instantes. Gado para dentro e toca a merendar; o que era d'um era d'outro: elle ainda trazia azeitonas, um naco de queijo, po. Mal acabaram de comer, o Gonalo apontou para a cabana que ficava alli perto, e propoz que se deitassem: estavam modos da soalheira de todo o dia e da caminhada agora. [17] Quando o Gonalo e a Rosaria entraram na cabana e se deitaram sobre o colmo, cobrindo-se com as mantas, e achegando para a cabea um do outro os bornaes que faziam de travesseiro, cerrra de todo a noite, e formigueiros de estrellas scintillavam vivezas de prata polida no azul indefinido do co. E os lobos?perguntou a Rosaria com medo. No ha perigotranquilisou-a o Gonalo.Isso l com os ces. Pouco a pouco, foi-se extinguindo no curral a musica triste dos chocalhos. A ladrar, os ces faziam echo. O rebanho devia dormir profundamente, immerso no mesmo somno em que jazia prostrada toda a Natureza, ao largo. Dentro da cabana, os dois conversaram algum tempo, n'um ciciar brando de vozes, at que por fim, vencidos da fadiga, se deixaram adormecer,quando a historia das moiras encantadas ia no seu melhor episodio... E l no alto co, mesmo sobre a cabana, a estrella da tarde no era nem mais pura nem mais luminosa do que a alma simples e boa d'aquellas duas creanas... Quando ao repontar da manh se levantaram, e sahiram a vr o co... Bonito dia, Gonalo! Bonito dia, Rosaria! Olha... ...na calma placidez do azul, bandos de pombas mansas iam voando... voando... SULTO (Copiado do Natural) Ao meu Henrique e a Beldemonio, seu amigo. I Ao cair da tarde, o Thom da Eira entrava em casa, canado, esfalfado de andar um dia inteiro a mourejar no campo. Meus peccados, boa tarde!dizia elle para a mulher, com um sorriso a affectar seriedade. Vinha logo o pequeno, o Manuel, de mos postas pedindo-lhe a beno. Deus te abenoe. Pae, olhe que o Sulto... ia a dizer o pequeno. Bem sei! atalhava logo o Thom.O Sulto um maroto e tu s outro. [20] E emquanto procurava no bolso da jaqueta a sua bella navalha de meia-lua, que lhe custara um pinto havia bons quinze annos, e abria a gaveta do po, o Thom punha-se a fazer de interesseiro comsigo mesmo, resmungando alto p'ra que a mulher o ouvisse: que por este caminho no tenho um dia descanado... Nem uma hora... Vinha a mulher com as azeitonas, com o queijo, sem dar palavra. ...Pois vamos j que j era tempo... Porque p'ra mim ha de chegar... A modos que vou j canando... Mas o Thom no era homem que dissesse estas coisas de corao. Pareciam-lhe longos, interminaveis, os aborrecidos domingos que passava sem ir campos fra, madrugador como um melro. Uma aquella como outra qualquer! dizia o bom do Thom encolhendo os hombros, como quem est desgostoso com um genio assim. Partiu uma ampla fatia, um naco de queijo muito branco, do leite da sua cabrada, e veiu sentar-se, consolado, ao fundo da larga escada de pedra que dava para a rua, arregaado, em mangas de camisa, muito vontade. Costume velho do Thom:mal se sentava, mastigando o boccado, dizia logo para o filho: Ouves, Manuel? Bota c fra o Sulto. [21] O rapazito corria o caravelho de uma pequena porta lateral, que rangia nos gonzos ao impulso dos seus bracitos rolios, e punha-se a pular de contente, dizendo c da rua: Sulto! Sae c p'ra fra, Sulto! No fundo negro do pequeno cortelho, na moldura rectangular da porta baixa, destacava-se ento a cabecita parda de um jumento, orelhas em riste, grandes olhos de uma tristeza perpetua, n'um movimento moroso de palpebras pestanudas... E ali se quedava parado, absorto, muito bem posto nas suas pequeninas pernas delgadas, a olhar o Thom que o chamava,um grande riso de alegria nas feies amorenadas, contente de ver o seu Sulto. Mas o pequeno jumento no avanava um passo, divertindo-se em arreliar o Thom, fitando-o com um ar estagnado. Altivo na sua nobre linha de quadrupede de boa raa, alguem lhe poderia lr no olhar, mole e impassivel, o frio, gelado despreso a que parecia votar o dono... Mas era quillo mesmo que o bom do lavrador achava graa. E punha-se ento a fallar muito serio, entre resignado e cortez, para o pequeno e desdenhoso jumentoo po e o queijo esquecidos n'uma das mos, na outra a navalha de meia-lua: Ento, Sulto, no vens? No! parecia responder-lhe o animal. E abstracto, continuava a envolvel-o no seu olhar profundo. A quebrar a harmonia d'aquella immobilidade de estatua, apenas [22] de quando em quando uma pequenina patada na soleira, zap! Zangado, Sulto? perguntava o lavrador.De mal comigo? E prestes voltava a cara para a outra banda, para se rir vontade...que no fosse vel-o o Sulto... Mettia entre dentes um pedacito de queijo, logo uma codea de po, e fazendo umas grandes rugas na testa, de quem comea a zangar-se, voltava-se ento muito serio: Ficas ahi, Sulto? J no s meu amigo? O gerico abatia um pouco as orelhas, inclinava o pescoo, parece que fazendo-se humilde... Ento se s, anda d'ahi. Olha...E mostrava um pedacito de po.P'ra ti se vieres... O Sulto dava tres passos, e ficava fra do cortelho. E por se vingar, o Thom carregava o semblante n'uma seriedade muito pesada, e erguendo o rosto iracundo chamava-lhe interesseiro, maroto, affirmando que j lhe no dava o po. E desfechando-lhe emfim a ameaa de o vender a um cigano, entrava a tratal-o por senhorsr Sulto... Mas o pequeno jumento ia andando muito devagar... andando... orelhas baixas, pescoo cahido, a modo de arrependido, parece que pedindo perdo da arrelia. Nervoso, sapateando, o Thom voltava a cara para a outra banda, a rir como um perdido. Diabo do gerico! diabo do rato! Capaz elle de [23] fazer rir as pedras, o mariola!E tossia de engasgado, uma migalhita de queijo na guela. No emtanto, o Sulto ia avanando, muito ronceiro, at que tocava com o focinho, levemente, nos joelhos do lavrador. O Thom sacudia-o: Sae-te p'ra l! dizia elle muito amuado, sem se voltar.Cuidas talvez que te no conheo, cuidas? J te no quero, vae-te! Mas como que irreflectidamente, fingindo no querer, chegava-lhe ao focinho um pedacito do po, o melhor da fatia. Sulto lanava um olhar obliquo, entre surrateiro e medroso, levantava cautelosamente o beio superior, a tremer, e roubava-lh'o da mo. Pazes feitas! Era ento rir a perder, n'umas casquinadas agudas, muito estridulas. Credo, homem! dizia de cima, da janella, a sr.a Josefa.At pareces doido! Voc assim rouba seu dono? Diga! Voc assim rouba seu dono? perguntava o Thom, n'uns grandes gestos.Vamos que eu lhe no queria dar da merenda? Ladro, de mais a mais!... Ora bem! agora brinque. Era precisamente o que o Thom queria:ver o Sulto a brincar. ...Nada, com effeito, meus amigos, que mais divertisse o bom do lavrador, e melhor o indemnizasse d'aquellas fainas laboriosas que lhe consummiam os dias, imperturbavelmente, perpetuamente, sob soes causticantes e chuvas torrenciaes. [24] Por isso, era de ver como elle ria, com uma boa vontade deliciosa, das partidas e diabruras do Sulto! s vezes, o pequeno jumento, ferido no sei por que vespa invisivel, despedia sem mais nem menos n'uma carreira aberta, focinho entre as pernas deanteiras, agitando a cauda, por aquella rua fra. Rompia de toda a banda n'um alarido o rancho pacifico das galinhas, que j no ar andavam como doidas, cacarejando, como se um p de vento as levasse. Accudia gente aos postigos, s portas, s janellas, a ver a polvorosa; e subito se inundava a rua de rapazes, rotos, descalos, alguns quasi ns, correndo atraz do burro, gritando-lhe, acenando-lhe, espantando-ocomo se o mesmo vento de folia os houvesse varrido a todos, varrendo a propria rua... E um l ia a terra, e sobre esse passavam os outros, e sobre todos voava o Sulto, apupado, perseguido, acclamado, na malta espavorida dos inimigos... Sulto! eh l! Sulto! Subito, como se lhe estalasse a corda, o animal estacava, e logo de volta d'elle postava-se a rapaziada, mas n'um alor de nova fuga, no lhe desse na blha atacal-os... E abriam alas de repente, quando elle, tomado de novo accesso, voava para as bandas do dono, que por se no deixar atropellar investia com o Sulto de braos abertos, o que era, j se v, um modo de o abraar, fingindo medo. E vinham as gargalhadas estridulas, os rogos para que pozesse treguas, as supplicas para que se accommodasse, recuando o lavrador at ao ultimo degrau da escada, onde se deixava cair,derrotado! P'ra l, Sulto! p'ra l! fazia ento o Thom, oppondo-lhe os ps, desviando-o, apoiando-se nos cotovelos, muito inclinado para traz, a rir como um perdido. [25] Ento o pequeno jumento estacava, offegante. Mas prestes rompia a girandola dos coices, em que era eximio, sacudindo muito as patas, cauda no ar, muito direita, ao mesmo tempo que o Thom solicito dava aos rapazes o aviso de se arredaremporque era doido, aquelle demonio!... Outras vezes, parece que variando de tactica, entrava de seguir muito cauteloso, n'um ronceirismo perfido, como um borrego ou como um co, certa mulher que passava. At que l ia uma focinhada, e logo aps os saltos do costume, respondendo com uma ameaa de pinotes surpresa da viandante. D, tia Luiza! bata n'esse maroto! fazia de l o Thom, com ares de zangado. E depois, batendo o p, pedindo que lhe dessem uma verdasca:Sulto! venha j p'r'aqui! intimava. E se encontrava um co? Se encontrava um co, ia logo direito a elle, muito de vagar, cauda caida, orelhas murchas, n'um cumprimento humilde de focinho. O co regougava, desconfiado, entreabrindo a dentua, preparando a sua dentada. No dava o Sulto signaes de medo, e humilde proseguia para o outro, propondo paz. Mas ao primeiro latido, recuava um passo, espertando da sua indolencia passiva; e de espinha arqueada ganhava o terreno perdidofitando impassivel o co... O bruto formava ento o salto, regougando forte, o pllo eriado; e ao investir para a primeira dentada, salvava-o de um pulo o Sulto, evitando-o, at que por compaixo lhe dava um pequenino coice, mais feitio que outra coisa, pondo em fuga o mastim, corrido, ganindo, vencido: Eh! valente! gritava-lhe ento o Thom. [26] E com duas palmadas na anca, espantava-o emfim para o cortelho, dizendo ao correr a caravelha: No ha dinheiro que te pague, assim me Deus salve! E comido o caldo verde da ceia, nunca o Thom da Eira ia para a cama sem primeiro descer a vr o Sulto,de candeia na mo esquerda, e na direita, contra o sovaco, a bella quarta do gro, acogulada. Muitas vezes acontecia esquecer-se o Thom a vel-o comer, de candeia attenta, encostado mangedoira, sorrindo: e, de cima, a sr.a Josefa tinha de intervir ento, gritando-lhe pelas frinchas do sobrado: Thom, v se te vens deitar, meu pasmado! olha que so horas. E piamente, como fanatico, achava verosimil a lenda da burra que fallou,historia que uma tarde, passando, o abbade lhe contara. Tanto que mais de uma vez, dando ao burro as boas-noites, extranhou com certo desgosto que o Sulto lhe no respondesse: Boas noites! Mas o demonio, que sempre as arma, armou-lh'a tambem um dia! Foi ao cortelho, de manh cedo, e no encontrou o burro. Ficou parvo! Poz-se a mirar, espantado, a loja que lhe pareceu enorme, e alm de enormegelada... [27] Josefa! Josefa! entrou de gritar da rua. Josefa! A mulher assomou janella, sobresaltada. Queres apostar que me roubaram o burro, mulher?! Que te roubaram o qu? fez a sr.a Josefa, muito attonita. O burro, o Sulto! Vem c ver que m'o roubaram! E como ao tempo acudira j o Manoel, em camisa, descalo, romperam todos tres na gritaria, defronte do cortelho vazio: d'el-rei! d'el-rei! d'el-rei! At que o regedor, que era compadre, intervindo estremunhado, poz na peugada do burro, mais dos larapios, os cabos que compareceram. Mas em vo! Um a um foram regre ......Buy Now (To Read More)

Product details

Ebook Number: 17503
Author: Coelho, Trindade
Release Date: Jan 12, 2006
Format: eBook
Language: Portuguese
Publisher: Livraria de Antonio Maria Pereira 50, 52--Rua Augusta--52
Publication Date: 1894

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