A Morgadinha dos Cannaviaes

A Morgadinha dos Cannaviaes - (Chronica da aldeia) Title: A Morgadinha dos Cannaviaes Subtitle: (Chronica da aldeia)...
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Author: Dinis, Júlio,1839-1871
Format: eBook
Language: Portuguese
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A Morgadinha dos Cannaviaes

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A Morgadinha dos Cannaviaes - (Chronica da aldeia)

Title: A Morgadinha dos Cannaviaes Subtitle: (Chronica da aldeia) Author: Jlio Dinis Release Date: June 14, 2009 [EBook #29120] Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) Nota de editor: Devido existncia de erros tipogrficos neste texto, foram tomadas vrias decises quanto verso final. Em caso de dvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrar a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Jun. 2009) A Morgadinha dos Cannaviaes Volume I Volume II BIBLIOTHECA ESCOLHIDA XXIII ROMANCE III A MORGADINHA DOS CANNAVIAES Vol. I CENTRO TIPOGRAFICO COLONIAL LARGO BORDALO PINHEIRO, 27 E 28 TELEPHONE 2337 JULIO DINIZ A MORGADINHA DOS CANNAVIAES (CHRONICA DA ALDEIA) DECIMA-SETIMA EDIO LISBOA J. RODRIGUES & C.a, EDITORES 186Rua Aurea188 1920 OBRAS DE JULIO DINIZ A Morgadinha dos Cannaviaes Os Fidalgos da Casa Mourisca As Pupillas do Senhor Reitor Uma Familia Ingleza Ineditos e Esparsos Poesias Seres da Provincia Agenda Julio Diniz (registo de anniversarios e lembranas) Todos os direitos d'esta publicao esto reservados em conformidade com a lei em Portugal e Brasil J. Rodrigues & C.a A MORGADINHA DOS CANNAVIAES I Ao cair de uma tarde de dezembro, de sincero e genuino dezembro, chuvoso, frio, aoutado do sul e sem contrafeitos sorrisos de primavera, subiam dois viandantes a encosta de um monte por a estreita e sinuosa vereda, que pretenciosamente gosava das honras de estrada, falta de competidora, em que melhor coubessem. Era nos extremos do Minho e onde esta risonha e feracissima provincia comea j a resentir-se, seno ainda nos valles e planuras, nos visos dos outeiros pelo menos, da vizinhana de sua irm, a alpestre e severa Traz-os-Montes. O sitio, n'aquelle ponto, tinha o aspecto solitario, melancolico, e, n'essa tarde, quasi sinistro. D'alli a qualquer povoao importante, e com nome em carta corographica, estendiam-se milhas de pouco transitaveis caminhos. Vestigios de existencia humana raro se encontravam. S de longe em longe, a choa do pegureiro ou a cabana do rachador, mas estas to ermas e desamparadas, que mais entristeciam do que a absoluta solido. No se moviam em perfeita igualdade de condies os dois viandantes, que dissemos. Um, o mais moo e pela apparencia o de mais grada posio social, era transportado n'um pouco [6] esculptural, mas possante muar, de inquietas orelhas, musculos de marmore e articulaes fieis; o outro seguia a p, ao lado d'elle, competindo, nas grandes passadas que devoravam o caminho, com a quadrupedante alimaria, cujos brios, alm d'isso, excitava por estimulos menos brandos do que os da simples e nobre emulao. Contra o que seria plausivel esperar d'este desigual processo de transporte, dos dois o menos extenuado e impaciente com as longuras e fadigas da jornada no se pode dizer que fsse o cavalleiro. A postura de abatimento que lhe tomra o corpo, o olhar melancolico, fito nas orelhas do macho, a indifferena, a taciturnidade ou o manifesto mau humor, que nem as bellezas e accidentes da paizagem natural conseguiam j desvanecer, o obstinado silencio que apenas de quando em quando interrompia com uma phrase curta mas energica, com uma pergunta impaciente sobre o termo da jornada, contrastavam com a viveza de gestos e desempenado jgo de membros do pedestre, com a sua torrencial verbosidade, a que no oppunha diques, e com as joviaes cantigas e minuciosas informaes a respeito de tudo, por meio das quaes se encarregava de entreter e ao mesmo tempo instruir o seu sorumbatico companheiro. Explica-se bem esta differena, dizendo que o cavalleiro era um elegante rapaz de Lisboa, que fazia ento a sua primeira jornada, e o outro um almocreve de profisso. O leitor provavelmente ha de ter jornadeado alguma vez; sabe portanto que o grato e quasi voluptuoso alvoroo, com que se concebe e planisa qualquer projecto de viagem, assim como a suave recordao que d'ella guardamos depois, so coisas de incomparavelmente muito maiores delicias, do que as impresses experimentadas no proprio momento de nos vermos errantes em plena estrada ou pernoitando nas estalagens, e mrmente nas [7] classicas estalagens das nossas provincias. As pequenas impertinencias, em que se no pensa antes, que se esquecem depois, ou que a saudade consegue at dourar e poetisar a seu modo; esses microscopicos martyrios, que de longe no avultam, actuam-nos, na occasio, a ponto de nos inhabilitar para o gso do que realmente bello. A dureza do colcho, em que se dorme, do albardo ou selim sobre que se monta, o tempro ou destempro do heterclito cozinhado com que se enche o estomago, a lama que nos encrusta at os cabellos, o p que se nos insinua at os pulmes, o frio que nos inteiria os membros, o sol que nos congestiona o cerebro, tudo ento nos desafina o espirito, que traziamos na tenso necessaria para vibrar perante as maravilhas da natureza ou da arte. S pelo preo de muitas jornadas se compra o habito de ficar impassivel no meio dos episodios d'estas pequenas odyssas, que atormentam e exhaurem o animo dos Ulysses novatos; mas ai, quando se adquire esse habito, tambem nos achamos j com a sensibilidade mais embotada para as commoes do bello. Examina-se com mais minuciosidade, mas com menos enthusiasmo; analysa-se mais e melhor; porm a propria analyse a prova de que se sente menos. Onde domina o sentimento e a imaginao, mal teem cabida a paciencia e phlegma, necessarias aos processos analyticos. O homem positivo e frio recolhe de qualquer excurso patria com a carteira cheia de apontamentos; o enthusiasta e poeta nem uma data regista. Viu menos, sentiu mais. Mas Henrique de Souzellasque era este o nome do cavalleirofra educado e passado da infancia plena juventude, em Lisboa, levantando-se por avanada manh, frequentando o theatro, o Gremio, as camaras, parolando no Chiado ou no Rocio, e indo alguns dias no anno a Cintra, ou qualquer [8] praia de banhos, desenfadar-se da monotonia da capital. Desde que fazia perfeito e consciente uso da razo, fra esta jornada, em que o encontramos, a primeira levada a effeito, e logo sob to maus auspicios, que era para suffocar-lhe nascena os instinctos de touriste, se porventura quizessem despertar n'elle. Havia dois dias que cavalgava aquelle rocinante, unico vehiculo accommodado aos caminhos por que passra. E ento que dois dias! D'aquelles, durante os quaes o co, uniformemente pardo, parece desfazer-se em agua, e a chuva cae sem interrupo e com uma teimosia e constancia impacientadoras; d'aquelles em que a terra saciada rejeita j a agua que recebe, a qual escorre nos declives, transborda dos algares, e encharca-se nos terrenos baixos, transformando em brejos as lezirias; em que as lufadas do sul vergam e torcem os ramos, melancolicamente despidos, dos lamos e sobreiros, e emprestam aos pinheiraes a voz dos mares; em que os campos se mostram desertos, a noite se anticipa, e to densas nuvens cobrem o firmamento, que parece tomar-nos a persuaso de que nunca mais o veremos com as suas formosas vestes de azul. Vejam se, n'estas circumstancias, o pobre rapaz podia deixar de ir cabisbaixo, triste e dando ao diabo a viagem que commettera. E para qu e por qu a commettera elle assim? Em poucas palavras procuraremos satisfazer a natural interrogao, que de suppr nos dirigissem os leitores, se podessem fazel-o. Este Henrique de Souzellas attingira a idade dos vinte e sete annos, vivendo, como dissmos, aquella enlanguescedora vida da capital, e dividindo as attenes do espiri Este Henrique de Souzellas attingira a idade dos vinte e sete annos, vivendo, como dissmos, aquella enlanguescedora vida da capital, e dividindo as attenes do espirito pela politica, pela litteratura e pelos destinos do theatro de S. Carlos, do qual estava [9] habilitado a fazer circumstanciada chronica, que abrangesse os ultimos dez annos. No concebia vida fra d'aquillo. O mundo para elle era Lisboa. No sentia desejos, nem imaginava possibilidade de visitar a Europa, quanto mais a provincia; o que seria maior faanha. No que lhe faltassem recursos para realisar qualquer projecto d'esta natureza. Henrique herdra dos paes rendimentos bastantes, dos quaes vivia folgadamente e sem precisar de sacrificar nos altares da economia. Mas a indolencia lisbonense manietava-o alli. A poucos ia to direita a apostrophe de Garrett aos seus queridos alfacinhas, a qual se pode ler no livro setimo das Viagens. De certo tempo em deante comeou, porm, a incommodal-o uma especie de vcuo interior, um mal-estar, doena infallivel nos celibatarios sem familia, quando chegam idade a que chegou Henrique, e passam a vida como elle. Tudo lhe causava fastio. Bocejava em S. Carlos, bocejava nas camaras, bocejava no Gremio, bocejava no Suisso, no Chiado e nos circulos dos seus amigos, os quaes principiaram tambem a achal-o insupportavel de insipidez; porque poucas coisas ha que mais perturbem o espirito, do que o espectaculo d'um homem que boceja ou dorme, onde e quando os outros forcejam por divertir-se. O demonio da hypocondria, esse demonio negro e lugubre, implacavel verdugo dos ociosos e egoistas, o qual havia muito o espiava, apoderou-se d'elle em corpo e alma. Ahi temos, desde esse instante, Henrique muito preoccupado com a sua pessoa, imaginando-se victima de mil e uma molestias, as mais disparatadas e incompativeis, suspeitando-se conjunctamente predestinado para a apoplexia e para a phtisica, para o cancro e para a alienao, para a cegueira e para [10] as aneurismas, tremendo leitura do obituario da semana, folheando livros de medicina, construindo theorias physiologicas, consultando todos os medicos da capital, experimentando todo o arsenal pharmaceutico e todos os annuncios, em parangona, da quarta pagina dos periodicos, e elevando as crenas do seu espirito amedrontado at s mysteriosas e nevoentas alturas do credo homoepathico! Ao mesmo tempo manifestou-se n'elle uma progressiva degenerao de gsto; no podia ler uma pagina dos livros que lhe eram predilectos; desfazia-se sem desgsto de quadros, mveis, estatuas e objectos curiosos que colleccionra com paixo; detestava a musica, o theatro, n'uma palavra, tornra-se um dos maiores flagellos, que podem pesar sobre a humanidade e que muito em especial causam o supplicio dos medicos que os aturam. Foram estes os que, em parte de boa f, em parte com o desculpavel intuito de sacudirem de si tal pesadelo, lhe deram um dia de conselho, que fsse viajar. Henrique de Souzellas julgou ouvir uma heresia n'esta palavra: viajar. Viajar? E as suas aneurismas? E as suas imminencias apopleticas? E as suas disposies para tantas outras enfermidades? Pois um homem pode l viajar com esta bagagem pathologica? E se lhe dsse alguma coisa pelo caminho? Recusou com mau humor a receita, e ficou na capital. Exacerbaram-se os padecimentos, repetiram-se as consultas, e os medicos, como se para isso apostados, a insistirem em que saisse de Lisboa. O senhor no tem nadadiziam alguns. Henrique perdia a cabea, ao ouvir isto. Prolongou-se este estado de coisas, at que um dia o hypocondriaco rapaz persuadiu-se muito sriamente de que estava chegada a sua hora extrema. Um medico velho e grave, que por essa occasio [11] o escutou, em vez de se rir d'elle, disse-lhe, muito sisudo: Homem! O senhor est realmente mal. Esse estado de imaginao no pode prolongar-se mais tempo, sem romper por ahi em alguma doena que o sacrifique. Se quizer salvar-se, saia-me d'aqui, emquanto tempo. Quebre por todos os habitos, e escolha entre as fortes impresses de uma grande capital, como Paris ou Londres, ou as mornas sensaes de um completo viver de aldeia. Os revulsivos e os emollientes curam por meios oppostos s vezes as mesmas molestias. Ora succedeu que n'esse mesmo dia recebesse Henrique um presente de fructa de uma sua tia, santa creatura que elle, desde creana, no tornra a vr. Vivia regalada em uma aldeia sertaneja do Minho onde na idade de cinco annos Henrique passra alguns mezes na companhia de sua me. Aquelle presente frugal recordra-lhe esse tempo, j meio apagado na memoria, e conseguira fazer-lhe saudades. D'ahi uns vagos desejos de voltar a vr aquelles sitios. Por isso ao ouvir o conselho do doutor, Henrique nomeou-lhe a aldeia, em que esta sua parenta vivia. O velho facultativo applaudiu a ideia e instou para que fsse abraada. O sobrinho escreveu ento tia, e, passados dias, punha-se a caminho. Mil vezes se arrependeu, depois da resoluo tomada; mil vezes mandou ao diabo o conselho do medico e phantasiou horriveis exacerbaes em todos os seus males. Os inconvenientes de uma jornada, feita ainda segundo os velhos processos, com malas, coldres e pistolas, botas de montar e almocreve, ampliava-lh'os a propores estupendas, o prisma da hypocondria. No momento em que nos associmos ao cavalleiro, caira elle n'um desalento profundo, n'um quasi [12] convencimento de proxima anniquilao, do qual nem a loquacidade do almocreve, condimentada, como era, de pragas eloquentes e de cantigas pouco edificantes, o conseguia arrancar. Havia mais de uma hora que estavam luctando com as difficuldades da ascenso do ingreme e escabroso caminho, que torneava o monte como as voltas de uma helice. Era este monte uma como irregular pyramide, levantada no meio da amplissima bacia, onde tinha assento a aldeia que Henrique demandava; por isso o estafado rapaz no podia atinar a razo de conveniencia pela qual, tendo de procurar o valle, assim porfiavam em descrever as fastidiosas curvas da quasi interminavel espiral, que os approximava do vertice. No se concebe uma estrada menos logica do que aquella. No nosso paiz so porm frequentes estas faltas de logica nas estradas. O almocreve havia-se separado por momentos de Henrique com o fim de encurtar distancias, seguindo por um atalho s franqueavel a gente de p. Henrique nem desvira os olhos para o fundo valle, que se abria esquerda, velado pela densa nevoa d'aquella atmosphera saturada de humidade, nem prestava atteno agreste e selvatica paizagem, do lado direito, toda encrespada de pinheiraes nascentes e de espinhosas tojeiras. Os olhos procuravam, em anciosa interrogao, o mais alto da flexuosa ladeira que subia, no sitio em que ella, formando um cotovello, furtava vista o seguimento ulterior. N'estas curvas das estradas sorri sempre de longe ao viajante, canado e aborrecido, que pela primeira vez as trilha, uma promettedora esperana. D'alli verei talvez o termo do caminhopensa elle. [13] Mas quantas vezes, ao approximar-se, esta esperana lhe foge! Assim aconteceu a Henrique, que, ao chegar almejada inflexo e quando esperava principiar emfim a descer para o valle e approximar-se da aldeia, viu que o macho, pratico no caminho, e disposio de cujo instincto elle collocra a razo, dobrava ainda para a direita e continuava a contornar e a subir o monte. A espiral no terminra ainda. Henrique olhou em torno de si, profundou a vista nas sombras do valle, nada pde descobrir, que lhe promettesse a aldeia procurada. Muita arvore, povoao nenhuma! Teve um paroxismo de impaciencia! Isto no estrada!exclamou elle, exasperado.So os nove circulos do Inferno de Dante virados para fra. E a luz do dia a fugir cada vez mais, e a chuva a augmentar, a calar atravs do grosso gabo de jornada que Henrique vestia! O desgraado vergava sob o pso da sua consternao. Ajuntou-se-lhe outra vez o almocreve, assobiando com fleugma desesperadora. Com um milho de demonios!bradou-lhe Henrique, no podendo conter-se.Essa maldicta terra foge deante de ns, homem! Estamos quasi l, meu patro. alli logo adeanterespondeu o almocreve, sem se alterar. V aquella capellinha branca em cima d'aquelle monte? pois fica j para alm da povoao. a ermida da Senhora da Saude. um instante. Desde as duas horas da tarde que me dizes que um instante, e eu estou acreditando que cada vez nos afastamos mais. Pois se a aldeia fica alli em baixo, para que diabo subimos ns? s voltas que temos dado, estou persuadido de que vamos to adeantados como quando principimos a subir. Pois olha que dvida! Se se fsse a direito l por baixo, era mais perto, mas... [14] Mas foi ento pelo prazer de trepar, que me trouxeste por aqui? No isso, patro; mas bem v v. s.a que o caminho l por baixo todo cortado por quintas e campos, e preciso dar taes voltas, que a final fica mais longe. Depois, com a chuva que tem cado, faz l ideia de que o caminho l por baixo todo cortado por quintas e campos, e preciso dar taes voltas, que a final fica mais longe. Depois, com a chuva que tem cado, faz l ideia de como esto os riachos por l! S o esteiro do almargeal para uma pessoa se afogar. Mas tenha o patro paciencia, que pouco falta agora. V v. s.a aquelle tronco de sobreiro que parece, visto d'aqui, um frade de capuz? alli? No, senhordisse o homem, rindo;mas vem-se d'aquelle sitio as primeiras casas da aldeia. As primeiras!murmurou Henrique em tom lastimoso; e penderam-lhe os braos com mais desalento e augmentou-se-lhe a flexo da columna vertebral. O almocreve proseguiu, para o distrair: Tenho passado por estes sitios muita vez com neve de se cortar faca e de noite. E olhe que nunca tive mdo. Qual historia! Mdo? Isso sim! E vamos l! o sitio no dos mais seguros. V o senhor essa cruz preta, ahi sua mo direita, pregada no tronco d'esse pinheiro? Pois ahi mesmo mataram um homem, que vinha com uns centos de mil ris da feira franca de Vizeu, fez pelo S. Miguel um anno. E ainda hoje se est para saber quem foi. N'um ermo d'estes s os santos podem valer a uma creatura. Henrique sentiu-se pouco vontade com as elucidaes do cicerone; olhou para elle com desconfiana e quasi julgou vr moverem-se sombras suspeitas por entre os troncos dos pinheiros. Apalpou nos coldres os cabos das pistolas, e approximou as esporas dos ilhaes da cavalgadura. Dentro em pouco attingiam o indicado tronco de sobreiro, de junto do qual deviam avistar a aldeia. Henrique olhou; viu l no fundo do valle muitas [15] arvores, mas continuou a no enxergar vestigios de casas. Onde est a aldeia que dizias, homem? D'ahi j se vdisse o almocreve, correndo para alcanar o cavalleiro.No v v. s.a, alm, alm, aquelles pinheiraes mansos? Vejo, sim. Pois j so da freguezia. Se fsse mais claro havia de avistar a casa do guarda. a tapada dos Bajuncos, que pertence morgadinha dos Cannaviaes. Henrique no respondeu. A distancia a que ficava ainda a tal tapada fel-o suspirar. Emfim, passados minutos, principiaram a descer para o valle, costeando sempre obliquamente o monte. Cem passos andados, fez-lhe o almocreve notar um pequeno ponto branco, que se divisava ao longe por entre a rama do arvoredo, mas j indistinctamente, em virtude do adeantado da hora e da intensidade da neblina. L est a capella da fregueziadizia o homem. Alli? um seculo para l chegar! Qual! Estamos aqui, estamos l. Eh, russo! E applicou uma vigorosa vergastada nas ancas do macho, que accelerou o passo. O homem continuou: At se fsse mais dia podia-se vr d'aqui a pedra, que est no cemiterio novo, e que da familia da morgadinha dos Cannaviaes. Foi a me d'ella a primeira pessoa que l se enterrou, e at hoje mais ninguem. O povo, como o outro que diz, tem sua aquella em se enterrar fra da egreja. Elle, a falar a verdade... Eu bem sei que tudo vae do costume... mas emfim a gente foi creada n'isto... Mas a pedra coisa asseada. como as que esto na cidade. Henrique, transido de frio, quebrado de desalento, j nem attendia ao que o homem ia dizendo. [16] Cerrra-se a noite de todo, quando attingiram emfim o valle. O terreno mudava agora de aspecto. Appareciam j, aqui e alli, alguns indicios de cultura, annunciando a proximidade de um povoado. Os caminhos estreitavam, internando-se no valle, e seguiam tortuosamente por entre muros tscos de pedra ensossa, silvados e sebes naturaes. A chuva, que no cessra de cair, transformra estes caminhos, onde o declive no dava escoamento s aguas, em charcos e tremedaes. Novos indicios da vizinhana da aldeia iam successivamente apparecendo. Aqui era uma manada de bois soltos, em direco do curral, guiados por uma creana de palhoa e pernas nuas, os quaes paravam a olhar com aquella expresso de composta curiosidade, que lhes peculiar, para o recem-chegado visitante da aldeia. No faltou receio a Henrique, que suppz a estes bonacheires quadrupedes a indole travssa e bravia dos touros, a cuja chegada tantas vezes fra assistir em Lisboa. Mais adeante passava por elles uma fileira de carros a vergarem sob o pso do matto e atroando os ares com o chiar incmmodo das rodas sob o eixo, incmmodo para os ouvidos cidados de Henrique, cujos nervos se irritavam com elle, mas apparentemente agradabilissimo para os conductores aldeos, que ou dormiam ou cantavam com aquelle acompanhamento. N'um e n'outro ponto deparavam-se-lhe j algumas casas de tectos de colmo, de cujas innumeras fendas saa um fumo espsso, que a atmosphera humida mal deixava elevar nos ares. No olfacto deshabituado de Henrique de Souzellas o cheiro resinoso e activo das pinhas e das agulhas sccas dos pinheiros, queimadas no lar, produziam sensaes muito longe de serem agradaveis. Augmentava-se-lhe com tudo isto a funda melancolia que j lhe tomra o animo. [17] Tantas fadigas para este resultado!pensava elle.Sair de Lisboa para me enterrar n'esta aldeia escura e suja! Enganou-se o parvo do doutor. Cuidava que me salvava e matou-me. Eu morro por certo aqui. Deus lhe perde o homicidio. Os caminhos succediam-se aos caminhos, qual mais tortuoso e incmmodo de trilhar; as curvas complicavam-se como as ruas de um labyrintho. Aqui subiam; desciam mais alm, para subir outra vez. Umas vezes caminhavam em terreno descoberto, outras penetravam em to estreitas quelhas, apertadas entre paredes argilosas e humidas e toldadas de ramos entrelaados, que s o instincto do animal podia evitar-lhes os perigos. Ora soavam as patas do macho como em cho lageado, ora amortecia-lhes o som um terreno, que a chuva encharcava, e a agua lamacenta vinha salpicar o rosto do cavalleiro. As casas eram j frequentes, e algumas de menos humilde apparencia. Os ces, que, pelo timbre de voz, mostravam ser gigantes, ladravam raivosos por dentro dos portes ou de sobre os muros das quintas, ao ouvirem os passos da cavalgadura ou a voz do almocreve, que falava ou cantava sempre. Outras vezes era um inharmonico grunhir suino que accusava a vizinhana das crtes ou, partindo de um casebre rustico, o chorar de creanas, entremeado com os ralhos das mes e com as pragas dos chefes de familia. O almocreve no desistira das suas funces de cicerone, que smente interrompia para saudar alguns conhecidos seus, a cuja porta passavam. Estes campos e lameirosia dizendoso da morgadinha dos Cannaviaes; andam arrendados a um compadre meu. E exclamava para dentro de uma casa terrea, escassamente allumiada por uma candeia: [18] Boas noites, tia Escolastica. Como vae a pequenada? Ai, vossemec, sr. Jos? Ento no entra?respondia-lhe uma voz feminina. Agora, no, manh. E proseguiu para Henrique: uma santa creatura. A morgadinha... Henrique interrompeu-o: Onde fica a final, a quinta de Alvapenha? onde mora minha tia? No me dirs? logo ahi adeante, meu patro. Em ns passando umas casas amarellas que ha ahi... logo ao p. Essas casas que digo so tambem da morgadinha, mas ha uma demanda pelos modos. O almocreve falava pela decima ou undecima vez na morgadinha. At esta periodica referencia a uma personagem que elle no conhecia, impacientava Henrique de Souzellas. E continuavam a succeder-se em enredado dedalo as quelhas e azinhagas, a ponto de fazer perder toda a orientao. Umas vezes ouviam o ruido das levadas, que as ultimas chuvas tinham engrossado; adeante, transpunham uma ponte rustica, escutando das profundezas do despenhadeiro, que ella atravessava, o fragor das cascatas nos audes ou o ranger das rodas dos moinhos. Henrique a cada momento imaginava cair n'um abysmo. So os audes do Casaldizia o almocreve berrando para se fazer ouvir atravs do estrondo da torrente.Pertencem morgadinha dos Cannaviaes. Henrique nem alento j tinha para falar. Ao triste e quasi sinistro aspecto d'aquella aldeia to cerrada lhe envolveu o corao a nuvem de melancolia, que cedeu sem resistencia ao crescente torpor que o invadia, como o que desespera da vida e da salvao. Mais adeante, excitou-lhe ainda as attenes uma [19] toada plangente, melancolica, monotona, que exacerbou estes effeitos. uma fiada em casa do Tapadasdisse o almocreve. um dos maiores amigos do pae da morgadinha. V aquelle muro acol? Eu no vejo nada. Deixa-me! Pois pertence j quinta dos Cannaviaes, que a morgadinha... Outra vez! Cala-te para ahi com essa morgadinhaexclamou Henrique. Era evidente emfim que estavam em pleno corao do povoado. As casas appareciam mais juntas. De algumas saa um surdo rumor de vozes que tinha o que quer que era de lugubre. Era a cora rezada em familia a Nossa Senhora. A voz grave do lavrador casava-se com a voz quebrada e trmula do av, com a voz sonora e fresca da me, e a juvenil das raparigas e creanas n'aquelle piedoso cro, produzindo um effeito que acabou por levar ao auge a impaciencia do nosso spleenetico viajante. Sumiu-se essa endiabrada quinta de Alvapenha, que no a acabamos de attingir? O almocreve d'esta vez nem respondeu; sacudiu uma chicotada sibilante junto s orelhas do muar, o qual com desusada rapidez galgou uma ladeira orlada de arvores, volveu direita e, voz do almocreve, estacou em frente de um porto de quinta resguardado por um telheiro rustico. aquidisse o guia. At que emfim!exclamou Henrique, suspirando. Suspiro de conforto e de tristeza ao mesmo tempo, como o do homem canado da vida, quando antev o repouso do tumulo. Em Henrique era intima a convico de que a quinta de Alvapenha lhe havia de servir de cemiterio. [20] II O almocreve assentou duas vigorosas pancadas no solido porto de castanho, deante do qual tinham parado. As primeiras vozes, a responderem-lhe, foram as de dois ces, que acudiram de longe ao signal e vieram ladrar porta com furia, que fez agourar mal a Henrique da cordialidade da recepo que o esperava. De facto as intenes dos quadrupedes no pareciam demasiado hospitaleiras. O almocreve divertia-se excitando-os de fra com uma vara de vime, apesar de quantas recommendaes de prudencia lhe fazia Henrique, no em demasia socegado. A final ouviu-se uma voz aspera e rouca, chamando os ces ordem, se licito, sem irreverencia, empregar n'este caso a phrase consagrada para outro genero de algazarra. Henrique ouviu rodar a chave, correr os ferrolhos, levantar a aldraba, gemerem os gonzos, e emfim um homem de lavoura alto e magro, trazendo em punho um lampeo de frouxissima luz, appareceu-lhes porta e saudou-os com a frmula do estylo: Ora Nosso Senhor lhes d muito boas noites. E, levantando a luz altura do rosto de Henrique, poz-se a miral-o com a menos ceremoniosa curiosidade. o sobrinho c da senhora, no verdade? Sou eu mesmo. Est um tempo muito azdo. Eu j julgava que no vinham. Entre. Henrique no se resolvia a acceitar o convite, porque lhe continuavam a impr respeito os olhares ferinos e os rugidos surdos dos dois faanhosos [21] quadrupedes, cuja m vontade era a custo refreada. Entre, entreinsistia o homem. Mas esses animalejos?... Ah! isto no faz mal. Sae-te p'ra l, Lobo: passa, Tyranno! Lobo! Tyranno! Que nomes! E dizia o homem que no faziam mal! C'os diabos! ti'Manueldisse o almocreveem occasio de se esperarem hospedes, no se soltam assim os ces. Os diabos no so nenhuns cordeiros. Olhe no outro dia o sr. Joosinho das Perdizes, que por pouco lhes deixava nos dentes as barrigas das pernas. Forte perca!resmoneou o outro.No trouxesse c os d'elle. No tem dvida; entre o senhor, que elles no lhe fazem mal. No entro; assim que no entroteimou Henrique, a quem as palavras do almocreve acabaram de fortificar na sua resoluo. O homem em vista d'isto encolheu os hombros e bradou: Luiz! Uma creana de cinco annos, e quasi nua, correu ao chamamento. Enxota para l esses ces, que aqui o senhor tem mdo. A creana, palavra mdo, fitou Henrique com uns olhos espantados, e tomando do cho um tronco de tojo, deu-se a zurzir desapiedadamente nas feras, que, com todos os signaes de respeito, de orelha baixa e cauda abatida, fugiram deante d'ella. O orgulho de Henrique de Souzellas ficou um tanto maltratado com o desfecho da scena; mas a prudencia consolava-o, dizendo-lhe que andra ajuizadamente. Agora vossemecdisse o camponez para o almocrevearranje-se como puder e mais a bsta ahi pelas lojas, emquanto eu ensino o caminho ao senhor. [22] Vo, vo com Nossa Senhora, que eu c me arranjarei. Muito boas noites, sr. Henriquinho. Adeus, Josdisse Henrique, passando para a mo do guia a esportula da gorgeta, e aps seguiu, com as pernas trpegas de cavalgar, o homem do lampeo. No era para dissipar a impresso penosa, que subjugava o espirito de Henrique, o aspecto que lhe offerecia, quella hora da noite, a parte da quinta, por onde era conduzido para a casa de Alvapenha. Primeiro, trilhou o pavimento molle de um quinteiro ou eido, estradado de altas camadas de matto e embebido de chuva, d'onde se exhalava um cheiro de cortumes, pouco de lisonjear o olfacto mal habituado a estes aromas campezinos. A luz do lampeo a custo conseguiu evitar a Henrique o tropear n'um carro desapparelhado, n'uma dorna, n'uma pia para gallinhas, e em outros objectos que atrancavam o quinteiro. Transpondo a cancella que terminava este, seguiram por uma rua de folhas; atravessaram diagonalmente a horta, pelo carreiro que a dividia; ladearam a eira e a casa do cabanal, e, effectuados mais alguns rodeios, acharam-se finalmente junto da escadaria de pedra, por onde se subia para uma especie de patamar ou varanda alpendrada, que servia de um modesto portico casa de Alvapenha. A propriedade da tia de Henrique era um genuino typo de casa rustica, moda do Minho. Ao subir as escadas, e apesar de mal poder divisar os objectos escassa luz que os allumiava, recebeu Henrique a primeira impresso agradavel de toda aquella mal estreada excurso. Estas escadas, esta varanda de pedra e este alpendre avivaram n'elle memorias, quasi apagadas. Lembrava-se agora vagamente de ter brincado alli, a cavallo n'esse mesmo parapeito, ento, como agora, enfeitado de uma formidavel cohorte de aboboras meninas, victimas votadas s festas do proximo Natal. A um canto do patamar deparou-se-lhe ainda um [23] grande vaso de loua, que elle, havia vinte e tantos annos, conhecera, e ao qual tinha a ideia vaga de haver quebrado uma aza; abaixou-se no intento de se certificar, e viu que de facto ainda lhe faltava a aza, sendo este o unico estrago que aps tanto tempo o velho utensilio soffrra. admiravel!no pde deixar de exclamar Henrique ao fazer a descoberta, vendo que em oito dias operava maior reforma nos seus aposentos em Lisboa, do que n'um quarto de seculo se realisava em Alvapenha. O hortelo bateu porta e disse para dentro que era o sobrinho da senhora que chegava. Seguiu-se um mexer de cadeiras, um trocar de vozes, um arrastar de passos; moveu-se a chave na fechadura; abriram-se as portas e no limiar appareceu de braos abertos a tia Dorotha, e por traz d'ella, elevando a luz acima do hombro da ama, a criada Maria de Jesus, a que, havia trinta annos, lhe era companheira e interessada em lagrimas e pesares. J Henrique lhe andra ao collo no tempo em que estivera creana na quinta. Deante da figura esbelta, do typo varonil e do comprido bigode de Henrique, a sr.a Dorotha reprimiu as suas expanses e quasi recuou. Nunca mai ......Buy Now (To Read More)

Product details

Ebook Number: 29120
Author: Dinis, Júlio
Release Date: Jun 14, 2009
Format: eBook
Language: Portuguese

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