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Estrellas Propícias
Title: Estrellas Propcias Author: Camilo Castelo Branco Release Date: September 21, 2010 [EBook #33788] Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha, Alberto Manuel Brando Simes and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) Nota de editor: Devido quantidade de erros tipogrficos existentes neste texto, foram tomadas vrias decises quanto verso final. Em caso de dvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrar a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Setembro 2010) ESTRELLAS PROPICIAS. OBRAS DE CAMILLO CASTELLO BRANCO QUE SE ENCONTRAM VENDA NAS LIVRARIAS DE VIUVA MOR PORTO E COIMBRA. Abenoadas lagrimas, drama 240 Amor de perdio 500 Agostinho de Ceuta, drama 240 Cabea, corao e estomago 500 Carlota Angela 400 Coisas espantosas 500 Doze casamentos felizes 500 Duas epochas da vida 600 Estrellas funestas 500 Justia, drama 200 Livro negro 500 Marquez de Torres Novas, drama 400 Memorias do Carcere, 2 vol 800 Morgado de Fafe, drama 200 Romance d'um homem rico 500 Scenas innocentes da comedia humana 500 As tres irmans 500 Um livro, poesias 360 ESTRELLAS PROPICIAS. POR CAMILLO CASTELLO BRANCO. PORTO, EM CASA DE VIUVA MOR - EDITORA, PRAA DE D. PEDRO. A mesma casa em Coimbra, | Casa de Commisses em Paris, Rua da Calada. 2bis, Rua d'Arcole. 1863. TYP. DE SEBASTIO JOS PEREIRA, Rua do Almada, 641. ESTRELLAS PROPICIAS. I. Navegando contra a corrente do Limao rio das saudades e dos pavores da mythologiavereis, a meia legua distante de Vianna, na margem direita, uma casa apalaada, em parte cantaria que os seculos denegriram, em parte edificao moderna, caiada, tingida, variegada, coisa sem graa, sem poesia, que toda lhe tira a magestosa e veneranda av, alli beira, com o seu toucado de ameias e collares de embrincadas laarias. Da margem do rio ao edificio conduz uma vereda relvosa ladeada de alamos, cilindras, hidranjas, e outras arvores e arbustos, que ensombram a convidativa lea. L no tpo entrevdes um chafariz, rodeado de bancos de pedra, e abobadado por um pavilho de chores, [6] cujos troncos a mo do tempo torneou e retorceu em caprichosos feitios. Se mandaes parar o barquinho diante d'esse obscuro alcar das esquecidas musas do idyllio, d'esse manancial dos gratos devaneios, ao abrir de uma manhan de agosto, ou ao entardecer de um dia da estao do outomnoa mais amavel do Minhoahi ficareis como arrobados, sentindo sem saber o que, desejando sem dar limites ao desejo, aspirando a enlevos que vos no parecem da terra, nem os sabereis dizer, se cuidaes que vos transportam ao ceo. O que vdes, se sabeis copiar a natureza na tela, no verso, ou na prosa, podereis conseguir que ns tambem o vejamos em sombra; o sentir, porm, que semelhante espectaculo, a tal hora, vos suggere, sde embora Raphael, Fnlon, ou Delille, que no lograreis verter em nossas almas a poesia das vossas. Folheai o livrinho, todo mimo e deleite, do poeta Bernardes, sentido e escripto alli n'aquellas margens; cuidareis vr n'elle as harmonias que vos soam ao corao em descompassadas notas; e, melancolicamente, abrireis mo das maviosas poesias, que dizem menos que o susurro da veia limpida na fluctuante frana do salgueiro, ou o regorgeio do rouxinol, que vos fugiu da margem, para de longe vos estar conversando com o espirito alheado. Nos versos e nas poeticas prosas do mais canoro bardo do Minho[1], se vos deparam relanos de delicado sentimento, douras [7] campezinas, que todas recendem os aromas d'aquelles relvados e arvoredos. No mavioso romance d'outro cantor e prosador sentimental do jardim d'esta formosa terra[2], l inspirado, l haurido no mel de tantas colmeias, nem ahi achaes seno o bosquejo das vises que adentraram vosso animo, e de vs se apartam, mal vos embaralhaes com homens vascolejados em negocios da vida real. No ha corao que sostenha em si poesia, quando cuidados o empegam no commum esterquilinio, onde todos, uns mais que outros, nos rebalamos, embora luz do sol das praas, e luz das serpentinas das salas, as immundicias brilhem como ouro, ou alvejem como arminhos. No ha, pois, dizer o que sente cada um, ao abrir da manhan, ou descahir da tarde, se alli parou e contemplou do seu barquinho a avenida arborisada, o repuxo com seu docel de ramagem, e as cornijas denticuladas da vetusta metade do edificio. Se por l derivasseis, ao fim de uma tarde de agosto de 1844, e o rumorejo da corrente vos no houvesse entorpecido a vida exterior, verieis, ao cimo da avenida, n'um dos bancos circumpostos fonte, uma senhora reclinada com o descuido de quem se cr ssinha, sobre um respaldo de massio, que brandamente se amollentava, para, a prazer da solitaria scismadora, se lhe modular s frmas gentis. [8] A seu lado estava uma carta de muitas paginas, sobre a qual ella assentava a mo descahida em langoroso quebranto. O que certamente no verieis eram as lagrimas, que humedeciam a carta, e outras que desciam nas faces, e paravam aos cantos dos labios, como se ahi esperassem que um sorriso de esperana outra vez as embebesse no corao. De vras creio que o meu leitor ahi se ficaria em quanto o vestido branco da formosa viso se estremasse da escuridade das arvores; quando, porm, a noite lhe fechasse o encanto de olhos, o leitor ir-se-ia, rio-abaixo, scismando um pouco na solitaria creatura, amante das noites bellas; e, chegando a Vianna, escassamente se lembraria de tl-a visto, e s, a muito proposito, perguntaria quem fosse a mulher da pittoresca vivenda do Minho. Tivesse eu a honra de ser a pessoa interrogada, e responderia com o seguinte capitulo, se o leitor me dsse ares de sua complacencia em ouvil-o. [9] II. O romancista de mais perluxo gosto em nomes de personagens de novella, se os procurar nos climas temperados, ahi os acha mais lindos, mais a molde da strophe, do poema e do romance sentimental. Os nomes de mais musica, e mais amoraveis, so os das mulheres gregas, se todos soam como os das heroinas de Byron, de Hugo, e dos poetas affeioados s coisas orientaes. Desisto de ir Grecia baptisar as minhas personagens femininas. Escrevo de Portugal, onde ha nomes de mulheres a competirem de belleza com suas donas; e, mais que em outra provincia, no corao de todas, no Minho,que bem podra ser a flor da Europaahi, na familia de solar, e na familia da choa, ha peregrinos nomes, que mais parecem ensinados pela melopeia das aereas musicas, ou dos mui suaves murmurinhos das florestas, dos rios, das aves e dos insectos. Corinna da Soledade era o nome da viso, que o meu leitor pudera ver n'uma tarde de agosto de 1844. [10] Em outra qualquer tarde poderiamos ver, no uma, mas um rancho de cinco meninas, a competirem de formosura, todas trajadas de branco, soltos os cabellos, ou ennastrados de flores, com que se andavam dando invejas s outras. Eram as cinco irmans d'aquelle ditoso ermo; as cinco Evas d'aquelle terreal paraizo, por onde no rastejavam serpentes, estas serpentes de casaca e luva branca, que so o proprio demonio civilisado pelo alfaiate, e amoldado a estes tempos illustrados em que nenhuma Eva de certo se deixaria embair por cobras, propriamente ditas. Tinha ento vinte annos Corinna da Soledade. Sou avesso a descripes: muitas vezes o tenho dito. Sahem-me todas muito pallidas e infieis por causa do esforo que fao a dar relevo aos traos. Profusamente se dispendem os romancistas em mineralogia e botanica para colherem o effeito das comparaes. Flores e pedraria, a alvura do lyrio, o escarlate do carmim, o niveo jaspe, o rubido coral, a lustrosa pretido do azeviche, a gata para a cutis das mos, a petala de rosa para a das faces, o branco avelludado da magnolia para o collo, o marfim para os dentes... que sei eu! Corinna da Soledade era de estatura mais que mean, refeita, robusta na apparencia, mimosa de pelle, mas no alvissima; olhos mais singulares pela brandura que pelo tamanho, reluzentes como chammas, ou amortecidos como a luz tibia da lua empanada por transparente nuvemalternativas instantaneas, que denotavam as rapidas mutaes da alma; arcadas negras [11] e sedosas, travadas na base da escampada fronterara belleza em mulher, n'aquellas mesmas, que se chamam Sapho, Stal, ou Sand, breve boca de finissimos labios, subtilmente assombrados d'um buo, imperceptivel a curta distancia, mas de bello effeito na approximao. Tanto esta, como as outras quatro filhas de Gasto de Noronha, tinham sido educadas em Frana, para onde os paes emigraram em 1829. O fidalgo do Minho homisiara-se, sem conscienciosamente poder dizer que era menos realista que seus avs; porm, odios velhos de covardes inimigos o haviam denunciado alada, e o prudente sujeito antes quiz confirmar a denuncia com a fuga, que provar d'entre ferros sua innocencia. Em 1833 recolheu a numerosa familia patria. As meninas vinham esmeradamente educadas em collegio de Paris, e saudosas dos comos de vida alegre que ainda experimentaram na capital do mundo. A transio de Paris para as margens do Lima, as noites fugitivas dos bailes comparadas com o silencio do palacio velho, em parte ruinas, e rodeado de arvoredos e murmurios melancolicos, parece que ao mesmo tempo enluctaram o animo das cinco meninas, que se contemplavam umas s outras, como se as lanassem nas praias ermas d'Africa. Gastara, nos cinco annos de emigrao, o jactancioso Noronha, como gastam em Paris os homens opulentos ou perdularios. Bem que a sua casa, toda em propriedade rustica, fosse grandemente rendosa, e bastasse [12] a dar-lhe fama e brilho de rico na sua provincia, os redditos d'ella escassamente dariam a um parisiense com que sustentar dez pessoas de familia em recatada decencia. Gasto, recolhendo patria, rareou a pouco e pouco as nuvens da poeira olympica de Paris, que lhe empanavam os olhos, e viu todos os seus haveres ameaados, se no j feridos de proxima ruina. Os caseiros e administradores tinham esbanjado e desbaratado porfia com elle; porm, to engenhosamente o fizeram, que o fidalgo achou-os a elles proprietarios, e legitimos possessores das quintas que, por ordem do amo homisiado, tinham vendido. A velha casa solarenga d'onde o fidalgo sahira para o estrangeiro, nos cinco annos de desamparo e descuido dos administradores, abriu pelo tecto e fendeu-se pelas abaladas paredes. A familia, affeita a morar em casas decoradas com graciosas alfaias, quando entrou ao palacete das margens do Lima, confrangeu-se de pavor como se os vigamentos estivessem estalando sobre suas cabeas. Fugiram as meninas do salo de espera, e entraram na sala proxima, onde as mais velhas se recordavam de terem visto tapetes encarnados, jarres indianos, e espaldares de sda. A sala estava sendo uma eira, com espigas a monte, medas de palha paina, e instrumentos agricolas, como enxadas, gadanhas, forcados e aguilhadas, por sobre os jarres esbotenados. D. Mafalda, me das meninas, quando tal viu rompeu a chorar, e o marido a praguejar, e as meninas encolheram-se [13] todas a um canto, to tristes e intanguidas, como se as tivessem descido por um alapo s lageas de fria masmorra. Cuidou logo o fidalgo em mandar reconstruir aquella parte da casa, que eu mostrei ao meu leitor, na margem direita do Lima. Como gizara obra grande, a belprazer da sua desasizada fantasia, vendeu e hypothecou bens urgentes sua sustentao para convertel-os em salas, tapetes, porcellanas, diwans, sophs, chaises-longues, jardineiras, consoles, e que taes estrangeirices em que as meninas reconheciam um pedao do seu saudoso Paris. Soffreram maior quebra os rendimentos, sem que a conformidade, se no o contentamento d'aquella familia, bem aposentada e servida do luxo da civilisao, os indemnisasse do desfalque dos bens. Gasto de Noronha em vez de aconselhar paciencia esposa e s filhas, era o primeiro a lastimar-se da solido em que viviam, do tedio das compridas noites de inverno, do enfadonho palavrorio dos primos e primas, e dos pessimos cosinheiros, que nunca tinham bem acertado com o segredo de loirejar parisiense umas omelettes soufles, ou um vol-au-vent. Enfadado de tudo, Gasto, incitado pelos gabos que a imprensa portuense dispensava sua companhia lyrica, pegou da familia, alvoroada com a boa nova, e foi para o Porto, onde passou um inverno, frequentando as melhores casas, e convidando aos seus bailes a flor da mocidade portuense. [14] Imaginou elle que suas filhas, educadas a primor, bem fallantes, bonitas, e graciosas em seu desembarao, fariam epocha no Porto, como costuma dizer-se, e seriam pretendidas dos negociantes ricos conta de sua fidalguia. Este plano o unico signal que temos da intelligencia domesticamente governamental de Gasto de Noronha. No se recommenda o systema aos paes dissipadores e aos fidalgos arruinados, porque, sobre ser revelho e desautorisado, seu tanto ou quanto immoral: abstenho-me de fundar o dito em razes que no agradariam nem moralisariam. No ha duvida que as meninas, educadas em Frana, e formosas como as que mais o so em Portugal, impressionaram vivamente os moos abastados da dinheirosa cidade; mas estas impresses redundaram todas em muita poesia, em muito suspiro, em muitos olhares meigos, e em muita contradana innocente, quando contradansas podem ser innocentes. Os mancebos apaixonados viam as meninas, e viam tudo que mais anhelavam; mas os paes d'estes mancebos, posto que achassem lindas de se verem as flores, iam de preferencia analysar o tronco da arvore florida, o qual tronco, como sabem, era Gasto de Noronha. Estas analyses ao tronco prejudicavam grandemente as flores, como de ver; e todos os velhos abastados diziam, uma, que no queriam enxertias de sua obscura linhagem em arvore podre. No sei se o nobilissimo Gasto de Noronha chegou a saber que lhe chamavam arvore podre! [15] O sabido que o fidalgo voltou s margens do seu Lima, na primavera seguinte, com as filhas solteiras, e tristes em dobro do que tinham vindo de Paris. O Porto d'aquella epocha era muito para dar saudades a quem o trocava, no direi s pelas solitarias margens d'um rio, mas ainda pelos ruidosos esplendores da capital. Quem de l sahiu ha dezoito annos, e hoje alli voltou, no reconheceu de certo a sociedade portuense. Ento primavam as principaes familias do commercio, da industria e da jerarchia na magnificencia de seus bailes. Rara semana corria sem que algum salo reverberasse os seus lustres nas graas nativas e nos custosos artificios com que se sobre-doiravam aquellas gentis meninas, que hoje se desvelam em ser mes, e todo seu viver concentram na vida intima. Das duas ricas provincias, feudatarias da cidade industrial por excellencia, confluiam, no fim do outomno, quantidade de morgados e morgadas, que se dispendiam larga, e constituiam grande parte da sociedade brilhante, que os folhetins cantavam, e as modistas vestiam... ou despiam, seria mais acertado dizer-se. Nenhum festim nupcial dispensava um baile; cada pessoa da familia opulenta, em seu dia natalicio, tinha um baile; o baile era o cunho do progresso n'aquella sociedade desentorpecida do marasmo de seculos, e devotada a competir em pompas com Lisboa, que a no valia ento, nem hoje me affoito a dizer que a vale. E quo diversa agora se me afigura, quo outra te vi, rainha do norte, depois[16]que os teus prceres trocaram a convivencia dos sales pela commodidade das equipagens! Foi a parelha que matou o baile indisputavelmente. Foi o luxo esteril dos urcos e dos arreios, dos trens armorejados, e das fantasiosas librs que desviou o fecundante capital do intento civilisador a que o applicaram os patriarchas do progresso n'aquella boa terra. Era um capital que a todos chegava, todas as classes sociaes participavam da superabundancia do baile. Enriquecia a modista. Prosperava o cabelleireiro. As confeitarias rivalisavam em primores de bolinhos e pasteis. O mercador renovava os seus lotes em cada trimestre. As alfaias dos sales, no ultimo baile, faziam esquecer as pompas do penultimo. E, por outro lado, visto pela face moral, o baile era o incentivo mais energico do talento. Ento se viram maravilhas de genio na seco das locaes, que to enfezadinha agora! Ento andavam ahi versos, a froixo, por todos os jornaes; eramos todos poetas, todos tinhamos uma estrella que cantar, e, pelo commum, aquella estrella luzia-nos da constellao dos bailes. E agora, tudo fundido nas carruagens que trancaram as portas dos sales, tudo, sem excepo das musas!as proprias musas me quer parecer que andam aos varaes das seges! E agora, tudo fundido nas carruagens que trancaram as portas dos sales, tudo, sem excepo das musas!as proprias musas me quer parecer que andam aos varaes das seges! [17] III. Das meninas, a mais saudosa do Porto era Corinna da Soledade. Razo tinha mais que as irmans, porque amara mais que todas, e amara sem inteno nem calculo. N'um baile do conde do Casal fra-lhe apresentado Antonio d'Azevedo Barbosa, moo de vinte e dois annos, nem pallido nem crado, nem triste nem alegre, um homem egual a todos os homens, como elles so fra do romance. Este Antonio d'Azevedo Barbosa era de Barcellos, filho d'um pequeno proprietario, que tinha muitos filhos, e mandara o mais velho cursar jurisprudencia em Coimbra, cuidando erguer um futuro esteio aos irmos, lesados em seu patrimonio por amor d'aquelle. O moo fra muito novo para Coimbra; ninguem o admoestava a estudar; viu-se em plena liberdade de suas aces; achou que era muito suave vida gastar a [18] mesada, e poupar os livros. Assim o fez, e fez mal, que ficou reprovado em preparatorios. Os patricios seus contemporaneos na universidade foram contar a Barcellos o desastre do estudante, no por lhe quererem mal, mas por se quererem demasiado bem a si: disseram-n'o para que a villa de Barcellos e o mundo soubessem que Coimbra no para todos; e, a este proposito, repetiam as memorandas palavras do senhor Ferrer, lente de direito natural, aos seus discipulos: meus senhores, quem no puder ser doutor, seja sapateiro. Manoel d'Azevedo, pae do academico reprovado, adoeceu de paixo, e, se o no amparam os braos implorantes dos outros filhos, cahia na cova. Um abbade limitrophe de Barcellos, e tio materno do estudante, levou o moo para sua casa, e castigou-o com uma tarefa diaria de duzentos versos de Virgilio, e um thema de duas laudas da Vida de Fr. Bartholomeu dos Martyres, e doze paginas do Genuense, e outras tantas de rhetorica e geographia. Findou o prazo das ferias, e Antonio tornou a Coimbra, custa do abbade. Fez o seu exame de latim, logica, rhetorica e geographia, com approvao e applausos de bom latinista. Matriculou-se no primeiro anno, e sobre-excedeu as esperanas do tio e as ambies do pae: ganhou o segundo premio, e recolheu ao gremio de sua familia. D'esta vez, o pae ia adoecendo de alegria. No se morre de dor, nem de alegria; mas morre-se [19] facilmente d'um hydro-torax; foi o que n'esse mesmo anno succedeu a Manoel d'Azevedo. Eram nove os orphos, e Antonio, o mais velho dos irmos, tinha dezesete annos. Fez-se inventario, pagaram-se as dividas do casal, e ficaram dotados com cento e cincoenta mil reis cada um. O abbade levou as sobrinhas para sua companhia, que eram quatro; arrumou no commercio os pequenos, e disse ao segundo-annista da universidade, que se reduzisse a viver com quatro mil e oitocentos reis de mesada, se queria formar-se. Antonio respondeu que viveria com menos, para que suas irmans vivessem com mais. Foi o moo ao segundo anno, e comeou logo a escrever umas cadernetas que l denominam sebentas, as quaes os cuidadosos em reproduzir a preleco do lente vendem lithographadas. As sebentas de Antonio d'Azevedo grangearam reputao de explicitas e bem coordenadas, e produziram metade de sua subsistencia; a outra metade proveio-lhe da verso de romances francezes, editados por assignatura. E assim vingou o segundo anno, e os annos seguintes at completar sua carreira. O bacharel Antonio d'Azevedo recolheu ao presbyterio do tio com o seu diploma enrolado n'um tubo de folha de Flandres. E agora?perguntou o abbade, tres mezes depois. Agora, estou formadorespondeu o bacharel. [20] Bem sei; mas que fazes? quando comeas o teu officio de doutor? O meu officio de doutor?!disse Antonio de Azevedo, como perguntando a si mesmo a utilidade da formatura em direito. Simtornou o padreo sapateiro, o marceneiro, o artifice em todos os mesteres, cumprido o tempo de aprendizagem, comea de ganhar sua vida. Ha dez annos que tu estudas para isto que hoje s: ests doutor, meu sobrinho; agora applica o que sabes. Antonio d'Azevedo achou discreta a admoestao delicada do tio. Recebeu o seu patrimonio de cento e cincoenta mil reis, e foi a Lisboa requerer. Ajuntou o pretendente ao seu requerimento as certides de seus premios na faculdade, e de seu excellente comportamento, afra a pathetica narrativa de sua pobreza, e das quatro orphans dependentes d'elle. Consta que o ministro da justia se no commovera, porque no lera a petio nem os documentos. O bacharel, ao cabo de seis mezes, pediu ao tio padre que lhe mandasse alguns soccorros, com que pudesse deter-se mais algum mez em Lisboa, esperando despacho. No lhe respondeu o tio, porque j estava na presena de Deus. Responderam as irmans, pedindo-lhe que fosse tomar conta d'ellas, visto que o novo abbade as mandaria sahir da casa da residencia parochial. Triste nova para o pobre pretendente, que s tinha de seu o diploma, e uma surrada casaca com que [21] ia s audiencias semanaes do ministro, o qual nunca lhe deu f da casaca, nem dos premios universitarios, nem das lagrimas! Escreveu Antonio a um de seus quatro irmos, que j era guarda-livros n'uma casa commercial do Porto, pedindo-lhe meios para sahir de Lisboa, e ir provincia tomar conta das irmans. O guarda livros acudiu prestes ao pedido, e partiu logo a segurar a subsistencia s quatro meninas na casa agricola em que tinham nascido. Deteve-se ainda alguns mezes o bacharel em Lisboa, sustentado por seu irmo. A final, baldadas as supplicas, o triste moo sahiu da capital com inteno de abrir escriptorio de advogado na sua terra. No desagrade ao leitor este familiar estylo com que lhe so contadas coisas de si to singelas, que, s custa de muito florescl-as, que poderiam ser agradaveis. Acceitem-me os successos verdadeiros sem enfeites; quando eu estiver fantasiando, ento lh'os darei ataviados de modo que a poesia me dispense de ser um fiel copista do que a toda a hora nos passa diante dos olhos. Chegou Antonio d'Azevedo ao Porto, e hospedou-se em casa de seu irmo Joaquim. Acertara de ser o commerciante a cujo servio estava Joaquim, pae de dois condiscipulos de Antonio. Receberam-n'o cordialmente, deram-lhe bom quarto, sentaram-no no melhor logar da sua mesa, e instaram-o a demorar-se no Porto durante aquelle inverno. N'essa mesma occasio fra ao Porto Gasto de Noronha com suas filhas e mulher;[22]e, como Antonio d'Azevedo, obrigado pelos seus hospedeiros condiscipulos, fosse aos bailes onde elles iam, ahi est a razo porque Corinna da Soledade encontrou o bacharel de Barcellos no baile do conde do Casal. O infortunio abastarda os espiritos, desalenta-os, e de todo os transfigura. Antonio d'Azevedo vergava debaixo da dependencia, sem maldizel-a. Sentia-se alquebrado por sua mesma inercia, e esmagado pelo quasi opprobrio de sua inutilidade. O futuro estava-lhe fechado, futuro para onde o arremessavam esperanas, que todas vira morrer, durante aquelle triste viver de supplicas e repulses porta de ministros, de magnates, de influentes, homens que vestem o arnez do egoismo, logo que, no dizer do senhor A. Herculano, se recostam nos sophs para onde se atiraram de cima do tamborete de couro ou da cadeira de pinho. Sentia-se o moo brutificado pela desgraa: tem ella de seu o fatal condo de deslapidar o brilho das ideias, enredando-as, escurecendo-as, falsificando-as; ha uma como nevoa que empana os objectos ou os desfigura; o infeliz v sempre errado; ora cr e confia-se em tudo que ao commum dos homens despresivel; ora esquiva-se a tomar pelos caminhos direitos do bem-estar, que eventualmente se lhe offerecem. Pde ser que uma linguagem energica lhe valesse uma transformao de vida; mas o susto, o quasi pavor com que falla aos grandes, e a humildade lagrimosa com que intenta commovel-os, ainda um sestro mau da sua desgraa. E em tudo assim, em tudo, at no amor, que devia estar [23] forro das cadeias com que a desfortuna peia e trava as demais faculdades. ao p da mulher amada, amada sem confiana nem expanso, ahi que mais a olhos observadores se manifesta o infeliz. Nenhuma palavra diz que lealmente lhe sirva o corao. O que diz incongruente e absurdo, quando no disparate de desfranzir um riso. As agudezas triviaes, que inculcam fina tmpera de alma, e que todo o homem, medianamente servido de olhos e intellecto, sabe dizer, tomam no discurso do infeliz umas entoaes ridiculas e antipathicas. Se algum pensamento bem ordenado lhe entreluz, esmorece ao proferil-o, afroixa-o como inconciliavel com sua baixa posio, e prefere antes trocal-o por uma semsaboria. Esta a sorte de todos os desgraados, que no so tolos; porm coisa muito rara encontrar-se um tolo desgraado. Antonio d'Azevedo sondara-se, compulsara-se, e vira a lenta desfigurao que se operara em sua alma. Impozera-se silencio, que os seus amigos estranhavam. Negava-se a dar parecer nas mais insignificantes questes. De si para si dizia elle que sentia uma depresso no cerebro, uma placa de ferro premindo-lhe a bossa do entendimento. Onde concorresse com senhoras, ninguem lhe ouvia palavra, seno as precisas para dar um pretexto a ausentar-se. Muita gente o reputava malfadado; e outra optava antes por que fosse estupido. Quando elle viu Corinna da Soledade, estava ao lado d'um sujeito, cuja maxima gloria n'este globo era [24] poder apresentar um conhecido a outro conhecido. Assim que alguem lhe dizia: Vossa senhoria conhece fulano? respondia logo: Quer ser apresentado? E se os apresentados lhe ficavam mo, era logo. Foi o que aconteceu com Antonio d'Azevedo. Apenas lhe elle perguntou quem era aquella menina vestida de azul-celeste, o sujeito travou-lhe do brao, e disse: Venha c. O bacharel mal sabia onde era levado, quando se viu rosto a rosto de Corinna, a quem o apresentante disse: O meu amigo doutor Antonio d'Azevedo Barbosa, que eu satisfactoriamente apresento excellentissima senhora D. Corinna da Soledade e Noronha, filha do nobilissimo Gasto de Noronha. Agora deem-me licena, que tenho de fazer quatro apresentaes ao conde do Casal. Deus livre o leitor de ver-se alguma vez nos apertos do bacharel! Corinna esperou o logar-commum que deriva da apresentao. Antonio d'Azevedo no sabia o logar-commum. Foi ella quem o disse: Est animadissimo o baile; mas abafa a gente de calor! Sim, minha senhoradisse o nosso pobre amigo, puxando pelo colchete da luva at arrancal-o com a pelica. Corinna esperou ainda que o moo fosse alm da affirmativa do calor, em que elle parecia estar mais [25] abafado que toda a outra gente: to copiosas lhe borbulhavam na testa e faces as camarinhas do suor! Antonio d'Azevedo viu-se tal qual estava sendo aos olhos da filha de Gasto de Noronha. Apiedou-se d'elle o seu bom anjo. Levantou-se aquelle espirito com todo o peso da sua amargura, e disse abruptamente, mas de compasso: Eu no solicitei a honra de ser apresentado a vossa excellencia. Um homem desgraado no pede relaes. Fui barbaro comigo mesmo entrando aqui; mas a desventura tem mil rodeios por onde me encaminha a tudo que me augmenta o desgosto da vida. Resta-me ainda uma sombra de vaidade... Custa-me que vossa excellencia fique fazendo de mim uma ideia injusta. No sou absolutamente estupido: sou infeliz. Perdi o dom da palavra, e s sei fallar em lagrimas, ou com a minha consciencia, na solido. Perde-me vossa excellencia este intempestivo desafogo. E retirou-se, sem dar tempo a um monossyllabo. Corinna da Soledade seguiu-o interdicta com os olhos, e estranhou aquella novidade romanesca de que no encontrra exemplo mesmo em Paris. Antonio d'Azevedo sahiu do baile, que era na casa do quartel general, e tomou pela rua do Sol a passo vagaroso, at receber a bafagem fria do Douro, debruando-se sobre o peitoril do passeio das Fontainhas. Pouco depois desenrolou-se do mar um denso nevoeiro que se estendeu rio acima, e logo despediu em nuvens a subir as fragosas ribas da margem direita, e espraiou-se [26] com taciturna presteza por sobre a cidade. A reglida neblina arrefecera a cabea do moo. O que elle estava soffrendo era um d'aquelles phrenesis que, a longos espaos, atacam os misanthropos. As pessoas nunca apalpadas por esta penosa enfermidade, cuidam que ou ella no existe, ou, se existe, em pouco est o combatel-a com os suaves linimentos da sociabilidade, ou pouco se deve doer de a no gosar o misanthropo que lhe foge. Pouco sabe de tamanha desventura quem tal diz! Os accessos de vertiginosa raiva que padecem os feridos d'esta lepra moral so agonias mortaes. O esquivarem-se sociedade, o ouvirem-se unicamente a si proprios nos monologos selvagens com que a si se amaldioam e amaldioam a humanidade, dispara por vezes em enfurecimentos e raivas, que s bem desafogam se o desgraado, com as proprias unhas, se dilacera. O homem sem irmos, sem familia, sem amigos, sem um mundo que lhe absorva a sua individualidade e n'elle se identifique, se tanto fra das leis da natureza, que a sua angustia ha de superar todas as angustias inconsolaveis. D'estas horas tinha muitas Antonio d'Azevedo, e uma das mais longas e convulsivas estava elle penando n'aquella noite. Havia de pensar a leitora que o infeliz ia para as Fontainhas scismar na imagem de Corinna da Soledade, contar-lhe os seus infortunios sem pejo d'ella nem das estrellas, consubstancial-a em sua alma pelo mais facil dos processos que usam amantes imaginativos; [27] em fim, haviam de pensar os meus amigos que Antonio d'Azevedo era um poeta como ns todos os que andamos de noite a namorar senhoras nos luzeiros do firmamento, como se isso servisse d'alguma coisa para o amanho da vida de cada um e de cada uma. Em minha boa e leal verdade hei de dizer-lhes que o bacharel de Barcellos era bastante desgraado para entender em coisas do corao, que requerem contentamento e paz de espirito. Um homem que medita no presente e futuro de quatro irmans, reconcentra toda a sua sensibilidade no corao paternal. O corao dos amores conjugaesalvo mais ou menos remoto dos affectos enamoradosesse no se compadece com as tristezas, que gelam e como que endurecem o espirito. Em quanto, porm, o moo engolfava os olhos e o pensamento na alvacenta nuvem que mais e mais se condensava sobre a torrente, Corinna da Soledade relanceava inquieta os olhos procura do cavalheiro que lhe tinha apresentado Antonio d'Azevedo. Ao vel-o, fez-lhe signal com vehemente interesse, e perguntou-lhe quem era o sujeito que lhe elle apresentara. um doutor de Barcellos, que eu encontrei, ha dias, hospedado em casa dos Taveiras, riquissimos commerciantes. Estes meus amigos que devem conhecel-o cabalmente, e s elles podem informar vossa excellencia... D-me licena... O cavalheiro vira de relance um dos dois bachareis, condiscipulos de Antonio d'Azevedo, e apanhou pelos cabellos o ensejo d'uma apresentao. Instantes depois [28] voltava, e dizia ter a honra de apresentar filha do nobilissimo Gasto de Noronha o doutor Felisberto Taveira, e deixou-os, segundo disse, para ir apresentar dois amigos da provincia senhora condessa do Casal. Este cavalheiro, alguns annos depois, hora da morte, ainda apresentou ao seu confessor as testemunhas do testamento. [29] IV. Corinna e Felisberto Taveira conversaram largo espao. Gasto de Noronha, reparando no interesse e apparente intimidade com que sua filha, estranha s dansas e a tudo, se entretinha, cuidou em averiguar quem fosse o cavalheiro. As informaes deram em resultado que o fidalgo ficou contente. Houve alli um sujeito que respondeu assim arithmeticamente pergunta do nobilissimo Gasto: Joo Bernardo Taveira, quando casou, ......Buy Now (To Read More)
Ebook Number: 33788
Author: Castelo Branco, Camilo
Release Date: Sep 21, 2010
Format: eBook
Language: Portuguese
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