Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 03

Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 03 Title: Opsculos por Alexandre Herculano - Tomo 03 Author: Alexandre...
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Author: Herculano, Alexandre,1810-1877
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Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 03

Title: Opsculos por Alexandre Herculano - Tomo 03 Author: Alexandre Herculano Release Date: November 30, 2009 [EBook #30566] Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) Nota de editor: Devido existncia de erros tipogrficos neste texto, foram tomadas vrias decises quanto verso final. Em caso de dvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrar a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Nov. 2009) OPUSCULOS OPUSCULOS POR A. HERCULANO SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA SOCIO CORRESPONDENTE DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID DO INSTITUTO DE FRANA (ACADEMIA DAS INSCRIPES) DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE TURIM DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC. TOMO III CONTROVERSIAS E ESTUDOS HISTORICOS TOMO I LISBOA VIUVA BERTRAND & C.aSUCCESSORES, CARVALHO & C.a Chiado, 78 M DCCC LXXVI LisboaImprensa Nacional Contem este volume diversos escriptos sobre duas questes historicas. A primeira, que se refere s tradies fabulosas cerca da batalha de Ourique, quasi que no tem valor algum luz da sciencia. Expr semelhantes tradies era, por assim dizer, refut-las, e perante a historia tal refutao seria de sobra. A segunda, relativa situao das classes servas na Hespanha desde o VIII at o XII seculo, versa sobre a legitimidade da soluo que adoptei n'um dos mais difficeis problemas que se me offereceram ao escrever o terceiro volume da Historia de Portugal na epocha decorrida desde a fundao da monarchia at o fim do reinado de Affonso III. As phases da lenta transformao do escravo das sociedades [VI] antigas no obreiro, cidado livre das sociedades modernas, obscuras ainda em parte na historia da civilisao e do progresso humano entre as naes d'alm dos Pireneus, muito mais o so quem delles. As divergencias, e divergencias profundas, entre os que se dedicam a estudar o assumpto nascem dessa obscuridade, e dos debates que elle pode suscitar que ha de surgir a final a luz. Como tantas vezes succede, no foi a questo grave e difficil que alevantou arruido: foi a insignificante que despertou as attenes e que produziu viva agitao na imprensa e fra da imprensa, dividindo em dous campos o publico que l. que na primeira interessava apenas a sciencia, e a segunda contrariava os intuitos de uma parcialidade e as preoccupaes dos espiritos vulgares, que constituem o grande numero. Se a religio era extranha ao assumpto, ou antes ganhava na suppresso de uma pia fraude, perdia com isso a maioria do sacerdocio, atarefada, hoje mais que nunca, em tecer a rede de suppostos milagres [VII] em que parece querer amortalhar o catholicismo. Escrevendo um livro serio, eu affastara brandamente para o limbo das fabulas aquellas fices ridiculas, porque era foroso faz-lo. Nem tivera a inteno do escandalo, nem a cousa o valia. A maioria, porm, do clero no o entendeu assim. Na carta ao patriarcha de Lisboa, com a qual este volume comea, est a resumida noticia das aggresses de que fui alvo e que por algum tempo supportei com resignao ou indifferena, resignao ou indifferena em que provavelmente, hoje, que sei melhor o que taes aggresses valem, continuaria a permanecer. Estava, porm, ento naquella epocha da vida em que a paciencia christan no a virtude mais vulgar do homem. O leitor ajuizar se os prelados portugueses foram ou no imprudentes em tolerarem ou talvez favorecerem aquellas ineptas e brutaes manifestaes da ignorancia e do interesse ferido. Pelo que toca ao opusculo sobre o estado das classes servas da Peninsula no decurso dos seculos [VIII] VIII a XII, destinado a combater as opinies do erudito Muoz y Romero, bem de crer que ao meu illustre adversario no faltassem argumentos para contrapr s objeces que lhe fiz; mas affastaram-no do debate outros estudos, at que veio salte-lo a morte, quando a Hespanha tinha a esperar os melhores fructos da alta intelligencia daquelle incansavel cultor da historia. Buscando ambos a verdade, a discusso encetada conduzir-nos-hia, provavelmente, a modificarmos, tanto um como outro, as nossas ideas, talvez absolutas em demasia, e a estabelecermos uma doutrina solida sobre to espinhoso assumpto. Entretanto, ainda hoje me persuado de que, para nos aproximar-mos, seria elle que teria de andar mais caminho. Julg-lo-ho os que, depois de lerem attentamente o meu modesto trabalho, examinarem com igual atteno o escripto de Muoz y Romero e a apreciao desse escripto por Mr. de Rozire. Janeiro de 1876 A BATALHA DE OURIQUE I EU E O CLERO AO PATRIARCHA DE LISBOA (Junho, 1850) debaixo da impresso de vivo desgosto, e cedendo emfim ao impulso de justa indignao, que dirijo a vossa eminencia esta carta. A desculpa que merece um animo turbado por offensas immerecidas, e o favor que sempre encontrei em vossa eminencia me fazem esperar que esse favor no padecer quebra, se alguma phrase mais forte do que eu desejara me fugir da penna ao escrever este papel; papel que, solemnemente o declaro desde j, no tem por objecto, como alguem poderia suppr, pedir desaggravo das offensas a que alludo. De natureza so ellas, que nem preciso nem quero que outrem as puna. Sei e posso eu faz-lo, se cumprir, de um modo que sirva de escarmento ignorancia perversa e [4] hypocrisia insensata. O meu intuito apenas rogar directamente a vossa eminencia, e indirectamente aos demais prelados de Portugal a cujas mos chegar esta carta por interveno da imprensa, que, obstando a novas provocaes da parte do clero, me poupem a dar uma dura lico a individuos, que, desconhecendo os deveres do sacerdocio e incapazes de sentimentos de moderao, tentam excitar as paixes odientas de um fanatismo que j nem, talvez, o povo comprehende contra um homem que nunca lhes fez mal, e que nem sequer se lembra delles, porque tem cousas um pouco mais srias em que cogitar. Ha quatro annos que publiquei o primeiro volume de uma Historia de Portugal, que tem feito certa impresso no paiz, e ainda fra delle. Na benevolencia com que esse livro foi recebido por naturaes e extranhos nada ha provavelmente que deva lisonjear o amor-proprio litterario do auctor, mas ha uma prova de que o publico reconheceu nelle certa independencia de espirito e uma estricta imparcialidade, para a qual o longo e severo exame dos factos o habilitava. Como eu o previra na advertencia posta frente daquelle primeiro volume, a sinceridade da narrativa, estribada em monumentos indisputaveis, destruindo [5] muitas dessas tradies, mais ou menos improvaveis, que deturpam a historia de todos os povos, suscitou contradictores. Era cousa natural. As manifestaes de colera, as injurias vertidas contra mim na imprensa, no podiam causar-me nem estranheza nem abalo. Estava resolvido a guardar silencio perante ellas e a proseguir na senda que abrira, sem me distrahir com luctas estereis. A verdade fica, e as preoccupaes passam. Ao mesmo tempo a minha resoluo inabalavel era, e , desprezar todos os respeitos humanos que se contraponham voz da propria consciencia. Todavia o no nos affastarmos dos seus dictames empenho que no sae de graa neste mundo de paixes pequenas e ms; e bem louca esperana seria a minha, se a tivesse de evitar os effeitos de uma lei universal. Era por isso que estava resolvido a esgotar resignadamente o meu calix. Pouco depois da publicao do primeiro volume da Historia de Portugal, n'um periodico litterario da universidade de Dublin um critico ingls punha em duvida se eu, que expurgara de lendas fradescas a historia do bero da monarchia, teria esforo bastante para avaliar como cumpria as longas e violentas dissenses dos reis da primeira [6] dynastia com os bispos e com a curia romana. Quando li isto, sorri-me. Nessa mesma conjunctura publicava-se em Lisboa o meu segundo volume, onde se continha a narrativa de boa parte daquellas discordias. Ahi me parece ter dado documento de que os receios manifestados na imprensa inglesa no eram dos mais bem fundados. Mas esse volume, accendendo novas coleras, despertou em alguem a ida de me refutar de modo inaudito. Do pulpito de uma das igrejas de Braga, da antiga metropole, onde ainda devem estar bem vivas as memorias do veneravel Caetano Brando, do illustre prelado que pretendia reformar o breviario e missal bracharenses por causa das suas intoleraveis patranhas e falsidades (phrase do grande arcebispo), o meu nome foi lanado s multides ladeado dos epithetos de hereje, de impio e de outros semelhantes. Um egresso fanatico e ignorante (como o so centenares de sacerdotes no meio do nosso clero, que no recebe ha muitos annos nem educao moral nem educao litteraria) cubriu-me de injurias diante de um concurso numeroso, segundo me informaram, porque no meu livro usara do direito de historiador, qualificando devidamente [7] essas intelligencias vastas e energicas, mas corruptas, violentas e cubiosas que cingiram a thiara papal, e que se chamaram Gregorio, Innocencio ou Honorio. A principio acreditei que isto no passara de um impulso de fanatismo individual; mas em breve me desenganei de que o facto pertencia a um systema organisado de aggresso. A imprensa politica noticiou procedimentos analogos para comigo em outros lugares do arcebispado. Se o objecto das invectivas era o mesmo, se igual a violencia das expresses, ignoro-o: mas o que me pareceu evidente foi que havia, como disse, em to insolito proceder um systema uniforme e combinado. Calei-me. A minha equanimidade foi bastante para tolerar este ataque brutal liberdade do pensamento; foi tamanha como a do respectivo prelado, que guardou silencio, e que devera ter advertido o seu clero de que, no havendo eu offendido doutrina alguma da igreja, e tendo-me limitado a julgar os homens e os factos da epocha sobre que escrevia, por mais erradas que fossem as minhas opinies, ellas no podiam ser qualificadas publicamente de hereticas, concitando-se assim contra mim a credulidade popular. Um sermo no o meio de refutar erros litterarios, e [8] muito menos o qualificar taes erros como offensas da f para os transformar em crimes religiosos. Em semelhante terreno a lucta sera impossivel, porque delle brota o risco pessoal, ou pelo menos a perda da reputao moral para um dos contendores, ou melhor direi para a victima indefensa, amarrada ao poste desse novo genero de patibulo. Os ignorantes olhariam com horror para o Luthero ou Calvino que surge na terra da patria, e esse odio publico uma verdadeira coaco liberdade legitima do escriptor: legitima, digo, porque, apesar de tantas declamaes e queixas, evidente que no meu livro no ha uma unica palavra que offenda a orthodoxia da igreja. Se eu tivesse proferido alguma heresia, os prelados portugueses, e em particular vossa eminencia como meu pastor, no seriam capazes de faltar aos seus mais estrictos deveres, deixando de me advertir do erro com caridade evangelica, e de me condemnar se eu insistisse n'elle. Era ento que aos bispos, e no a qualquer desses cirzidores de farrapos de sermes velhos, desses inimigos figadaes da lingua, da grammatica e do senso commum, denominados, por antiphrase, prgadores ou oradores, que era licito, que cumpria lanar sobre mim o anathema. [9] A guerra desleal que uma parte do clero (digo uma parte, porque no seu gremio ha muitos homens leaes e verdadeiramente illustrados) me declarara no norte do reino no tardou a apparecer no meio-dia, no recincto da propria capital. O primeiro commettimento foi tentado n'uma solemnidade notavel, e n'um dos templos mais frequentados de Lisboa. Nesse acto o absurdo da aggresso nasceu antes da impropriedade do logar, do que das formulas empregadas pelo aggressor, que se absteve de injurias grosseiras. Lisboa no Braga, e o negocio precisava aqui de maior circumspeco. Entretanto a tentativa desagradou geralmente, e eu pensei que emfim me deixariam em paz. No succedeu assim. Ultimamente na minha propria parochia, e dous dias depois n'outra igreja da capital, fui de novo arrastado perante as turbas na torrente da eloquencia clerical. Se no primeiro caso houve a inteno de se me administrar face a face uma correco fraterna, o calculo falhou. Creio que vossa eminencia me faz a justia de acreditar que no me deleito excessivamente em ir ouvir mus sermes de ha sessenta annos, ou traduces detestaveis de fragmentos de sermonarios franceses, declamadas, ou antes [10] carpidas, em tom ainda mais detestavel. O annuncio de um sermo para mim por via de regra a espada percuciente do anjo do paraiso flamejando porta do templo. Salvo em rarissimos casos, no haveria foras que podessem arrastar-me a assistir aos partos da oratoria, que, por irriso sacrilega, se denomina sagrada. A resistencia dos meus nervos em tal conjunctura seria mais forte do que a propria vontade. Em Braga, e creio que nos outros logares daquella diocese, a censura tinha sido fulminada contra a liberdade com que falei dos chefes da igreja nos seculos mdios, da curia romana, e talvez dos bispos portugueses de ento. Ao menos l a invectiva tinha certa originalidade. No patriarchado, porm, as accusaes, postoque menos brutaes, tiveram o defeito de ser um verdadeiro plagio. Narrando no primeiro volume da Historia de Portugal o recontro de julho de 1139 em Ourique, reduzido s dimenses que supps e supponho exactas, ommitti a fabula do apparecimento de Christo, como cousa indigna da gravidade da historia, e, sob certo aspecto, demasiado irreverente para com o sublime Fundador do Christianismo. Apenas n'uma nota alludi a essa tradio [11] absurda, affirmando que se estribava n'um documento falso, o celebre juramento attribuido a Affonso I, juramento que ainda existe no supposto original. Eis o grande escandalo para os prgadores de Lisboa. Confesso que ahi tractei esse embuste com o desprezo que elle merece, porque, na verdade, conhecendo eu muitos diplomas forjados com maior ou menor destreza, este , sem contradico, o mais inhabilmente executado. As poucas palavras que dediquei a semelhante ninharia suscitaram o zelo de alguns individuos, persuadidos de que eu tinha despedaado, com as tres ou quatro linhas que a tal proposito escrevi, o palladio da independencia nacional, que bem fraca independencia sera se estivesse como adscripta crena ou descrena n'um conto de velhas. Houve at um pobre homem, o qual, no meio das discordias civis que assolaram o reino pouco depois da publicao do meu livro, dirigiu aos povos do Alemtjo uma proclamao, em que affirmava que, ligado por um pacto infernal com os membros do governo ento derribado, eu ia demolindo as glorias portuguesas para vendermos de commum accordo a independencia da patria. No me recordo agora do preo, nem de [12] quem foi o comprador, mas a venda parece que era indubitavel. Entretanto publicavam-se artigos de jornaes e folhetos avulsos contra mim. Nada mais legitimo; nada mais liberal. Se os corsarios da palavra de Deus, que esbombardeam o meu pobre livro de um logar aonde eu no posso subir, do alto do pulpito, convertido em chapiteu de proa de junco malaio, houvessem seguido este rumo, seria eu to ridiculo como o instrumento da appario, se disso me queixasse a vossa eminencia ou aos outros prelados do reino. A imprensa uma estacada onde nos julgadores do combate, e sobretudo de um combate litterario ou scientifico, ha j um grau de illustrao, que at certo ponto affiana uma deciso justa. Reptado ahi, eu podia erguer a luva, ou deixar, quando assim o entendesse, que o livro delatado servisse por si mesmo de resposta aos accusadores. Em um e outro caso procederia livremente, e no ficaria, como no campo em que sou aggredido, collocado debaixo de uma coaco moral. Ahi os reverendos prgadores, que tem tido a condescendencia de tractar da minha humilde pessoa, at poderiam appellidar-me, se quizessem, hereje, impio, atheu, demonio incarnado: eu respondia-lhes que elles estavam bem [13] livres de ser nenhuma dessas cousas, e ficavamos perfeitamente pagos. Dous dos folhetos avulsos dirigidos contra a Historia de Portugal, que me chegaram s mos, tractavam justamente desse gravissimo negocio da appario, que em parte me tem feito victima, por me servir de uma phrase do padre Isla, da dialectica eloquencia dos selvagens da Europa. Ambos comedidos e corteses, ao mesmo tempo que produziam no meu animo um sentimento de tristeza, inhibiam-me de responder-lhes, ainda quando no estivesse, como ha pouco disse a vossa eminencia, no firme proposito de evitar luctas estereis. A tristeza que senti leitura daquelles folhetos nascia de achar nelles a prova da decadencia a que tinham chegado neste paiz os estudos historicos. N'um livro que, com bons ou maus fundamentos, mudava completamente o aspecto at aqui attribuido ao complexo dos successos do nosso paiz, na infancia da sociedade portuguesa, havia por certo mais de uma inexaco, mais de um defeito importante, como obra que era de homemde homem desajudado n'uma empreza de tal ordem, e entregue unicamente aos proprios recursos e foras. cerca, porm, das materias positivas, historicas, susceptiveis de serio [14] exame, apenas appareceu, que me conste, um artigo no periodico litterario a Revista Universal, e outro no Observador de Coimbra. As duas publicaes avulsas que me vieram s mos, ambas, como disse, curavam exclusivamente de me demonstrar o milagre da appario, milagre do qual (atrevo-me quasi a affirm-lo) ainda que os meus adversarios o tivessem sustentado com boas razes historicas, me parece que eu, vossa eminencia, toda a gente, que no seja algum leigo capucho, haviamos de continuar a rir, cada qual segundo o papel que acceitou nesta grande comedia humanauns em publico, outros em particular. Agora pelo que respeita aos motivos que, alm da razo geral j dada, me inhibiam de responder aos dous escriptores, permitta-me vossa eminencia que eu dilate um pouco o discurso a este proposito. No a digresso alheia ao assumpto. O meu silencio ante contendores francos e leaes, que me buscavam com armas corteses no campo da imprensa, interpretou-o a ignorancia como um signal de fraqueza. No contribuiria isto para despertar a audacia dos meus anathematisadores? No seria eu proprio o culpado da minha affronta? Desculpe vossa eminencia uma comparao, [15] acaso ambiciosa em demasia. Tem o merito de se referir a uma fabula, e ns achamo-nos n'uma questo de fabulas. Quando o leo jazia moribundo, foram as feras valentes e generosas que arrostaram o perigo. O onagro s veio ferir-lhe a fronte pendida, depois que, averiguada a situao do rei das florestas, se persuadiu de que podia injuri-lo a seu salvo. Se fui, pois, o causador do mal, devo justificar o silencio que o gerou. a esse alvo que se dirige a digresso de que falo. Um dos folhetos era escripto por um ancio respeitavel, no s pelas suas cans, mas tambem pelos seus padecimentos physicos, considerao fortissima para mim, que entendo ser sempre digna de respeito a desgraa; era produco de um homem chegado quelle quartel da vida, em que o espirito parece eivado da ruina do corpo, que vem annunciando a proximidade do tumulo. Com a mo na consciencia eu protesto a vossa eminencia que ainda hoje sentiria remorsos, se, na fora da vida e do pouco talento que Deus repartiu comigo, no tivera sabido domar os impulsos de um ridiculo amor-proprio; se houvera ido derramar a afflico sobre o leito de dor do afflicto, para saborear o triste e vergonhoso prazer de ouvir [16] os apupos do publico a um pobre velho, que queria, que tinha direito de morrer em paz abraado com as tradies da sua infancia; que precisava de protestar contra um homem, o qual, embora involuntariamente, ia prostituir-lhe no corao idas e affectos, amigos constantes da sua larga existencia. Se Deus podesse fazer milagres absurdos e inuteis, como o da appario, eu preferiria ver-me convertido em cirzidor e carpidor de farrapos pareneticos a ter de accusar-me de uma aco, que no sei qual seria mais, se covarde, se despiedada. Quanto ao outro folheto, composto por um homem de talento, instruido, e no vigor da idade, no militavam as mesmas razes de conveniencia moral; militavam, porm, outras assaz fortes, e de natureza analoga. Affastadas as consideraes poeticas, alheias a materias historicas, os argumentos colligidos naquella publicao a favor do milagre de Ourique dividiam-se em duas categorias, ou antes eram apenas dous argumentos. Um consistia no consenso de certo numero de escriptores, todos de epochas mais recentes que o meado do seculo XV. A futilidade desta argumentao evidente. Os classicos so respeitaveis como mestres de lingua; mas como testemunhas [17] de um facto, que se diz acontecido pelo menos trezentos annos antes que elles escrevessem, de nada servem. A qualidade de classicos no exclue a de credulos, e nem sequer a de inventores de patranhas. A chronica de Clarimundo, a da Tavola-redonda, a de Palmeirim d'Inglaterra so escriptas por tres classicos como Barros, Jorge Ferreira, e Francisco de Moraes, e eu supponho, no sei se me engano, que esses livros no encerram seno mentiras. Se o auctor queria provar-me a perpetuidade da tradio de Ourique, no devia esquecer o criterium estabelecido por Vicente de Lerins, e com elle pelo senso commum, para distinguirmos das falsas as tradies verdadeiras: Quod semper, quod ubique, quod ab omnibus creditum est. Era-lhe necessario mostrar-me essa tradio atravs de todos os seculos, e sobretudo dos seculos onde ella desapparece, os tres immediatos ao supposto facto. Confesso a vossa eminencia um peccado, e alliviarei delle a consciencia, porque o confesso perante o meu pastor: a minha intelligencia foi demasiado orgulhosa para descer a refutar semelhantes objeces. Que me importava, de feito, que a fabula tivesse este ou aquelle motivo, nascesse no seculo XVI ou no XV? Tomara eu tempo e monumentos para averiguar os successos [18] verdadeiros e as suas causas, circumstancias e effeitos. Genealogico d'embustes mistr para o qual me falta inteiramente a vocao. A segunda categoria de argumentos, ou antes, o segundo argumento em favor do milagre era a citao de dous textos precisos, de duas auctoridades contemporaneas, que relatavam o successo. Uma era nada menos que a de S. Bernardo; outra a de uma copia coeva do juramento, copia conservada em Roma, e transcripta no volume 51 da Symmitica Lusitana, manuscripto da Bibliotheca Real, de cuja existencia abonador o illustre Cenaculo. Este argumento estava longe da obvia fraqueza de est'outro. A tradio a assim prender-se do seculo XV ao XII, embora obscurecida no periodo intermedio. Alguem imaginar, portanto, que para no responder a objeces deste valor apparente s me conteve o proposito de evitar disputas escusadas. No foi assim. Contiveram-me consideraes de maior monta. Se o eram ou no, vossa eminencia o julgar. Antes de tudo, observar vossa eminencia que eu digo disputas escusadas. Digo-o, porque esses testemunhos contemporaneos no bastam, como vossa eminencia sabe, para acreditarmos nos milagres da idade mdia. excessiva devassido e [19] bruteza aquelles tempos de trevas uniam uma crena fervorosa, confundida com superstio extrema. A ida religiosa formulava-se em tudo, na guerra, na vida civil, nos affectos do corao, nas artes, na litteratura, na sciencia; e quando uma ida domina assim a sociedade, converte-se em prisma atravs do qual as cousas se illuminam com as cres que elle lhes transmitte. O maravilhoso introduzia-se em todos os factos em que as imaginaes, possuidas de uma especie de febre moral, achavam pretextos mais ou menos plausiveis para lh'o attribuir. Accrescia a tendencia innata dos homens para indagar as causas dos diversos phenomenos. Comprimida n'um ambiente de ignorancia e rudeza (ambiente em que vive boa parte do nosso clero), essa tendencia dilatava-se, respirava pelo unico resfolgadouro possivel, pela facil theoria do maravilhoso, do sobreintelligivel. Nas chronicas d'ento quasi que o miraculoso o regular, e o natural a excepo. Dos chronistas dos seculos barbaros o mais despreoccupado o benedictino ingls Matheus Paris. Todavia centenares, que no dezenas, de milagres absurdos so gravemente narrados na Historia Major. Permitte-me vossa eminencia que lhe recorde um exemplo do modo de vr daquellas eras? [20] Sem sairmos do reino, nem do seculo XII, e at limitando-nos vida do personagem a quem se attribue o singular favor de Ourique, temos mo um exercito de milagres, postoque em sentido inverso ao da appario. Alludo aos desgostos de S. Rosendo com o nosso primeiro rei. A vida do sancto, escripta no seculo XII, foi, como vossa eminencia sabe, publicada por Florez, e uma copia, talvez coeva, ou quando muito do seculo XIII, existe ainda entre os manuscriptos de Alcobaa (codice 133). Ahi lemos que o rei portugus fora obrigado a levantar o sitio do castello Sandino, nas margens do Arnoia, por uma tempestade de raios que o sancto desfechou contra elle. Se acreditarmos o pio agiographo, o seu implacavel heroe nunca perdoou a Affonso I, apparecendo por tres vezes a diversas pessoas para protestar vingana contra o principe, que nas suas correrias na Galliza no respeitara as terras do mosteiro de Cellanova. Nesta lucta atroz entre o grande da terra e o grande do ceu, S. Rosendo no poupava maravilhas. Debalde; porque, como observa o monge historiador, o corao do rei, que elle compara caritativamente a Simo Mago, estava obdurado, qual o de Phara, para maior cumulo da sua condemnao. A malevolencia milagreira do sancto [21] no abandonou Affonso Henriques seno no tumulo. Os contratempos dos ultimos annos do reinado do fundador da monarchia, incluindo o desbarato de Badajoz, a fractura da perna, o aleijo com que ficou at a morte, tudo foi obra de S. Rosendo, e havia mesmo quem affirmasse ter visto o sancto revestido do corpo humano e muito atarefado, na occasio em que o rei de Portugal cau prisioneiro do genro. So pelo menos vinte milagres attestados por um escriptor desses tempos. Penso que no me accusaro de avaro ou de desagradecido os que querem enriquecer fora o thesouro das minhas crenas com a appario de Ourique. Vinte por um. Indisputavelmente eu sou muito mais rico do que elles em proviso de milagres. De todas essas maravilhas, porm, apesar de subministrarem credulidade melhores fundamentos que a de Ourique, fao eu tanto caso como desta ultima, pelas consideraes que indiquei, alis bem escusadas para a comprehenso e litteratura de vossa eminencia. Mas nem foi unicamente o preceito que a mim proprio impusera de no malbaratar o tempo em questes desta ordem, nem essas consideraes, que obstaram a que eu respondesse a um escripto, em que o [22] erro, e talvez o despeito, vinham envoltos em frmas to corteses, que tocavam a raia de lisonjeiras, e em que a argumentao tomava emfim o aspecto de uma cousa sria. No, eminentissimo senhor! A refutao sera na verdade facil, decisiva, fulminante; mas ella lanaria uma torpe mancha sobre nomes illustres e caros igreja portuguesa. Repugnava-me sobretudo esta ida. Por maiores precaues de que eu me rodeasse, a logica implacavel do publico tiraria as legitimas illaes das minhas palavras, e convert-las-hia em desdouro commum de uma classe que nenhum mal me havia feito. Se hoje a necessidade de repellir a insolencia covarde, como a insolencia o sempre, me obriga a expr actos vergonhosos e inqualificaveis, a culpa no m'a lancem. Dous annos de paciencia provam que o fao constrangido por aggresses demasiado graves, no por si, nem por seus auctores, cousas profundamente insignificantes, mas pelo logar onde se commettem, por serem feitas com a inteno de excitar contra mim animadverses immerecidas, por se tentar, emfim, converter atraioadamente uma questo, que nem chega a ser historica, em questo religiosa. A gloria do escandalo deixo-a inteira aos que o provocaram. [23] Se vou bater sobre campas, que cobrem cinzas envoltas em vestes sacerdotaes; se perturbo a paz dos mortos para lhes bradarFalsarios!esta mo que se estende para indicar os criminosos, esta voz que se ergue para os condemnar, so minhas, mas protesto a vossa eminencia, que quem as suscitou no foi o meu corao, nem a minha vontade. Ha no soffrimento um ponto que sem deshonra no licito ultrapassar. Consta-me que o mais recente dos meus reverendos accusadores clamara no excesso do seu sincero zelo pela historieta da appario, que melhor fora que eu no houvera falado em tal. Melhor ainda do que isso me parece teria sido que elle no houvesse feito trasbordar o calix, j demasiado cheio, de uma justa indignao. A affirmativa de que no volume 51 da Symmitica Lusitana se encontra trasladada uma cpia do instrumento da appario, coeva de Affonso I, MENTIRA. O texto de S. Bernardo, relativo mesma appario, que se encontra inserido no Breviario, no officio das Chagas, FALSO. Se algum dos reverendos cirzidores sabe latim ( licito duvidar disso com a igreja, que manifestou a sua hesitao a este respeito mandando [24] accentuar as palavras dos livros rituaes com temor das syllabadas) que venha Bibliotheca Real, e ahi, no volume 51 da Symmitica a paginas 128, ler ou soletrar as seguintes palavras, escriptas na lingua latina, por baixo do traslado do instrumento da appario, nota escripta pela mesma letra do copista==Brando, Monarchia Lusitana, Parte 3. pagina 127. Extrahido de um codice que o auctor viu em Lisboa.==Eis em que consiste o traslado da copia coeva. Cenaculo, citando o documento pelo indice, quando podia cit-lo pelo logar competente da colleco, o que lhe era igualmente facil, commetteu uma daquellas levezas que no raro occorrem nos seus escriptos, ou practicou uma pia fraude? O bello e nobre caracter do bispo de Bja me faria adoptar sem hesitao o primeiro supposto, se o empenho em que elle entrara de provar a fara de Ourique, cuja vaidade o seu elevado espirito necessariamente havia de sentir, no podesse perturb-lo a ponto de practicar um acto indigno de quem, como elle, era um homem de letras, um prelado virtuoso, e a todos os respeitos um varo singular. A historia da passagem falsamente attribuida a S. Bernardo, , porm, materia mais grave, porque [25] nessa vergonhosa historia se acha compromettida a honra e a dignidade moral e litteraria do alto clero portugus no meiado do seculo passado. No direi da curia romana, porque nesse ponto no ha j para ella compromettimento possivel: vossa eminencia conhece to bem e melhor do que eu os seus annaes. A narrativa desse escandalo em resumo a seguinte: O patriarcha D. Thoms d'Almeida requereu a Bento XIV que concedesse ao clero de Portugal o officio proprio e missa das cinco Chagas, que, por decreto de 4 de julho de 1733, fora concedido a certas freiras de Florena. Accrescentava-se na supplica dirigida ao pontifice que na sexta lio se houvessem de addicionar as seguintes palavras==Quas lusitanum imperium etc.==que constituem o texto allegado contra mim. Consistindo, porm, a sexta lio daquelle officio n'uma passagem de S. Bernardo, uma vez que no houvesse a devida distinco entre essa passagem e o novo additamento, este se converteria n'um testemunho importante a favor da lenda da appario, de que provavelmente os homens instruidos comeavam a rir-se depois do impulso que aos estudos historicos dera o governo no reinado de D. Joo V. [26] Accedeu Bento XIV supplica do prelado portugus. O decreto de concesso, o officio e a missa expediram-se para Portugal impressos na typographia da camara apostolica. Segundo parece, a impresso foi feita no estio, e o compositor romano, no acto de compor a fatal sexta lico, estava perturbado pela febre da malaria. O additamento ficou enxertado nas phrases solemnes do grande abbade de Claraval com to subtil sutura, que faria honra a um operador de rhinoplastica. Atacado tambem pelos miasmas putridos das lagoas pontinas o revedor da camara apostolica esqueceu-se de emendar o erro. Aquelle innocente engano partiu, emfim, para Portugal. Aqui, n'uma epocha em que ainda os estudos do clero no tinham chegado decadencia em que hoje os vemos e de certo vossa eminencia lamenta como eu, e ......Buy Now (To Read More)

Product details

Ebook Number: 30566
Author: Herculano, Alexandre
Release Date: Nov 30, 2009
Format: eBook
Language: Portuguese

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