Alguns homens do meu tempo: impressões litterarias

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Alguns homens do meu tempo: impressões litterarias Title: Alguns homens do meu tempo Subtitle: impresses litterarias Author:...
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Author: Carvalho, Maria Amalia Vaz de,1847-1921
Format: eBook
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Author: Carvalho, Maria Amalia Vaz de,1847-1921
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Language: Portuguese

Alguns homens do meu tempo: impressões litterarias

Title: Alguns homens do meu tempo Subtitle: impresses litterarias Author: Maria Amalia Vaz de Carvalho Release Date: August 17, 2008 [EBook #26338] Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) Nota de editor: Devido quantidade de erros tipogrficos existentes neste texto, foram tomadas vrias decises quanto verso final. Em caso de dvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrar a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Agosto 2008) Maria Amalia Vaz de Carvalho Alguns homens do meu tempo Maria Amalia Vaz de Carvalho Alguns homens do meu tempo A ILL.ma E EX.ma SR.a D. MARIA MANOELA DE BRITO (Marqueza de Pomares) Minha querida Manoela. Para que um livro merecesse o teu nome inscripto na sua primeira pagina, seria indispensavel que esse livro fosse bello na frma e sincero na inteno. O modesto volume, que venho offerecer-te, s o segundo requisito pde ter a aspirao de realisar. Na nossa estreita e leal amisade de alguns annos, amizade em que tens posto os carinhos de uma adorada irm, eu aprendi [VIII] a respeitar-te e a amar-te como a um d'esses raros typos femininos de sincera virtude despretenciosa, de alto pensar e de sensibilidade vibrante, que alliam n'uma harmonia felicissima as qualidades d'um grande corao com as faculdades d'um levantado espirito. Pensas e sentes; comprehendes com singular subtileza e com ampla e ineffavel bondade, tens a curiosidade intelligente, e a sympathia larga e fecunda, que de todos os predicados d'um entendimento o mais precioso e o mais raro... Nunca estive perto de ti que me no sentisse melhor; nunca ouvi a tua voz, que no conhecesse de que fundo de sinceridade e de fora moral ella provinha... Perdoa-me se, pensando a teu respeito isto e mais do que isto, te fao uma offerta de to pouca valia. Muitos dos estudos incompletissimos, que compem este livro, foram escriptos sombra [IX] chilreada e fresca das arvores da tua senhorial Portellana companhia grata, carinhosa, dos dois hospitaleiros donos d'essa vivenda pittoresca e lindissima. Quantas vezes ahi tenho chegado empallidecida, extenuada, doente e triste, e quantas vezes de l tenho voltado mais vigorosa na alma e no corpo, trazendo no corao, como um balsamo e como um viatico, a imagem d'essa nobre vida de caridade e de abnegao, que partilhas com o companheiro do teu destino, e em que ambos so um suggestivo exemplo e uma excepo inspiradora... Se outro valor no tivesse para ti este pobre livro, que tu amas porque meu, bem o sei,teria o valor de ter sido quasi todo escripto ao p das grandes arvores que deram sombra aos jogos da tua infancia, e que tu decerto desejarias que emballassem, com a musica harmoniosa e calmante das suas ramagens murmuras, com [X] o gorgeio alegre dos seus ninhos primavers, o supremo somno que dormirs mais tarde, na serena beatitude das consciencias boas!... Lisboa. Dezembro 1888. Maria Amalia Vaz de Carvalho. GONALVES CRESPO As Miniaturas e os Nocturnos so incontestavelmente, e no dizer de auctorisados criticos, dois livros, que pdem classificar-se entre as perolas mais doces, mais preciosas, mais irisadas, da moderna litteratura portugueza. Leva-me hoje um pendor irresistivel a fallar d'esses dois livros, conhecendo que o assumpto, para mim, a um tempo muito attrahente e muito difficil. Dir-se-ha, que no pde fallar com justia do poeta, aquella, que sua memoria [2] querida est ligada por to estreitos laos; mas por que elle foi o companheiro da minha vida, o mestre e educador do meu espirito, o amigo inolvidavel cuja morte deixou orphos os meus filhos, no terei eu direito de ajuntar a minha voz humilde s vozes, que no paiz em que eu nasci, e no imperio em que elle nasceu, o proclamam um dos mais delicados poetas modernos, um dos cinzeladores mais primorosos da poesia portugueza, um parnasiano no bom sentido da palavra, quer dizer, juntando como Coppe, mas em muito mais alto gru do que este, a suavidade, a melodia, a correco do metro, ao sentimento profundo, comprehenso clara, nitida e perfeita de todos os segredos complexos da alma contemporanea? Parece-me que seriam rigorosos de mais os que tentassem coarctar-me esse direito, e que seria demasiada docilidade da minha parte o sujeitar-me a censores to intransigentes e to duros. [3] De mais, no escrevo eu exclusivamente para ser lida por mulheres? E onde est a mulher que me condemne n'este ponto? No ha nenhuma, tenho a certeza d'isso. Gonalves Crespo no escreveu seno as Miniaturas e os Nocturnos. Foram os versos da sua mocidade, colligidos debaixo d'aquelle titulo, que m'o fizeram conhecer e admirar; os Nocturnos pde bem dizer-se que foram escriptos ao meu lado. A obra do poeta tem pois para mim duas faces distinctas, mas para julgar as Miniaturas sinto-me por assim dizer mais independente e mais livre. Esse livro foi a revellao primeira, a revellao subita que eu tive d'aquelle, que treze annos depois, quasi que dia por dia, me expirava nos braos, pronunciando o meu nome, que a sua alma angelica, to depurada pelo soffrimento, to sanctificada pela resignao, enchia de benos. Foi em 1870 que as Miniaturas viram a luz pela primeira vez, revellando a Portugal [4] todo e a todo Brazil, que um poeta original, delicadissimo, correcto at perfeio, que um artista de primeira plana, um verdadeiro artista de raa, acabava de nascer para a litteratura portugueza. Foi esse um bello periodo da curta vida do poeta, hontem desconhecido ainda, hoje acclamado por todos os que tinham no espirito uma scentelha de gosto, e no corao um vislumbre de sensibilidade. Sobre a banca de trabalho de todas as mulheres distinctas, entre o cestinho de bordado e a jarra de violetas ou de rosas, achava-se ento o gracioso volume das Miniaturas, e muita voz feminina tremula de commoo, e muita voz de artista, ebrio da belleza da frma, repetia com enlevo essa doce elegia adoravelmente sentida, que se chama Alguem, esse poema de inconsavel e vaga tristeza, que se intitula: Arrependida, e a Noiva, e o ramo de saudades e de lyrios entretecido sobre o tumulo de Modesta e a esplendida Nera, e a esculptural e voluptuosa [5] Sara, e a ineffavel e consoladora Transfigurao. Quantos aspectos do mesmo talento! quantas frmas da mesma phantasia seductora! quantas expanses da mesma sensibilidade fina, subtil, quasi doentia, de requintada que era! Muito longe do poeta, em um palacio meio arruinado, affastada de todo o convivio social, entre as verduras, as sombras, as caricias inspiradoras da Natureza inculta, vivia ento uma creana de alma ardente, de sonhadora phantasia, de indomito imaginar, vizionaria juvenil, de que hojetaes so as modificaes que o tempo faz!existe apenas, alterado ainda assim pelos annos e pelas agonias, o corpo envelhecido cuja mo escreve estas linhas. Muitos teem contado essa historia a que a Morte veiu dar o seu tragico remate. Para que alludir a ella aqui? E que importam ao mundo as alegrias e as lagrimas que elle no sentiu nem chorou? [6] A verdade que hei de lembrar-me sempre, to viva se me conserva no espirito essa impresso dominadora, do que eu senti ao folhear pela primeira vez as Miniaturas, livro de um poeta para mim inteiramente desconhecido havia algumas horas apenas. Pareceu-me que era um poeta como aquelle, que eu positivamente tinha esperado havia muito, e que elle chegra; que a minha aspirao indefenida e vaga se tinha realisado. Mais contentamento do que surpreza. A doura dos que alcanam a praia que tinham desejado em longos dias de navegao monotona. Porque tardaste tanto, poeta? Eu te esperava Na minha solido! faz elle dizer mais tarde creana, que eu j fui, exprimindo assim, na sua simplicidade to artistica, o sentimento de confiante alegria que a minha alma experimentra ao conhecel-o. [7] Pois bem; esse agudo prazer da intelligencia, completamente, absolutamente satisfeita no goso d'uma determinada obra d'arte, sinto-o eu hoje como no primeiro dia, ao ler as Miniaturas. O talento de Gonalves Crespo soffreu com a idade, com as mudanas que se deram no seu destino, com a aco to complexa e to profunda que a Vida exerce em todos ns, transformaes importantes e progressivas; no emtanto para mim, e para muitos dos amigos dilectos do poeta, a mais encantadora, a mais perfumada efflorescencia do seu espirito raro, ser sempre aquelle livro juvenil. Muito mais pessoal que os Nocturnos, o volume das Miniaturas lana uma luz mysteriosa e dulcissima sobre a figura singular, um pouco extranha, que foi Gonalves Crespo. Muito ao contrario do que geralmente succede, este artista, to nervoso e vibratil, teve a primavera da vida nublada por todas [8] as sombras, e o estio, de que a morte desfolhou as ultimas rosas, illuminado por todas as suaves e tranquillas alegrias, que a vida pde conceder quelles que mais ama e a quem mais cedo tenciona abandonar. por isso que os Nocturnos de uma belleza de frma incomparavel, tocados s vezes por um largo spro de epopeia, no teem seno a espaos, a musica dolente, to enternecida e languida, to acariciadora das almas tristes, que se prolonga e vibra em longos echos melancolicos nas paginas das Miniaturas. Veja-se por exemplo Alguem, uma das peas que mais sympathias conquistaram ao nome do poeta: Para alguem sou o lyrio entre os abrolhos, E tenho as formas ideaes do Christo; Para alguem sou a vida e a luz dos olhos, E se na terra existe porque existo! Esse alguem que prefere ao namorado Cantar das aves minha rude voz, No s tu anjo meu, idolatrado! Nem, meus amigos, nenhum de vs! [9] Quando alta noite me reclino e deito Melancolico triste e fatigado, Esse alguem abre as azas no meu leito, E o meu somno deslisa perfumado. Chovam benos de Deus, sobre a que chora Por mim, alm dos mares! Esse alguem de meus dias a esplendente aurora, s tu, dce velhinha, minha me!... N'estas quatro estrophes est retratada uma alma, esto contadas as tristezas d'um destino, que merc de Deus se desannuviou mais tarde, mas no qual ento se condensavam todas as melancolias intimas, todas as duvidas sombrias, todas as amargas e silenciosas agonias da isolao. Nem a mulher que elle ama, nos passageiros caprichos da mocidade, nem os amigos que o cercam, lhe matam a sde de affctos que o devora e tortura; a me, a dce velhinha, essa est longe, essa chora alm dos mares, essa nem o v, nem o acaricia, nem dissolve ao fogo dos seus beijos os glos da duvida, que to cdo crestaram [10] todas as flres da mocidade na alma de Gonalves Crespo. Nunca houve ninguem mais modesto, mais inconsciente do proprio valor, mais desconfiado de si mesmo, mais dolorosamente torturado pela ideia das suas imperfeies reaes ou imaginarias. Os requintados suplicios de que esta desconfiana foi origem, manifestam-se bem mais nas Miniaturas do que no ultimo volume do poeta; por isso n'ellas a nota pessoal mais vibrante, a commoo, por ser mais sincera, mais directa e mais contagiosa. Como documento psychologico para auxiliar a critica do poeta e do artista, as Miniaturas so de um valor incomparavel. [11] II A poesia de Gonalves Crespo tinha origens complexas que mister analysar, para comprehender completamente a belleza e a sinceridade palpitante da sua obra. Nascido no Brazil, n'esse clima ardente e languido, no seio d'essa natureza exhuberante, que muito mais forte do que o homem, se lhe impe e o subjuga fatal e irresistivelmente, Gonalves Crespo foi transplantado,pobre e delicada planta friorenta e morbida,para uma regio em que nunca se poude acclimar bem. D'aqui, a doura nostalgica, a saudade soluante, que parece evolar-se como um aroma capitoso das suas poesias brazileiras, taes como a Ssta, Na Roa, a Cano, [12]Ao meio dia, e mais tarde nos Nocturnos, as Velhas Negras, etc., etc. Nem Gonalves Dias, nem Alvares de Azevedo, nem Casimiro de Abreu, se deixaram assim inspirar, to sincera e vivamente, pelas scenas familiares da vida brazileira, cuja graa pittoresca e especial d um cunho inteiramente novo aos versos de Gonalves Crespo. E que o poeta tinha saudadeuma saudade que lhe estava no sangue, que era parte do seu temperamento, saudade que era um instincto contra o qual elle luctava em vode todos os esplendidos aspectos com que os seus olhos, ao abrirem-se luz, se tinham inconscientemente embriagado. Um dia de agosto, tropicalmente calmoso, passado no campo, sombra das arvores, dava-lhe uma excitao penetrante, envolvia-o n'um banho de sensaes voluptuosas. Sem mesmo dar por isso, era a lembrana to viva e to dominadra da [13] patria longinqua, que produzia em todo o seu sr este effeito anormal. isto ainda que se traduz na melancolia sonhadora e vaga, d'esse pequeno poema, em que eu j fallei, intitulado as Velhas Negras. Conheceram tanto dono!... Embalaram tanto somno De tanta sinh gentil!... Pdem as tristezas mudas d'uma raa escrava ser notadas com uma subtileza maior, com uma doura mais ideal!... A simplicidade que d estes effeitos que a grande arte. Ao longe, evocados magicamente pela voz do poeta, surgem os brutaes senhores, para quem as tristes filhas da raa negra foram o joguete d'um instante, a distraco d'uma hora de tedio ou de preguia, e ellas, inconscientes, vagamente assombradas, tendo o pasmo silencioso d'um destino extranho, a angustia sem expresso e sem formula d'uma esmagadora injustia, passaram [14] de mo em mo, cumprindo o seu cruel fadario, e embalando de vez em quando nos braos emmagrecidos ou vergastados pelo azorrague do feitor, uma creana loura, rosada e branca que lhes sorria, dando-lhes n'esse sorriso a indefinida revellao de alguma cousa de superior, de caricioso, de celeste!... S n'um corao de filho, e de filho saudoso, de filho amantissimo, pdem retratar-se, to vivamente illuminadas, pdem destacar-se com to magistral relevo, scenas entrevistas um dia, nas horas da imprevidente e distrahida infancia. E a Ssta? Qual a leitora que no ficou sabendo a Ssta de cor! Na rde, que um negro moroso balana, Qual bero de espumas, Formosa creoula repousa e dormita, Emquanto a mucamba nos ares agita Um leque de plumas. Na rde perpassam as tremulas sombras Dos altos bambs; [15] E dorme a creoula de manso embalada, Pendidos os braos da rde nevada Mimosos, e ns. .......................................................... .......................................................... O vento que passe tranquillo, de leve, Nas folhas do eng; As aves que abafem seu canto sentido; As rodas do engenho no faam ruido, Que dorme a Sinh. Como se v bem que este languido rythmo, a vaga suavidade d'estes versos, parecem feitos para acompanhar o movimento cadenciado e lento da rde, e embalar o sonho de alguma filha gentil d'esse paiz, em que o clima d ao corpo as preguias infinitas, e a natureza luxuosa e desbordante d ao espirito a mollesa, o canasso fatal d'uma permanente lucta, na qual o homem sempre vencido pela fora inconsciente das cousas!... Em Gonalves Crespo havia pois a indolencia atavica, que elle s por extraordinario e doloroso esforo era capaz de vencer temporariamente. Por isso, emquanto as [16] circumstancias excepcionalmente favoraveis lhe no amenizaram a existencia, elle viveu sempre em absoluto desaccordo com o seu meio. A lucta pela vida, essa lei brutal das sociedades modernas, esmagava-o a elle, filho preguioso dos tropicos, artista quasi feminino, pela graa delicada e fragil do engenho, pela caprichosa subtileza da inspirao. E digo muito de proposito inspirao, apesar da palavra andar proscripta dos modernos codigos artisticos. Gonalves Crespo trabalhava minuciosamente, como o mais esmerado operario, a factura dos seus versos, mas necessitava d'essa influencia qualquer, superior e extranha, que pde vir ao artista do seu mundo intimo, ou do mundo que o rodeia, que pde ser determinada pelo estado especial dos seus nervos, ou que pde provir de mil causas externas e independentes da sua vontade. [17] III Quando elle escreveu as Miniaturas, dando-nos nas confidencias talvez involuntarias da sua alma, a revellao d'um artista adoravel, duas grandes tristezas o opprimiam, tristezas que elle, seguindo talvez sem dar por isso, o fecundo conselho de Goethe, transformou em poesia, que ser lida emquanto se fallar e se escrever portuguez. Eram-lhe hostis o meio physico e a atmosphera moral em que vivia. Para ser grande na Arte, creio eu, que preciso antes de tudo, ser sincero. Nunca ninguem logrou traduzir bem as dres que no sentiu. Brutalidades inconscientes do Destino [18] tinham feito d'este moo,de uma organisao nervosa como a d'uma mulher, accessivel, como os organismos mais sensiveis influencia de todas as sympathias, gostando de agradar aos que viviam perto d'elle, impressionavel, desconfiado, sempre prompto a julgar-se com severidade injusta,um estudante pessimo, um filho familia, quasi rebelde. Queriam que elle, a livre phantasia graciosa e borboleteadora, caprichosa, e facil aos canassos rapidos e aos tedios anulladores, se cingisse ao estudo arido e disciplinador da mathematica; que elle, exigente, doido por tudo quanto era bello, elegante, fino e distincto, tivesse a economia calculista e minuciosa d'um mediocre ou d'um grosseiro. D'aqui, as luctas de familia, os descontentamentos do homem intelligente, que se v injustamente julgado porque lhe prevertem as faculdades em vez de as aproveitarem. [19] Triste, isolado, sem affectos, descontente de si que no sabia sujeitar-se ao destino, e descontente com o destino que to hostil lhe estava sendo, Gonalves Crespo surprehendeu-se um dia a vazar no molde perfeito dos seus versos, as melancolias intraduziveis at ali, do seu pobre corao triturado e desconhecido. Teixeira de Queiroz, o consciencioso analysta dos Noivos, o ironico observador de Salustio Nogueira, o pintor pittoresco e impressionista da Comedia do Campo, escreveu na terceira edio das Miniaturas um prologo admiravel, um prologo por assim dizer vivido, que desenha com singular vigor e com exactido minuciosa a physionomia litteraria e moral de Gonalves Crespo. Elle que foi um amigo da mocidade e um amigo da ultima hora, que recebeu as primeiras expanses do poeta e quasi que o ultimo suspiro do moribundo, comprehendeu bem e soube bem traduzir, a estranha [20] dualidade moral que fazia de Gonalves Crespo o mais alegre e o mais triste dos homens. Porque muitos dos amigos d'elle, ho de morrer na falsa persuaso de que o lado menos verdadeiro do auctor das Miniaturas era a tristeza funda, a magoa docemente resignada, que nas suas poesias transluzem. Tinham-n'o por um alegre, um doidivanas de phantasia picaresca e de imprevistas aventuras; formavam-lhe em volta do nome, sympathico a toda a mocidade do seu tempo de Coimbra, como depois se tornou sympathico a todas as classes sociaes de Lisba, uma lenda de bohemia extravagante, de ruidosa e turbulenta alegria. Poucos o conheceram; poucos viram atravez da ironia bondosa e sympathica do seu sorriso, da bonhomia um tanto sceptica da sua palavra, vivamente e pittorescamente original, o verdadeiro homem que elle era. A mocidade corrra-lhe to desflorida e [21] to triste, que nem os dez annos de tranquilla felicidade, de paz serena e dce, toda illuminada de affectos intimos, lograram cicatrisar feridas que se lhe tinham rasgado no corao. E que ha mais triste, mais desolador para as almas grandes, do que passarem n'este deserto de homens chamado o mundo, mal julgadas, mal comprehendidas, mal interpretadas, tendo a consciencia de que ninguem cura das suas dres, ou se preoccupa com os seus intimos e irremediaveis desconsolos?... As cartas do auctor das Miniaturas, as suas cartas inimitaveis e incomparaveis, porque no conheci nunca quem escrevesse cartas mais perfeitasperfeitas de graa, de simplicidade, de desleixo artisticorevelam-n'o, preza de melancolias incuraveis e extranhas. Tinha preoccupaes e infantilidades de artista. Nunca chegou a perceber a seduco irresistivel que exercia nos que o approximavam; nunca comprehendeu que tinha, [22] como poucos, o dom da sympathia subita que se impe, que domina e que vence. Se lh'o diziam sorria-se, com o seu sorriso peculiar de que todos os amigos se lembram com uma saudade enorme, feito de malicia e de duvida, de bondade e de ironia, sorriso que era o encanto caracteristico e mysterioso d'aquelle rosto revolto, expressivo e extranho, que tantos affectos inspirou na terra, que ficou gravado em tantos coraes que no esquecem. Esta duvida de si mesmo fazia-o soffrer. Nunca se consolou de pensar de si proprio o que ninguem mais pensava. Encantadora fraqueza que o torna ainda mais nosso, que faz com que ns as mulheres todas o ammos, porque se no envergonhou de partilhar as nossas pequenas vaidades, as nossas imperfeiesinhas organicas para as quaes o homem tem tamanho e to altivo desdem! [23] IV Tristezas quasi inconscientes do exilio, nostalgias de ave friorenta, vises vagas, indistinctas, radiosas da patria ausente; desgostos de ordem muito particular,e a pairar sobre tudo isto, uma impresso dolorosa, indefenivel, que nem aos mais queridos elle confessava, mas que ungia de tristeza ineffavel os seus versos, que punha aqui e ali uma nota abafada e dilacerante na harmonia magistral da sua obra,eis a triplice inspirao, que deu uma vida intensa ao seu primeiro livro, ao livro da sua mocidade, que to querido lhe tornou logo o nome aos delicados de ambos os sexos. As Miniaturas teem j dezesete annos, o que muito para um livro de versos d'este [24] seculo, que fez da rapidez o seu programma e o seu mote, que no estaciona em cousa alguma e muito menos no modo de exprimir o que sente. Pois apezar de muitos poetas contemporaneos de Gonalves Crespo terem passado litterariamente, a gerao que principia agora, l as Miniaturas com o mesmo enlvo com que as leu a gerao que vae envelhecendo j. que a verdadeira poesia, a que no se filia servilmente em uma qualquer escola transitoria e ephemera, mas a que exprime do modo mais bello e perfeito que dado sua epocha conhecer, os sentimentos que formam o fundo inalteravel da alma humana, no perde nunca o imperio que um dia exerceu, atravessa os tempos immaculada e eterna; hoje o que ser sempre, a fascinadora que nos enfeitia, a amiga cariciosa que nos embala, a confidente que nos ouve, e que chora comnosco... Muitos teem comparado Gonalves Crespo [25] a Theophile Gauthier, eu por mim declaro que acho injusta a comparao. Theophile Gauthier um perfeito joalheiro, um impeccavel burilador; cada verso d'elle uma pedra preciosa, facetada, brilhante, admiravelmente engastada em ouro dos mais finos quilates. Para dar uma forma peregrina aos metaes preciosos, para esmaltar deliciosamente as joias mais lindamente modeladas, ninguem excede o auctor dos Emaux et Cames. Elle proprio o sabia e nunca desejou mais nada. Em Gonalves Crespo porm, havia mais do que isto. Havia uma alma transbordante de vida, capaz de comprehender e de traduzir os mais delicados cambiantes, as mais rapidas modalidades das outras almas. Que intuio que elle tinha de todas as dres, mesmo das mais extranhas ao espirito e ao corao d'um homem!... Lembram-se d'aquella perola de tristeza chamada Arrependida? Ella deixra tudo para correr atraz da [26] sua chimera e um dia desperta perdida, irremissivelmente perdida no abysmo de infamia a que uma mo de homem a arrastou: Ella scisma ao luar! Todo o passado A seus olhos avulta, illuminado Pelos dubios reflexos da tristeza... Por uma noite assim, limpida e clara, Sua modesta alcva ella deixra Por esse que ali dorme, e que a... despreza! Que sobriedade de mestre! que melancolia femenina! que profunda comprehenso d'uma dr, que toda a emphase, toda a phrase diminuiriam forosamente! Tentar conhecer o cu do amor completo, do amor heroico, do amor feito de sacrificios superiores e de abnegaes infinitas e cahir no lodo... S um poeta sincero como Gonalves Crespo saberia notar em dois traos esta agonia silenciosa e sem termo... O que distingue particularmente o auctor [27] dos Nocturnos dos outros poetas da sua indole, a ligeireza do trao, o vago que parece envolver n'uma luz cerulea e dubia, n'um vapor transparentee comparavel ao que tarde envolve e esbate suavemente as montanhas,as suas concepes mais perfeitas. No possivel que ao ll-o a imaginao se detenha apenas na pagina do livro e o no siga s regies de que elle tinha como ninguem a iniciao e o segredo. Previlegiados entre todos, os poetas que fazem sonhar; os que teem na mo a chave de oiro, do paiz azul habitado pela Chymera! [28] V Os Nocturnos pertencem a uma phase inteiramente diversa, mais pacificada, mais tranquilla, mais perfeita, da vida do homem e da vida do escriptor. Sem ter perdido nenhuma das suas qualidades de graa delicada e mimosa, nenhuma das subtilezas finissimas do sentimento e da expresso, nenhuma d'aquellas notas dolentes da alma creoula, que to singular e to fascinador o tornam para ns, Gonalves Crespo attinge por vezes a amplido magestosa e grave, tem o largo folego heroico, que nas Minaturas ainda se no pressente. Na evoluo progressiva do seu genio poetico, elle subiu mais um gru. [29] Nenhum segredo da forma lhe defezo. Conquistou, venceu, domou inteiramente a caprichosa, que j no ousa, como a Galatheia do poeta latino, sumir-se entre os salgueiros acenando-lhe de longe. A Morte de D. Quixote, a Resposta do Inquisidor, as Primeiras lagrimas d'El-Rei, a Ceia de Tiberio, prenunciam um poeta feito para os largos commettimentos, um poeta que marcaria o seu logar n'este seculo, com algumas d'essas obras que so a gloria d'uma raa, se a traioeira morte no viesse em plena virilidade de annos, em plena alegria de trabalho, arrancar-lhe das mos a penna prodigiosa. As traduces de Henrique Heine so no volume dos Nocturnos das joias mais deliciosamente trabalhadas. A inspirao meridional entrelaa-se de tal modo com a melancolia fugitiva e doce, com a ironica tristeza da musa germanica, que no dizer de alguem, o Intermezzo apparece ali como a obra d'um Heine, mais [30] completo, d'um Heine a quem no faltasse uma s nota na sua vasta alma de homem! Poucos espiritos tambem, seriam talhados mais de molde para entenderem Heine e dar-lhe por assim dizer uma feio nossa. que a ironia que ressalta naturalmente das cousas, a ironia que no nem uma blasphemia nem um soluo, mas sim o reconhecimento pacifico, tranquillo e triste das desconsoladoras verdades humanas, existe em Gonalves Crespo na sua forma mais exquisitamente delicada, mais requintadamente artistica. Como no havia elle pois de entender aquillo que a propria essencia do genio do poeta allemo! [31] VI J no leito, onde agonisou com divina resignao dois longos mezes, e onde parece que o seu espirito de poeta assumiu uma forma ainda mais idealmente melancolica, Gonalves Crespo escreveu com a mo tremula de doente um soneto consagrado aos annos d'uma gentil senhora, nossa querida amiga, por quem elle tinha o mais respeitoso dos affectos, em cuja casa hospitaleira elle encontrou sempre um acolhimento fraternal. Essa senhora a Condessa de Sabugosa, mulher do amigo, talvez mais ternamente amado por Gonalves Crespo. Seria lastima conservar para sempre inedito este soneto que tem para mim um triplo [32] encanto. O perfume camoeano que o impregna deliciosamente, a tristeza dulcissima, que elle respira, e a melancolica circumstancia de ser o ultimo que cahio, como uma perola solta, da lyra quasi partida do poeta moribundo. Eis o soneto: Na quadra azul da mocidade, a gente Parte rindo e cantando, estrada fra, Gorgeia a cotovia em cada aurora, Suspira noite o rouxinol dolente. Ai! Ditoso o que parte alegremente, O que no vio aproximar-se a hora Em que fora volver atraz... embora Nos arfe o seio de illuses fremente. Para ti ainda existe o sonho alado, A f robusta, e a candida alegria Que nos chovem do cu claro e estrellado. Nunca sejas forada, flr, um dia A erguer, chorando, o brao fatigado Em busca da ventura fugidia... ........................................................... ........................................................... [33] A morte no consentiu que elle subisse aonde podia subir, que elle se affirmasse como se poderia ter affirmado. No emtanto, todos os que teem este sexto sentido divino, pelo qual, mesmo apezar dos desenganos que a vida encerra, vale a pena em todo o caso ter vivido, ho-de ler com intimo prazer os dois volumes do encantador poeta de Alguem. verdade que elle no respondeu a todas as interrogaes que o nosso espirito se achou no direito de fazer-lhe, mas no respondeu porque o tempo lhe no deixou cumprir as mil promessas que a sua mocidade nos fizera. E hoje que elle partiu para o paiz mysterioso d'onde ninguem voltou, e para onde, na tristeza ou na alegria, convergem os nossos olhares anciosamente prescrutadores, voam as nossas saudades n'um impeto de lagrimas, eu releio aquella soberba e indecifravel Sara, e pergunto a mim mesma se debaixo da forma esculpturalmente pag [34] dos versos, se no abriga um sentido occulto, um mysterioso symbolo... Que ardente espiritualismo, tenaz e apaixonado, na carnalidade apparente d'esse poema! Quanta dr n'aquella aspirao, sempre trahida, de encontrar uma alma, no bello corpo insensivel que elle, como Pygmalio, quereria animar d'um divino sopro! Na sua violenta sde de perfeio, dolorosa e alanceadra como poucas, nunca o poeta das Miniaturas e dos Nocturnos teve o contentamento da sua obra! Nunca achou que a Musa, que elle beijava, tivesse a vida, o fogo sagrado, que n'esse beijo fecundador a sua alma anceava communicar-lhe! Era um insaciavel! Nunca a Arte nem a vida o contentaram, a elle que teve todas as caricias luminosas da Arte, e todos os affectos sos que a Vida pde dar e que a Vida s d a rarissimos dos seus escolhidos... Mas no estar n'esse eterno descontentamento, [35] n'essa aspirao incansavel ao desconhecido, o signal mais caracteristico da sua grandeza?... Eu creio que sim. RAMALHO E EA I O MYSTERIO DA ESTRADA DE CINTRA Ramalho Ortigo e Ea de Queiroz acabam de apresentar ao publico portuguez e brazileiro, ou, antes, de consentir que lhe seja apresentado por um editor intelligente, o livro da mocidade de ambos, que ha quatorze annos teve em Lisboa um successo de curiosidade e depois de enthusiasmo, quando foi publicado dia a dia nos folhetins do Diario de Noticias. [38] Foi n'essa occasio, e no no livro que depois saiu a lume, que eu li o romance, e lembrava-me, como toda a gente, da impresso immensamente grata, que essa obra improvisada, escripta la diable, tinha produzido em mim. Fui, portanto, como natural, uma das primeiras compradoras do volume, e, decerto, no fui, de todas as que o teem lido n'estes dias, a menos interessada e curiosa. Queria saber, antes de tudo, se estava muito mudado o meu gosto litterario, se o romance experimental, o romance naturalista, o documento humano, e o estudo frio, analytico, impessoal, das miserias d'este mundo, me tinham de todo roubado a sensibilidade e a paixo, que a mulher tem no espirito, ainda que as no tenha em mais nada. Felizmente no succedeu assim! Eu que devoro os romances dos Goncourts, eu que admiro a fora rembrandnesca [39] de Zola, eu que me sinto fascinada deante da obra de Flaubert, e que espero muito de Guy Maupassant, o dilecto discipulo, o continuador convicto do grande romancista morto, que escreveu a Bovaryeu posso ainda gosar intensamente um improviso qualquer da mocidade, em que a sensibilidade e a imaginao predominem. Como eu gostei ainda hoje do Mysterio da Estrada de Cintra! Infelizmente, conheo-lhe os defeitos innumeros, cousa que no conhecia ha quatorze annos; percebo bem onde os dois auctores foram beber a inspirao de muitas d'aquellas paginas mais brilhantes; estou vendo claramente as inverosimilhan ......Buy Now (To Read More)

Product details

Ebook Number: 26338
Author: Carvalho, Maria Amalia Vaz de
Release Date: Aug 17, 2008
Format: eBook
Language: Portuguese

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