Paisagens da China e do Japão

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Paisagens da China e do Japão Title: Paisagens da China e do Japo Author: Wenceslau de Moraes...
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Paisagens da China e do Japão

Title: Paisagens da China e do Japo Author: Wenceslau de Moraes Release Date: May 20, 2008 [EBook #25537] Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal)). Nota de editor: Devido quantidade de erros tipogrficos existentes neste texto, foram tomadas vrias decises quanto verso final. Em caso de dvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrar a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Maio 2008) PAISAGENS DA CHINA E DO JAPO WENCESLAU DE MORAES Paisagens da China e do Japo LISBOA livraria editora VIUVA TAVARES CARDOSO 5, Largo de Cames, 6 1906 LISBOA Typ. de Francisco Luiz Gonalves 80, Rua do Alecrim, 82 1906 A Camillo Pessanha e Joo Vasco Nos baldes da vida bohemia, na confusa successo dos dias e das scenas, acontece que os factos, as coisas, os individuos, invocados pela pobre memoria exhausta, vo perdendo pouco a pouco as suas qualidades intensivas, as suas cres, os seus contornos, a sua feio propria, emancipando-se do real, como uma pagina de aguarella desmerece, solta e perdida no espao e voando com as brisas; diluindo-se por fim n'uma emoo generica, vaga, indifinivel,a saudade.A essas duas grandes saudades, Camillo Pessanha e Joo Vasco, dedico hoje este livro. Kobe, 10 de Abril de 1901. Wenceslau de Moraes. AS BORBOLETAS a J. Moreira de S. A lenda das borboletas. So to lindas, as borboletas! Quem as v, que no lhes queira? ahi vagabundando pelo azul dos campos, razando as corollas frescas, amando-se, beijando-se, libertas da larva abjecta, como almas de amantes despidas da miseria terreal, a viajarem no infinito... So to lindas, as borboletas!... Mas na China so talvez mais lindas do que todas. um deslumbramento surprehendel-as na quietao dos bosques, voejando aos pares, que se tocam, que se abraam, e enfiando pelas sombras mysteriosas dos bambuaes, com as suas longas azas [2]palpitantes, lancioladas, em matizes maravilhosos, de negros avelludados, de azues meigos, de amarellos quentes, como se as loucas vestissem cabaias de setim, de sedas de alto preo... Choc-In-Toi, a deliciosa Choc-In-Toi, habitava, ha longos seculos, uma pacifica aldeia do Yang-tsze-kiang, no longe do logar que hoje se diz Shanghae. Como fosse muito dada a estudos litterarios e as escolas do seu sexo no lhe satisfizessem a ambio, conseguiu que seus paes lhe permittissem o disfarar-se em homem, e assim abalou, a ir frequentar a mais famosa universidade do imperio. Volveu ao lar apz tres annos; volveu to pura como fra; da sua innocencia ha provas irrecusaveis. Para no divagar muito n'estas paginas, basta dizer a quem me queira ouvir, que um leno de seda branca, que ella enterrara na lama em presena d'uma sua cunhada predisposta a vaticinar-lhe rudes lances, foi depois tirado sem uma s mancha e sem um s farpo, branco, puro, como a alma da donzella; e basta saber que as flres da sua preferencia, que ella deixra no jardim, rogando aos deus Choc-In-Toi, a deliciosa Choc-In-Toi, habitava, ha longos seculos, uma pacifica aldeia do Yang-tsze-kiang, no longe do logar que hoje se diz Shanghae. Como fosse muito dada a estudos litterarios e as escolas do seu sexo no lhe satisfizessem a ambio, conseguiu que seus paes lhe permittissem o disfarar-se em homem, e assim abalou, a ir frequentar a mais famosa universidade do imperio. Volveu ao lar apz tres annos; volveu to pura como fra; da sua innocencia ha provas irrecusaveis. Para no divagar muito n'estas paginas, basta dizer a quem me queira ouvir, que um leno de seda branca, que ella enterrara na lama em presena d'uma sua cunhada predisposta a vaticinar-lhe rudes lances, foi depois tirado sem uma s mancha e sem um s farpo, branco, puro, como a alma da donzella; e basta saber que as flres da sua preferencia, que ella deixra no jardim, rogando aos deuses que as conservassem frescas como ella, assim se conservaram durante a longa ausencia, embora, como consta, a [3] cunhada as fosse regando com agua quente tirada da chaleira. Durante os tres annos de seu estudo, um companheiro, por nome Leun-San-Pac, intimamente se lhe afeioou. Era o seu camarada inseparavel, o seu irmo; dormindo juntos, conversando juntos, estudando juntos, divagando, sonhando; e o lorpa do mocinho nunca se apercebeu que tinha a seu lado uma mulher. Quando soou a hora das despedidas, cortava o corao vr o rapaz, lamentando o futuro isolamento, a perda d'um amigo como aquelle. A moa consolava-o. A moa poisava-lhe nos hombros as suas mos gentis, e exhortava-o a que se enchesse de coragem, a que se entregasse ao amor do estudo, t alcanar um alto grau de sapiencia.E depois, dizia-lhe ella entre soluos, e depois, se com saudade te recordares [4] ainda de mim, abala, vem vr me minha aldeia.E dava-lhe indicaes precisas do logar. Despediram-se, entre choros. A donzella esperou, esperou, esperou,quem poder descrever esse tormento? guardando da familia o seu segredo; e o moo no apparecia. Segundo os usos do paiz, os paes destinaram-lhe um marido; e ella, a desolada, escrava da obediencia filial, obediencia cega, indiscutivel, que a base da vida inteira moral do povo china, inclinou-se, acceitou, sem que uma s queixa proferisse. Tres dias decorridos depois do contracto nupcial, eis que chega aldeia o pobre Leun-San-Pac; pobre, porque a desventura se lhe acerca; mas rico de erudio, de uma alma culta, e occupando um logar proeminente. Encontra o seu amigo, encontra o seu irmo; mas agora sem disfarces, na graa plena dos seus enlevos femininos, na gentil elegancia das vestes que lhe so proprias, e com grinaldas de flores na trana negra. De comeo, este enigma, pouco a pouco explicado, confunde-o, desnortea-o; mas tudo se aclara; da amisade ao amor o salto rapido. Oh! elle ama-a agora, elle ama-a de todas as foras do seu ser; e no olhar de fogo transluzem mil mysterios de adoraes e de desejos!... tarde. A palavra dada ao feliz noivo no se quebra. Os velhos [5] paes prezam mais do que tudo, a propria honra. Elle parte; elle parte para um logar visinho, louco, com a alma embebida no fel dos desesperos. ainda ella, a doce pomba obediente, que tenta consolal-o. Ella escreve-lhe; ella diz-lhe que a vida no eterna; que a piedade filial arrasta-a a um consorcio que s lhe vaticina dores e prantos; mas que as almas so livres, emigram d'uns corpos para outros; encarnam-se n'outros seres; que elle socegue, aguarde outra existencia, para a qual ella lhe jura ser a sua companheira, toda fidelidade e toda amor. Leun-San-Pac l, faz um bolo d'essa carta, onde to demoradamente poisara a mo da sua bella, e engole-o, e suffoca-se com elle, e exhala assim na solido o ultimo suspiro. Um pouco alm, sobre a montanha, se lhe elevou a sepultura. Soam bategas festivas, estalejam nos ares fogos de gala, de alegria; e pela longa estrada em ziguezague, bordada aqui e alli de bambus e bananeiras, doirada pelo sol do meio dia, serpea em rutilantes theorias o monumental cortejo do noivado, caminho do lar feliz. O estylo de ha mil annos o mesmo estylo de [6] hoje. So os grandes bales, os estandartes, conduzidos por moos vestidos de vermelho. So os enxovaes primorosos, as cabaias, a colleco dos sapatinhos, tudo disposto nas liteiras luzentes dos esmaltes. So as colossaes peas de doaria, castellos de assucar, drages de assucar, coisas espantosas. So os porcos assados, loiros, deliciosos, espalmados sobre os taboleiros, com laos de fita nos focinhos. So as orchestras estridentes, de flautas, de rebecas. So as creanas ataviadas em setins, em allegorias de scenas de outros tempos, cavalgando alimarias pachorrentas. finalmente a liteira da noiva, toda ella oiros, toda ella esmaltes, fechada como um cofre, furtando vista dos curiosos o precioso fardo, Choc-In-Toi. A noiva solicita do cortejo um curto desvio na sua marcha. A noiva, antes de entrar no lar e de [7] ser esposa e escrava, quer abeirar-se, alm, d'aquella sepultura esquecida na montanha, e orar junto dos restos do que morreu por ella. Quem lhe recusaria tal licena? Eil-a que desce da liteira, nas suas cabaias deslumbrantes; e eil-a que se prostra, eil-a que beija a terra... A terra abre-se ento, carinhosa, me; a terra traga-a, chama-a a si, chama-a para junto dos ossos do seu querido. A comitiva pasma do milagre. As mos avanam a detel-a; mas s logram colher um pedao do vestido, que se rasga, e tudo... O pedao de seda, de mil matizes, transforma-se de subito n'uma borboleta de mil cres, que va das mos rudes, e desapparece no azul, desapparece!... desde aquella epocha que ha borboletas n'este mundo, to lindas, to cheias de matizes!... Eu no lhes estou contando uma mentira, meus [8] amigos. Ainda hoje se v a sepultura, esboroada pelos seculos, d'aquelles amorosos. E as esposas desprezadas alem vo em romaria, e d'aquella terra bemdita se suprem s mos cheias, e d'ella provam, e disfarada com o arroz a ministram aos maridos. Consta que o estranho tempero, aquella terra, que em alguma coisa participa da essencia dos amantes que ali jazem para sempre, tem virtude comsigo, e sempre efficaz em trazer ao bom caminho os mariolas, os maridos. A ALFORRECA a Henrique Carvalhosa. Falla a lenda japoneza. Antigamentee quem sabe se ainda hoje!no seio do oceano era o reino faustuoso dos drages. Por longos annos, o senhor d'este reino, o drago real, viveu celibatario, n'uma existencia descuidosa; e sabem s os deuses, e no ns, quantas noites de dissipao, em companhia de tartarugas e lagostas ligeiras de costumes, que lhe cantavam trovas ao som do shamicen e lhe iam servindo sak em ricas taas, quantas noites elle passou em travessas intimidades amorosas!... Verdores, que passam breve. Um bello dia, resolveu [10] casar-se, o bom soberano. A noiva escolhida foi uma joven dragasita, dezeseis annos apenas, adoravel, digna pelos seus mil encantos de ser a consorte feliz de tal senhor. Explendidas foram as bodas por essa occasio, segundo consta: sem j fallar na crte intima, toda a bicharia aquatica, peixes, mariscos, molluscos, todos vieram processionalmente, em cardumes, em bellos kimonos de sedas encarnadas, offerecer seus respeitos e presentes; e foram, durante longos dias, estupendos regabofes, em danas, em musicas, em banquetes... Mas nem os drages escapam s duras provaes da existencia! Ainda bem um mez se no passra, quando a augusta soberana caiu doente; e taes cuidados inspirou desde logo o seu estado, que era uma lastima observar as trombas compungidas dos fidalgos, commentando [11] baixinho, em lamentaes do seu officio, o triste caso. Reuniram-se os doutores em conferencia; fallaram muito, discutiram muito, sem chegarem a accordo, como sempre succede; consultaram-se abalisados alfarrabios de therapeutica; as barbatanas incanaveis rabiscaram um milho de receitas milagrosas, e todas as tisanas se serviram. Baldado intento; a soberana extinguia-se; e afinal os focinhos dos sabios, n'um tregeito de piedade e desengano, tiveram de ser francos, de declarar que a scienciaj n'aquella epoca se enchia a bocca com a scienciaque a sciencia nada mais podia fazer, e que um angustioso desfecho era de esperar-se. Do seu leito de enferma, de entre os futon, as fofas colchas de setim, agita as tremulas patinhas a rainha; chama junto de si o esposo, e diz-lhe estas palavras ao ouvido:Uma s coisa me salvar: arranquem o figado a um macaco vivo, e consintam que o devore; recuperarei a saude....O rei no poude reprimir um gesto de surpresa, quasi de enfado, e todo se lhe erriou o bigode faanhudo:Um figado de macaco! ests louca, minha querida!...Ella promptamente retrucou:Louca, porqu? Vossa magestade esquece por ventura, [12] que ns, o grande povo dos drages, no mar vivemos sempre; emquanto que os macacos, muito longe d'aqui, vivem na terra, nos bosques, entre as arvores, nutrindo-se de fructos... No figado do mono alguma coisa vir que participe d'esse mundo, to diverso, to outro; e essa particula estranha, senhor, me salvaria!...E a rainha, a quem as lagrimas acodem, prosegue n'um tom reprehensivo e lastimoso:Uma insignificancia, um nada, pedi, e esse nada vossa magestade me recusa. Julgava merecer-lhe mais affectos. Dispa-me d'estas pompas de soberana, no as quero; d a cora a outra esposa, mais digna, mais formosa; consinta que volva ao ninho carinhoso de meus paes...A voz suffoca-se em soluos, no pode mais proferir uma s queixa... O rei dos drages no queria passar, entre damas [13] por um drago cruel; por demais conhecia elle os caprichos pueris do sexo fragil, mas perdoava-os complacentemente, por systema; e sobretudo adorava a esposa, cujas lagrimas desejaria poupar a todo o transe. Satisfaa-se pois o capricho da rainha. Mandou chamar a sua escrava mais fiel e dedicada, a alforreca, e disse-lhe o seguinte:Vou dar-te uma espinhosa tarefa, minha velha, mas confio na tua dedicao nunca mentida; preciso que emprehendas uma longa viagem, que nades at junto da terra, e alli convenas um macaco a vir comtigo a estes meus reinos; falla-lhe, para o resolveres, da magica belleza d'estes sitios, to differentes dos seus, e da gentileza d'estes meus subditos felizes; mas o que eu realmente quero n'este caso, que se arranque o figado das entranhas de tal mono, e se sirva como medicamento tua joven ama, que, como de certo sabes, se acha em perigo de vida, a desditosa. [14] L vae, oceano fra, vento em ppa, a alforreca, emissaria obediente e ufanosa do encargo. Por aquelles tempos, a alforreca, como qualquer bicho das aguas, era um animal gracioso, de contornos esbeltos, com cabecinha, com olhinhos, com mosinhas, e com a competente cauda titillante; e ficava-lhe to bem o fato de marujo!... L vae, oceano fra, olhar sereno e cogitador, rompendo a vigorosas braadas a onda fria. No tarda muito a abeirar-se do paiz onde vivem os macacos; por felicidade, um alem est, um lindo mono, saltando de ramo em ramo, dependurando-se das arvores que enraizam nos penedos e se debruam sobre o mar.Bons dias, senhor macaco. Eu venho aqui expressamente para fallar-lhe d'um paiz longinquo, muito mais bello do que o seu; elle situado alem das ondas e conhecido pelo reino dos drages; alli, no ha estaes, eterna a amenidade do clima; alli, nas copas das arvores repolhudas, constantemente amanhecem avelludados fructos saborosos, colhel-os, no ha outra tarefa; para cumulo do conforto, essas creaturas malfazejas, homens chamados, no pisam taes paragens. Se lhe agrada vir commigo, eu serei o seu guia; no tem mais que fazer do que saltar d'esse tronco para cima do meu lombo... O macaco achou gracioso isso de ir vr novos paizes. V l[15] mais esta extravagancia conta da bohemia simiesca.Ao largo, amiga!E l foram os dois; porm, a meia travessia, pensou tardiamente o mono na temeridade do seu feito, expondo-se assim ao arbitrio d'um extrangeiro, e abandonando a sua patria. Decidiu-se emfim a perguntar:Que pensa voc que vo fazer de mim na sua terra?A alforreca deveria agora ser discreta, encapotar as respostas em evasivas; mas oiam l o que ella deu em troco:Eu lhe digo: meu amo, rei dos drages, ordena ao senhor macaco que arranque o proprio figado, o qual vae ser servido nossa soberana, hoje enferma, e salval-a da morte.Ento o mono, guardando para si os commentarios que o caso suggeria, disse cortzmente, que era para elle uma alta honra e um esperado prazer, o assim tornar-se util a sua magestade; acrescentou, porem, que agora se lembrava de ter deixado o figado dependurado n'um tronco de arvore, aquelle mesmo castanheiro d'onde saltara para as costas da alforreca. Continuou discursando em linguagem fluente, de orador emerito, descendo [16] a explanaes minuciosas; e explicou como o figado era uma coisa bastante pesada, embaraosa, um quasi alforge de peregrino, um empecilho que elle costumava pr de parte, durante o dia, para se entregar mais vontade aos seus exercicios de acrobata; habitos de familia, j seu av fazia o mesmo; e concluiu, que o melhor que tinham a fazer n'este momento, era voltarem para trs, e na arvore encontrariam o figado em questo. No pz objeces a nadadora. Voltando terra, o macaco saltou ao castanheiro com uma ligeireza nunca vista, nem mesmo entre macacos, acompanhando o pulo d'uma alegre careta e d'um gesto que traduzia o jubilo do bestunto, coisa que passou estranha alforreca. Procurou entre as folhas o seu figado. No o encontrou. Explicou ento do alto, alforreca, que provavelmente algum companheiro o levra para longe, o que o obrigava a mais demoradas pesquisas pelo bosque; no entretanto que fsse ella contar o caso ao seu senhor, que devia estar ancioso por vl-a chegar antes da noite. Assim procedeu o bicho. El-rei, que a esperava, e que a escutou, enraivecido por tamanha ingenuidadepara no lhe chamar [17] coisa mais feia,mandou logo vir da maladia um bando dos seus mais soberbos samurais, e ordenou-lhes que malhassem no bicho pancada, at canarem. O castigo foi cumprido, e com esse vigor de braos de villes, que miram aos applausos do monarcha. esta a razo porque a alforreca, hoje em dia, no tem pernas, nem cabea, nem cauda, nem barbatanas: tanta pancada levou, que ficou reduzida a esta miseria, massa informe, um farrapo, um pedao de gelatina, boiando despresivelmente merc do turbilho das vagas. Com respeito soberana, reconsiderando no disparate do seu capricho, concluiu que o melhor que tinha a fazer era erguer-se da cama e pr-se ba; e assim fez, com grande pasmo dos doutores. A historia da alforreca est contada, na sua simplicidade commovente. veridica esta historia, como tudo que o povo relata de memoria; creia n'ella quem cr. Fica-se j sabendo no entretanto,e isto d'um proveitoso ensinamento,que os japonezes to prodigamente propensos ao perdo para tantos pecadilhos de alma e de costumes, castigam os patetas. Diga-se francamente: esta desgraa da alforreca, [18] no paiz do sol nascente, era inevitavel; e o caso presta-se a interessantes commentarios, que eu vou resumir em poucas linhas. Os japonezespovo de artistasso os grandes amorosos da creao, da forma, da vida; ninguem como elles conhece os segredos da ave, do insecto, do reptil, do peixe, dos molluscos, do verme, de todos os seres da terra; a animalidade graciosa d'esses seres, estudada com percepes especiaes, que nos escapam, constitue o themamil e mil vezes variado, dos seus primores de arte. Mas esse monstro, essa disformidade, essa alforreca que se apresenta como unica excepo da lei geral da gentileza da vida, e parece resumir em si o enfado inteiro d'um dia de mau humor do Omnipotente, devia ter deixado impresses tristes nos primeiros japonezes que a avistaram; e foi preciso arranjar logo uma explicao condigna do phenomeno, e a que ficou descripta n'estas linhas. ainda interessante recordar de passagem a [19] approximao, pela desdita, da alforreca japoneza com a medusa mythologica da Grecia, no merecendo esta melhor tratamento dos deuses olympicos. Curiosa coincidencia! O ANNO NOVO a Feliciano do Rozario. Temos festa hoje, aqui. Acaba o anno velho, comea o anno novo. Mas no vo imaginar que seja do anno novo de que rezam os nossos calendarios, a commemorao; tal commemorao, aqui, no fim do mundo, no seio d'esta colonia nostalgica, passa insipida, quasi sem alvoroos intimos de familia, limitada troca banaltroca sem cedilha e com cedilhade algumas duzias de bilhetes de visita, com as competentes boas-festas escriptas, da pragmatica. Trata-se do anno lunar que finda, do anno lunar que principia, o anno chinez emfim, a ampulheta que marca para o povo amarello as suas horas de existencia; [21] vamos entrar no anno XXII do reinado de sua magestade imperial celestial, Kuang-Su. Temos festa hoje, aqui. A alma chineza manifesta-se, evidencea-se, domina, hoje; offusca, pela grande maioria dos rabichos, o pallido reflexo da civilisao do Occidente que logrou chegar a este Macau, a este exiguo penedo asiatico, onde Portugal implantou a sua bandeira. Meia noite. Ao meu obscuro albergue, chega, de alem dos bazares, o ruido da bombardada amotinadora dos foguetes, e das mil e mil embarcaes fundeadas no porto o clamor ovante das bategas, vibradas pelas mos rudes das companhas. Que ir l por esses bazares, a estas horas, santo Deus!... Eu no me arredo do meu canto. Bem sei que a febre das massas suggestiona, contamina todos. Bem sei que no se dorme hoje; que no ha chapo de cco de amanuense ou kepi de militar, direi mesmo chapelinho de pellucia com laarotes de setim e seu competente passaro empalhado, de menina, que no v correr as viellas, perder-se na onda, confundir-se com os rabichos, gosar com elles. Mas est tanto frio, e as bagas de agua zurzem-me to desapiedadamente [22] os vidros das janellas... E, peor do que isto, o frio da alma, a apathia enervante do meu espirito, o sorriso amargo que me enruga os labios, provocado por esse mesmo jubilo do enxame, que aqui me retem e me impedem de tambem ir galhofar. No, decididamente no serei da festa. Imagino-a d'aqui. Imagino essas ruas lamacentas, coalhadas de povo sujo, com as cabaias negras ensopadas dos chuvascos; e imagino os lumes tremeluzentes das lanternas de papel, accendendo nas poas, pelo reflexo... grandes labaredas ephemeras, ziguezagueando. As lojas esto escancaradas ao publico; fructos, flres, doces, carnias, bonecos, coisas santas, estendem-se [23] pelos caminhos em prodigiosas theorias, em coloridos quasi estonteantes; e comprar, e comprar j, porque no tarda em romper o glorioso dia de descano, o unico na China em que o camponez, o artifice, o vendilho, todos, cruzam os braos, no trabalham; e nem a peso de ouro se encontraria um linguado, uma caixa de phosphoros, qualquer infimo objecto nos mercados. As espeluncas de jogo, em galas desusadas, offerecem-se, tentam a onda; e at pelas ruas o taboleiro de azar se estende ao passeante. Que pechincha, se se apanha para a festa um accrescimo de peculio no esperado! O china adora o jogoera preciso que elle adorasse alguma coisa!mas hoje todos jogam, todos so chinas, e isto um exemplo interessante da influencia suggestiva das grandes maiorias; a mo mais circumspecta de funccionario, a mo mais mimosa de dama (de nhnha, em dialecto vulgar d'esta colonia) avanam sem pejo, arriscam sorte varia umas pratinhas... Quando bate meia noite; quando, junto do altar dos penates, se curvaram em piedosas adoraes milhares de cabeas agradecidas, e se queimaram papeis mysticos, e se accenderam pivetes odorificos; quando em plena rua um brado de alleluia os echos acordou; dirige-se ento a onda humana para o lar, [24] j mercas feitas, j bolsas esvasiadas; e vae surgir um grande dia votado inteiro ao descano, votado glorificao dos deuses, cuja magnanima assistencia se exalta pelas graas concedidas e pelas graas que vo esperar-se!.... Mesquinha humanidade! como tu me entristeces, pobre humanidade, pobre familia minha, ainda mais nos teus regosijos e nas tuas esperanas, do que nos teus choros e nos teus desenganos!... Para este bando chinez com quem me encontro agora, que exploso de benos lhe estimula a sentimentalidade? que altos beneficios commemora? O bando abenoa a sua eterna existencia de miseria, a miseria passada, a presente e a que fatalmente vae seguir-se-lhe. Abenoa a labuta sem treguas, em busca do punhado de arroz de cada dia; ora exercida no lar immundo, sem sombra de conforto; ora exercida pelos campos, nas varzeas, nas collinas, no amanho da terra, sob a oppresso constante dos raios do sol que escalda, ou dos frios que paralysam; ora exercida nos barcos, que se cruzam na podrido dos estuarios, ou pairam sobre a onda adormecida durante as calmas torpidas, ou se desfazem no escarceo, quando os tufes rugem em furia. O bando abena a fatalidade da sua condio social, o problema espantoso, paradoxal, do seu feitio de ser, que em [25] todas as depravaes, em todas as iniquidades imaginaveis, parece ir buscar as leis unicas por que se rege. O bando abena ainda as calamidades tremendas, que n'estes ultimos tempos, como uma maldio divina, teem pairado sobre a immensa patria:nas provincias do sul, nos seus centros mais populosos, a peste, a peste negra, roubando em cada lar um ou dois filhos, ou o pae, ou a me, ou mesmo todos juntos, e vestindo de lucto, de tristes roupas alvas, os parentes, e ameaando estabelecer-se definitivamente, enraizar como uma arvore de peonha, d'onde emanar a cada instante o veneno subtil, destruidor das turbas; e, para cumulo de infortunio e de descredito, um visinho, um povo irmo, o povo japonez, invade, vence e desbarata a China, morde e come pedaos do seu torro sagrado, envergonha-a, offerece-a ao escarneo do mundo na miserrima condio da sua plebe e na opulenta infamia dos seus nobres, desprestigiada emfim, indefeza cubia das gentes, aos homens loiros da Europa, que no tardaro em vir espezinhal-a.Embora! esqueam-se hoje as miserias, vista-se o povo em gala, chovam benos sobre o anno que comea. E amanh, decorridas algumas horas de folgana, recomecem, prosigam,pouco importa!os turvos dias de amargura, a fatalidade da existencia no antro, [26] a dura labuta no campo e no barco, a faina eterna, a orgia torpe dos maridos, a escravido das esposas, a venda das filhas a quem mais der, os horrores da prostituio, as vergastadas nas creadinhas, as extores dos mandarins, as torturas nos carceres, a morte lenta nos patibulos, a obra de destruio das epidemias e do opio, as humilhaes perante o vencedor, as exigencias do Occidente, as arrogancias dos homens loiros... Para o anno novo, tudo se prepara com antecedencia, em prodigiosa azafama; para todos uma occupao incessante e desusada, durante as ultimas semanas do anno que vae findar. Lavam-se os covis, lavam-se as podres mobilias. o p d'um anno que se sacode, [27] a lama d'um anno que se deita fra, o piolho e a pulga d'um anno que se afogam na onda das barrelas; porque, durante os labores de cada dia, nunca a ida de limpeza preoccupou os espiritos durante um s instante. Tudo providencial neste mundo, ao que parece. Na chafurda typica d'estas povoaes chinezas, to frequentemente visitadas por todas as pragascholera, peste, lepra,embebidas no lodo dos canaes, no ambiente das emanaes dos estrumes pachorrentamente acogulados e dos despejos que apodrecem pelas ruas, custa a crr como a gentalha pollula, e como os consorcios fructificam em ninhadas de garotos; e parece gente que um sopro qualquer destruidor, de calamidade immensa, ir em breve prostrar esses enxames, sem que deixe de p um s vivente nos albergues. Puro engano: as povoaes eternizam-se. No parecer de alguns investigadores, que taes exotismos interessam, se os miasmas putridos convidam as epidemias a entrar e a vindimar providencialmente as muitas vidas que superabundam, estes mesmos miasmas, sobrecarregados de vapores de ammoniaco, de exhalaes corrosivas de fermentos, se encarregam de ferir tambem mortalmente os virus morbidos, poupando o resto do povo. Chegamos ao facecioso paradoxo de [28] ser na China a immundicie o purificador por excellencia, um como que elixir de longa vida, indispensavel a todas as familias, feito da mais estupenda alchimia de dejectos. Conceda-se pois, por excepo, a este bom povo celestial, o capricho de lavar uma vez cada anno o antro onde se abriga. Depois, ver a faina de collar pelas paredes, pelas portas, pelas janellas, papeis de bella cr escarlate, com negras inscripes cabalisticas, que so votos de ventura e de riqueza, que so preces aos deuses. E chega a occasio de se adornarem os altares, de se irem comprar junquilhos em flor, que se dispem em vasos gentis com agua e seixos alvos, e assim vo enfeitar os aposentos, levando o vio e o perfume, por um dia, aos negrumes das alcovas. No meio do complicado rito das usanas, algumas praticas enternecedoras, de ingenuidade primitiva, interessam o curioso. Reparem por exemplo nas enormes celhas expostas pelos mercados, onde enxames de pequeninos peixes negros, carpas [29] barbudas, estrebucham na gotta de agua do improvisado captiveiro; o povo compra-as, e vae lanal-as em seguida nas ribeiras, gosando na aco do resgate, por certo grata aos deuses, e que redundar em beneficios... A PRIMAVERA a Camillo Pessanha Ha alguns dias, na cidade de Kobe,poderia precisar o dia, e quasi a hora, se tamanho rigorismo me exigissem,irrompeu a Primavera. Irrompeu: no ha sombra de exagero no vocabulo. Irrompeu, surgiu d'um pulo, fez exploso. N'este paiz do Sol Nascente, onde o sol, e com elle todas as grandes foras naturaes, so ainda uns selvagensse [31] assim posso expressar-meuns selvagens sem freio, sem noo das conveniencias, incapazes de se apresentarem de visita, de luvas e casaca, n'uma crte qualquer da nossa Europa; n'este paiz do Sol Nascente, ia eu dizendo, a creao inteira apostou, parece, em offerecer em cada dia uma surpresa, toda ella exuberancias inauditas, espalhafatos unicos, repentismos nervosos, caprichos doidos, como se reunisse em si a quinta essencia da alma das creanas e a quinta essencia da alma das mulheres, a gargalhada, a troa, emfim, motejadora de tudo quanto ordem, harmonia, contemporisadora lei das transies. Hontem, foi um inverno duro, gelido, vestido apenas d'uma ampla tunica de neve. Hoje, d'um salto, o sol rompeu em quenturas amorosas, comearam de florir as arvores, e evolaram-se os insectos. Amanh, ser o estio torrido, em brazas, como nem na China, nem na Africa se sente. E assim corre o tempo, vam as horas; cada instante um meteoro; e aqui um tufo arranca os troncos, e alli a chuva torrencial inunda as varzeas, e alem um rio transborda do seu leito, e uma onda do largo afoga as aldeias, e uma convulso subterranea abala o solo... O europeu, o pobre europeu das paizagens serenas, soffre os choques d'esta natureza, por demais subversiva [32] para o seu espirito triste, meditativo e attribulado. Offerece-se-lhe um de dois caminhos a seguir: ou communga na vida japoneza, inicia-se nos seus segredos intimos, ama-a nas suas modalidades, e assim a existencia se lhe gasta, se consome rapida, esgazeada em admiraes, doidejando em vertigens; ou se retrae, se isola, odeia a natureza que no comprehende, odeia o exilio, vive de saudades da patria, entre as quatro paredes do seu lar, ou dos clubs cosmopolitas da colonia forasteira. No preciso mais para justificar o tique de loucura, facilmente perceptivel, da enorme maioria d'estes expatriados, homens e mulheres, aps curta residencia no paiz japonez. Ora pois,dada esta concisa explicao gente incredula,ha alguns dias, na cidade de Kobe, irrompeu a Primavera. Pela noite velha, fra chegando uma brisa como que amorosa, acariciadora, perfumada. No silencio das trevas, as carpas acordaram, n'um charco fronteiro ao meu albergue; e estrabuchavam, e produziam desusados ruidos, saltando fora d'agua, ardendo em cios, endemoninhadas. Quando rompeu o dia, e appareceu o sol, no se descreve o enlevo do bafo [33] morno, embalsamado, genesiaco, que enchia o espao. O ceu tinha azues novos; cirros de paz pairavam nas alturas. A paizagem esverdera; esverdera da herva nova, que surgia, e das arvores velhas, que se coloriam. A nossa observao educa-se n'este meio em especialidades de minucia, abundando por toda a parte, em campos e jardins, as coniferas, de todas as frmas, de todas as grandezas; estas arvores nunca se desfolham, mas no inverno descoloram-se, empallidecem como mulheres chloroticas, chegam a lembrar enfermos, chegam a lembrar coisas mortas; depois, a primavera excita-lhes a seiva, um verde intenso assoma-lhes s folhas, a vida recomea, doida, vo desabrochar flores em fria!... J as ameixieiras se apresentam em galas de florescencia; os negros troncos rugosos e lavrados pela lepra dos lichens, sem uma folha sequer, cobrem-se agora de bastas cabelleiras, alvas ou rosadas, feitas de mil e mil florinhas presas aos galhos por minusculos penduculos. Vistas de longe, nos sitios onde abundam, fazem lembrar uma floresta de arvores seccas, envolvidas pelo fumo e pelas chammas d'uma queimada devoradora. Em breve sero os ......Buy Now (To Read More)

Product details

Ebook Number: 25537
Author: Moraes, Wenceslau de
Release Date: May 20, 2008
Format: eBook
Language: Portuguese

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