A Casa dos Fantasmas - Volume I

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A Casa dos Fantasmas - Volume I - Episodio do Tempo dos Francezes Title: A Casa dos...
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Author: Silva, Luiz Augusto Rebello da,1822-1871
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Author: Silva, Luiz Augusto Rebello da,1822-1871
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A Casa dos Fantasmas - Volume I - Episodio do Tempo dos Francezes

Title: A Casa dos Fantasmas - Volume I Subtitle: Episodio do Tempo dos Francezes Author: Luiz Augusto Rebello da Silva Release Date: May 5, 2008 [EBook #25330] Language: Portuguese Credits: Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net Nota de editor: Devido quantidade de erros tipogrficos existentes neste texto, foram tomadas vrias decises quanto verso final. Em caso de dvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrar a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Maio 2008) VOLUMES PUBLICADOS I Russo por homizo II Odio velho no cana (1.) III Odio velho no cana (2.) IV A Mocidade de D. Joo V (1.) V A Mocidade de D. Joo V (2.) VI A Mocidade de D. Joo V (3.) VII A Mocidade de D. Joo V (4.) VIII A Mocidade de D. Joo V (5.) IX Lagrimas e thesouros (1.) X Lagrimas e thesouros (2.) XI A Casa dos Fantasmas (1.) XVI OthelloAs redeas do governo XVII A mocidade de D. Joo V (drama). XVIII O amor por conquista (comedia)O Infante Santo (fragmento). XIX Fastos da Egreja (1.) XX Fastos da Egreja (2.) XXI Fastos da Egreja (3.) XXII Fastos da Egreja (4.) obras completas de luiz augusto rebello da silva revistas e methodicamente coordenadas XI ROMANCES E NOVELLASV A CASA DOS FANTASMAS EPISODIO DO TEMPO DOS FRANCEZES 2. EDIO VOLUME I LISBOA Empreza da Historia de Portugal Sociedade editora LIVRARIA MODERNA R. Augusta, 95 | | TYPOGRAPHIA 45, R. Ivens, 47 1908 A CAMILLO CASTELLO BRANCO Seja-me licito, amigo, dedicar-lhe este esboo informe, fructo de algumas horas de ocio. Quem melhor, do que o auctor de tantas composies profundas na interpretao da vida, admiraveis na pintura do corao e dos costumes contemporaneos, poder desculpar o muito, que falta n'este quadro para sair menos imperfeito, e ao mesmo tempo apreciar em um, ou outro trao, os bons desejos e os esforos do auctor? A epocha, que escolhi, pedia pincel mais fino, e tintas mais vivas. Tentei vencer-me, e desenhal-a. Sei que fiquei mui inferior ao ideal, que tinha concebido, e receio mesmo, que o enfado dos leitores castigue a ousadia do commettimento. Espero, que o seu nome applaudido sirva de escudo e de defensor ao modesto livro, de que elle vae ser o maior ornamento. No o consultei para lhe offerecer este testemunho [6] da minha antiga e sincera amisade. Adivinhei a resposta, e ahi entrego em suas mos mais este orpho, que sae a correr o mundo. Deus lhe conceda a sorte propicia, que elle no merece, mas que s vezes uma boa sina proporciona mesmo aos menos dignos. Lisboa, 22 de Janeiro de 1865 Luiz Augusto Rebello da Silva. A CASA DOS FANTASMAS I Uma noite desabrida Era de tarde. Tinham dado cinco horas, e o dia declinava rapidamente. O mez de maio do anno 1808, anno assignalado de successos estrondosos na peninsula, acabava, como tinha corrido quasi todo, entre diluvios de chuva e ventanias. A noite, cujos primeiros veus j comeavam a cobrir as terras baixas, em quanto os derradeiros raios do sol esmoreciam na cora dos outeiros, avisinhava-se, toldada de castellos de nuvens, que surgiam do sul, listrando o horizonte de barras cinzentas, rasgadas de espao em espao pelos clares dos relampagos. O ar estava tepido, ou antes quente, e todos os ruidos se iam calando uns aps outros. A immobilidade das aguas, que no arrugava o mais leve sopro; a das arvores, cujas copas pareciam petrificadas; e as sombras, que avultavam mais pesadas de instante para instante, revestiam a paizagem de um aspecto gelido. Uma lufada de vento, halito abrazado da tormenta, passava solta por cima dos campos, [8] acamando as hervas altas, destoucando os arbustos, e saccudindo as ramas das oliveiras, dos alamos, e das faias, e ia morrer distante no roncar soturno e rouco dos troves. Algumas gotas, raras e grossas, caiam ento, e a luz, offuscada por mais espessos vapores, sumia-se de subito para reviver depois, mas timida e desmaiada, sem alegria e sem calor. As aves fugiam, cruzando-se e pipitando; a solido quasi que no tinha echos; e um silencio lugubre precedia a grande voz da tempestade, que ia principiar dentro em pouco. Apezar das ameaas da atmosphera, um viajante trocando o conchego de povoao commoda pelas inclemencias do tempo, tinha-se despedido da hospitaleira casa, aonde jantra, e mettendo o p no estribo de pau, e apertando as dobras da manta ribatejana, sem escutar os conselhos e vaticinios amigaveis, estimulava a mula com as largas rosetas da classica espora de correia, obrigando-a a espertar o passo por entre os viosos pampanos, hoje gloria e gala da nobre villa do Cartaxo. Em breve deixou atraz de si as vinhas, que, a esse tempo, (cultura nascente) apenas verdejavam em uma pequena parte do terreno, que se carrega agora de seus cachos, e achando-se em plena charneca, extendeu os olhos pela bella e vasta planicie, desatada por algumas leguas de ermo, no triste, nem agreste, mas tocado de risonha suavidade, e rodeado de longes to puros e desafogados, que a alma se consola e refrigera de extender por elle os olhos. O aroma alpestre das plantas; aquelle pr do sol entre nuvens; os lamentos da procella ao sul; e o vago indeciso de todo o quadro compunham um espectaculo de opposies to firmes e to bellas, que o viajante, quasi sem o querer, se deixou arrebatar por elle, e [9] insensivelmente foi imbebendo a vista nas formosuras rusticas, que de todos os lados o convidavam. Suas feies, de uma gentileza viril e sympathica, no inculcavam tedio ou cansao, mas impaciencia. A elevada estatura no se encurvava sobre os ares, e as pupillas pretas e cheias de fogo, se a miudo fitavam os trilhos enredados com estreitas fitas sobre o verde sombrio da charneca, denunciavam mais receio de chegar tarde a um ponto dado, do que temor de se ver assaltado pelo temporal no meio da jornada. A mula, que algumas horas de repouso tinham refrescado, como se adivinhasse os desejos do amo, despejava o passo, e o caminho; mas a noite e a cerrao ainda corriam mais. claridade baa do crepusculo seguiram-se as trevas; o cu forrou-se todo de negro; e os primeiros furaces bramiram acompanhados de um trovo proximo. A chuva principiava a fustigar de rajadas fortes o rosto do viajante, e a cegar-lhe a estrada inundada dos dias anteriores, e arrombada em diversas partes. A mula, apezar de afouta e vigorosa, atolava-se, tropeando a miudo. Na ponte da Asseca, a varzea, que ella corta, parecia um immenso paul, cujas aguas a cheia despenhada dos altos empolava com sussurros, que, unidos aos silvos do vento e aos ribombos da trovoada, enchiam de horror e de estrepito aquella scena, to repassada de grandeza e de magestade. esquerda os olivaes pendurados dos montes, que se encandeiam at Santarem, estorciam-se com o vendaval. direita os choupos e os freixos, na beira dos vallados, vergavam tremulos e desgrenhados como se mo gigante os dobrasse. O caminho parecia um mar, e os clares, em que os cus pareciam abrir-se, golfavam d esquerda os olivaes pendurados dos montes, que se encandeiam at Santarem, estorciam-se com o vendaval. direita os choupos e os freixos, na beira dos vallados, vergavam tremulos e desgrenhados como se mo gigante os dobrasse. O caminho parecia um mar, e os clares, em que os cus pareciam abrir-se, golfavam de repente o seu fulgor sinistro sobre este painel, que o tenebroso manto [10] da procella tornava logo depois a esconder. Atravessando a ponte, por onde enxurrava quasi uma torrente, o viajante procurou orientar-se. Ajudou-o uma luz ao longe. Seguindo por ella, no fim de dez minutos encontrou-se junto do vulto massio de um palacio arruinado, solitariamente erguido no meio das terras, e olhando quasi como sentinella esquecida para um angulo da estrada. Em uma das seis janellas sem caixilhos da fachada, atravs das fendas das portas de dentro, ou antes das tbuas de forro pregadas em logar de vidros, brilhava a luz que lhe servira de norte, e pelas gretas mal juntas das frestas do andar terreo luzia o claro de um grande brazeiro talvez acceso na cozinha. Applicando o ouvido sentiam-se estalar no lume os troncos humidos, e escutava-se o meio alarido de algumas vozes e risadas. Ah! exclamou o cavalleiro, detendo a mula, e derrubando sobre a cara por um gesto machinal as largas abas do chapu de Braga, quebradas pela chuva. Gente na casa Negra! Quem?!... Depois de breves momentos pareceu tomar uma resoluo, e a passo, chapinhando na agua, como se passasse um ribeiro, desviou-se, atravessou para o outro lado, e cozido com o monte subiu por vereda ingreme at um alto a tres ou quatro tiros de espingarda de distancia. Pelos corregos, a uma e outra parte, estrepitavam verdadeiros riachos saltando pelas pedras, e um relampago, fuzilando e extendendo como um lenol de fogo por cima das trevas, descubriu-lhe repentinamente a casinha caiada, de dois sobrados, tecto esguio, e duas janellinhas, que buscava. Cercava-a um muro baixo de pedras soltas. O ruido monotono de uma roda, e a queda de uma especie de cascata, sobrepujando o esparralhar da chuva, [11] e os gemidos do vento mostraram-lhe que estava na azenha de cima, ou no moinho da Raposa, como diziam os visinhos dos arredores. Sem se apeiar, o viajante bateu com o conto ferrado do cajado de marmeleiro por duas vezes tres pancadas na porta, e esperou. No foi necessario mais. Os latidos feros de um co de guarda, e logo depois vagarosos passos descendo a escada, advertiram-o de que fra ouvido. Oh, de dentro! bradou. Quem bate?! perguntou uma voz cheia. Eu! Esse eu quem ?... Abre!... Pois no!... Ao mesmo tempo o ouvido fino do recem-chegado percebeu o leve tinir dos fechos de uma espingarda a engatilhar-se. Antonio! Pelo rei e pela patria!... Ah?! Agora outro cantar. L vou. E calando o co, que pulava, ladrando e rosnando como furioso, desencostou a tranca, tirou o ferrolho, e a chave rangeu duas voltas na fechadura. Abriu-se finalmente a porta. Ento quem ? repetiu a mesma voz, em quanto a cabea se arriscava fra no escuro, sem a mo largar a espingarda. Manuel Coutinho. Conheces-me agora? redarguiu o hospede, apeiando-se, e expremendo do chapu a agua a escorrer em bica, e saccudindo a manta, que no estava menos ensopada.Que diluvio! murmurava por entre dentes ao mesmo tempo. Se contina, nadam manh os saveis na tua horta, Antonio da Cruz! Que se lhe ha de fazer! Como v. s.a vem!... Bemdito e louvado seja Deus!... Amen! Elle seja comnosco e nos ajude, [12] que bem o precismos; redarguiu o mancebo, porque o seu rosto moreno, mas fresco, e o cabello preto no inculcavam mais de vinte e quatro a vinte e cinco annos. Cuidei que me recebias a tiro! disse rindo, e mostrando duas fiadas de dentes finos, alvos, e eguaes, que uma dama franceza lhe invejaria para ornar um sorriso galanteador. Bem v a noite?!... Depois a gente no sabe quem lhe quer mal, e uma bala depressa entra... C me entendo!... D'ahi no esperava j por v. s.a!... No me esperavas?... mas eu tinha dito!... verdade, que disse. Mas choviam raios e coriscos e sempre cuidei que se deixasse l ficar em baixo. D-me a redea da mulinha. Ento no sahiu como se queria? Foi um ovo por um real. Entre v. s.a e enxugue-se. Vou c nossa arribana, com sua licena, arranjar a Ligeira, e um ai em quanto volto a accender-lhe o lume... Jesus! Santo Nome de Maria! Os relampagos cegam. Parece que nos cae o cu esta noite na cabea com a bulha l de cima! Manuel Coutinho entrou. O interior da casa, muito seu conhecido, era de apparencia singela e rustica. Suspensa do gancho preso em uma das vigas do tecto a candeia allumiava-a escassamente, apezar de pequena. No meio da parede do fundo rasgava-se a chamin baixa e ladrilhada. direita uma arca de pinho alta, sem fechadura, tinha em cima um cobertr de papa, e sobre elle enroscado com uma fisga aberta vigilancia em cada olho, o gato preto do moinho, to absorvido na sua beatitude extatica, e na sua pachorrenta immobilidade, que os latidos do co amigo e alliado domestico, e as vozes do dono, nem um movimento lhe tinham podido arrancar! esquerda a barra de pinho pintado tremia sobre [13] tres ps validos. Na cabeceira um devoto registo do milagre da Senhora da Nazareth correspondia a outro do glorioso confessor Santo Antonio, pregado na parede com obreias. A manta sobre o enxergo e duas pelles de carneiro compunham a roupa d'este catre de cenobita. direita, em todo o comprimento da casa, viam-se empilhados muitos sacos de trigo destinados m alveira da azenha. Os de milho jaziam mais adeante em pilhas. A fina flr da farinha escapando-se pelas aberturas revoava ao menor abalo, polvilhando tudo em roda. Por cima de algumas pelles de lebre e de coelho, extendidas a seccar na parede, pendiam o polvorinho de chifre com o fundo, ou rodella de pau, e a bolsa de couro, ou chumbeiro, attestado de munio e pederneiras. Em um armario, vasado no muro, e resguardado com sua cortina de riscado azul, luziam, como prata, pelo aceio, a chaleira e a almotolia de lata, e acastellavam-se duas rumas de pratos. Dos lados, sumptuosidade rara (!), duas caarolas de folha de Flandres e cabos de ferro acompanhavam a baixella de loua. Em uma prateleira por cima da chamin a caixa da isca e alguns tachos e frigideiras de barro esperavam a hora de serem chamados a servio activo. Uma escada empinada, de degrus toscos, verdadeiro quebra-costas, subia de um dos angulos para o andar de cima, aonde um alapo erguido e quadrado abria as fauces, como se quizesse engulir os que entrassem. Era ahi a labutao principal do moinho. As ms, rodando e zoando, ensurdeciam casadas no ruido somnolento com a queda da levada, que por uma longa calha de pau descia da preza a ferir a roda, e d'esta, saltando em caches dos baldes, ia espadanar no canal, d'onde fugia [14] ainda espumante a regar as hortas e as terras dos visinhos. Dois mochos de cerejeira brava, e uma poltrona de couro, roto e cossado, rodeavam no sobrado de baixo uma velha mesa de pau, collocada no meio do aposento por baixo da candeia de dois bicos. No meio d'ella um cangiro de aza larga, bojudo e vidrado, com sua tampa de cortia guardava a agua-p. Um copo de canada, limpo como crystal, um prato sobre toalha alva, meia broa de milho com um garfo de cabo de pau ao lado, e uma frigideira de sardinhas fritas annunciavam que a ceia do moleiro a comear, quando fra chamado. A navalha de mola e de ponta, um rlo de tabaco de picar, e algumas aparas d'elle, assim como duas capas de papel de cigarros, estavam dizendo tambem o que elle fazia pouco antes da visita inopinada lhe bater porta. Vejamos agora que razo de estado attrahia o mancebo a tal hora e por um tempo similhante quella casa, e o que se passou alli n'esta noite fecunda em incidentes para os personagens, que temos de metter em scena. II O moinho da Raposa O mancebo approximou-se da mesa, picou do rlo uma poro pequena, enrolou o cigaro entre os dedos, e, depois de o accender luz da candeia, assentou-se em um dos mochos, com os cotovellos fincados na tbua, e o rosto entre as mos, no sem primeiro ter tirado do cinto um par de pistolas inglezas e uma faca de matto hespanhola, encubertas com as compridas abas do gabinardo, que trajava. Antonio da Cruz appareceu instantes depois. Era robusto, largo de hombros e de peitos, mas esbelto. Trigueiro, e queimado do sol, as suas feies lembravam o typo arabe. Os beios grossos sorriam com franqueza, e, apezar de muito rasgada, tinha graa na bcca, mesmo quando descubria os trinta e dois dentes alvos e agudos, como os do felpudo molosso, que saltava em volta d'elle. O cabello rente e crespo cortado quasi em bico sobre a testa era negro como azeviche. O nariz revirado na ponta dava certo chiste physionomia; e nos olhos pardos e vivos como scentelhas brincava [16] uma expresso de finura natural e de malicia jovial, que lhe caa bem, e logo primeira vista o faziam bem quisto. De mediana estatura, mas proporcionado, era tido por um dos homens mais forosos d'aquelles contornos. O seu nome servia de grito da guerra nas aldeias contra a brutalidade dos valentes de arraial. Nas praas de touros em Villa Franca, em Salvaterra, ou na capital nenhum forcado o egualava em apanhar os bois de cara, ou de cernelha. A cavallo era um centauro; a p no tinha par no salto, ou na carreira; em mettendo a espingarda ao rosto aonde punha o olho punha a bala. O seu cajado manejado por mos de mestre varria as feiras, zombando de facas e de espadas. Sobrio como um anachoreta, presentido e vigilante como um mohicano, o seu maior defeito era ser impetuoso e assomado de mais. Em o sangue lhe subindo cabea, e em principiando a picar-lhe a pelle com pontas de alfinetes, segundo elle dizia, cegava-se, corria direito ao perigo, e, sem attender a nada, atirava-se a um precipicio. Temente a Deus, tinha tanto de bom amigo como de implacavel inimigo. Portuguez e patriota extremo, amaldioava os francezes como jacobinos, e chorava de saudade pelo principe regente, D. Joo, ao qual s vira duas, ou tres vezes, em sua vida. Manuel Coutinho affeioou-se a este caracter firme, honrado, e decidido. O moinho e a horta pertenciam ao mancebo, e Antonio trazia-os de renda. Ligado conspirao, por emquanto quasi inoffensiva, urdida em Lisboa contra o governo de Junot, conspirao que regia o conselho denominado Conservador, secretamente instituido no dia 5 de fevereiro d'aquelle anno para auxiliar a restaurao do throno legitimo e da independencia, Manuel Coutinho confiava [17] no humilde camponez, e communicava-lhe at recados de importancia. Executor discreto d'estas misses arriscadas, Antonio da Cruz comportava-se sempre com exemplar acerto, no s enganando o faro da policia de Lagarde, cujos espies corriam por toda a parte, mas supportando resignado por amor de seu amo (assim lhe chamava), e da boa causa desafios e remoques, que em outra occasio seguramente custariam caros aos aggressores. Se no hoje o fim do mundo, bradou elle entrando e saccudindo a agua de cima de si, no sei quando o ser! Mas o lume em um instantinho est a arder. A lenha secca. Ora, diga, meu amo: v. s.a traz sua vontadica de comer, no? Do Cartaxo aqui um pedacito menos mau... e a chuva e o vento cavam c por dentro como enxada em nateiro... No. No me faas nada. Se o appetite vier aqui temos de mais. Agora o lume sim. Essa boa. Ha de perdoar; no senhor. Graas a Deus o Manuel nunca foi torto, nem aleijado, e ainda esta manh, antes de almoo, no perdeu a polvora e o chumbo. Andavam aquelles fidalgos a saltar nas vinhas, e trouxe-os no alforge. Como os quer?... E apontava para os dois coelhos mortos e pendurados junto do almario. Guizo-lh'os de molho de vilo n'um abrir e fechar de olhos, e depois ha de beber-lhe em cima um, ou dois copos de um vinhinho, que me deram, e que fica a gente a chorar por mais... J te disse. O vinho e os coelhos guarda-os para manh. Agora melhor me sabe este cigarro, do que todos os manjares. Accende o lume. Temos que falar. O mancebo suspirou como quem se sente opprimido de tristeza, e lucta em vo por se vencer. [18] O Antonio da Cruz, curvo sobre a caixa da isca, a assoprar a chamma, ouvia-o, e percebeu-o, mas calou-se. A mecha pegou, e d'ahi a um momento levantava-se da lareira um claro vivo e alegre, tingindo de vermelho as paredes e os pobres moveis da casa. Bem! disse Manuel Coutinho. Isto j parece outra cousa! Senta-te, e come! Salvo o respeito, saiba v. s.a que no tem pressa. Tem. Come e despacha-te. Depois falaremos. preciso sair logo... Ah! Ento a cousa aperta? Para termos de sar por uma noite d'estas!... Pde bem ser a ultima da vida de umas poucas de pessoas! exclamou o mancebo, pondo-se em p agitado. Melhor o ha de fazer Deus, senhor Manuel! redarguiu o moleiro com a sua tranquillidade apparente, que illudia os que o conheciam mal. Com sua licena! ajuntou sentando-se mesa, e rompendo o assalto contra a broa e as sardinhas, regadas de copiosas libaes de agua-p. Os sacos pesam seis alqueires, e por aquella escada acima apalpam as costellas. saude de v. s.a! A minha pena que no quizessse provar dos coelhos e do vinho do convento de S. Francisco. Olhe que os padres sabem escolher do fino!... Que gente era aquella, que esta noite vi na Casa Negra? perguntou Manuel Coutinho, que as proezas gastronomicas de Antonio j no maravilhavam, porque fra testemunha d'ellas muitas vezes. Gente na Casa Negra? Na Casa Maldita?!... accudiu com a bcca cheia, e estremecendo. Sim! Vi luz em cima, na terceira janella, e ouvi risadas e vozes no andar terreo. No sabes o que ser?! [19] O meu padre Santo Antonio nos accuda! Cousas do demonio, que desde que me entendo o unico morador d'aquelle casaro! Mas v. s.a est bem certo!?... Gente a estas horas alli! No pde ser! Tanto pde, que havia fogo na cosinha, e gente a rir, a falar, e a aquecer-se a elle! Antonio da Cruz enguliu pressa o ultimo boccado, poz bcca cheio a trasbordar o copo de agua-p, e pousando-o vasio com um suspiro, tirou o barrete e benzeu-se. Olhe, senhor, creia v. s.a o que lhe digo! tornou meio atalhado. Gente d'este mundo no era de certo. Por estes arredores no havia quem se atrevesse!... Ah, Jesus, Santo Nome de Maria! accrescentou mais pallido. Deram ainda agora, noitinha, um tiro no Antonio Simes. Dizem que o mataram; mas o corpo no appareceu! Querem ver que foi parar a alma... Antonio! accudiu o amo um pouco severo. Alma que vae no volta! Isso so medos de criana. Os hospedes da Casa Negra esto vivos, como eu, e tu. Agora o que preciso saber, e j, o que so e o que fazem alli!... Ser o sargento Cabrinha, aquelle jacobino! Andou esta manh pelo sitio com as milicias. S se fr elle! O maldito ri-se de Deus e do diabo. Ha de chegar-lhe a sua vez. Prendeu alguem?!... Dizem que sim, ahi para os sitios do Casal do Ouro. Ah! exclamou o mancebo. Capaz seria elle? Se fosse quem receio!... Ouviste dizer?... Um velho e sua filha. Os nomes no m'os souberam dar. Nem preciso! interrompeu Manuel Coutinho em voz soffocada, e com os olhos inflammados. O infame Lagarde cumpriu a promessa. [20] Ver se a de um portuguez lhe fica atraz! Os nomes sei-os eu; dizia-m'os o corao antes de aqui entrar. Mas!... Conteve-se, e cau em reflexo profunda. Antonio da Cruz, tambem de p, e animado, desde que sabia que no era com os demonios, ou com as almas do outro mundo a contenda, esperava, olhando para a espingarda, que uma palavra do amo lhe pedisse o apoio do seu brao. Depois de curta pausa, o mancebo, renovadas as escorvas das pistolas, e cingida a faca de matto, virou-se para o seu confidente e disse-lhe: Queres saber como se chama o velho, que o sargento arrasta preso a Santarem para o entregar vingana dos francezes? Paulo de Azevedo Carvalho. E sua filha... A senhora D. Leonor?! A noiva de v. s.a!... Jesus... Pobre menina! Buscam-o para o processar como rebelde desde o caso de Mafra. Tinham-se escondido na Aramanha, e esse villo do sargento Cabrinha, por trinta moedas prometteu entregal-o. No o achando j alli, correu os arredores, e de certo o foi encontrar no Casal do Ouro pela denuncia... Do Sapo! Foi o Sapo, aposto! Por isso o patife andava desde hontem de orelha fita e focinho aguado! S ao moinho, aqui, veiu duas vezes! Ah! Se eu soubera! Partia-lhe outra perna. No importa. O que no se acaba dia de S. Braz n'outro dia se faz. No as perde. Antonio! Paulo de Azevedo no ha de entrar na cadeia da villa, nem na de Lisboa. Esta noite a Casa Negra ter outra historia talvez mais feia que juntar sua. Aprompta-te! meia noite samos. Pdes resar por alma do sargento, se o encontro! III Duas paginas da historia d'este seculo Antes de proseguirmos, para maior clareza d'esta mui veridica narrao, cujo fio poderia enredar-se com as explicaes de todos os momentos, pedimos venia ao leitor para resumir em breve noticia os acontecimentos, que formam o fundo da pintura, ou antes do esboo, que nos propozemos traar. A revoluo franceza, representante das foras e interesses da humanidade, herdeira no s das aspiraes e esperanas, mas tambem das dores e resentimentos de muitos seculos, saudada em 1789 com transportes de jubilo, em 1793 j tinha convertido a innocencia do primeiro enthusiasmo nos accessos febris de um patriotismo sombrio, dando o espectaculo, novo e incrivel, dos maiores crimes a par dos rasgos mais heroicos, e das virtudes mais sublimes. S e contra todos arremessou audaciosamente a luva aos adversarios de fra e s faces internas. Decapitou no cadafalso a realeza; repelliu os exercitos da Europa colligada; atravessou aps elles as fronteiras inimigas; [22] suffocou nas provincias insurgidas as saudades e as iras do regimen decado; e vigorosa, mesmo ao sar do bero, sobreviveu aos delirios e excessos da anarchia. Nada a detinha, nada a assombrava! Admirada de uns, execrada do maior numero, mas invencivel, precipitou-se, demolindo tudo no seu impeto, at, esvada do sangue vertido nos patibulos e nos campos de batalha, car por fim, quasi sem alentos, nos braos do mais illustre de seus capites, d'aquelle de quem Siys dissra com persuaso prophetica: que seria o senhor, porque sabia, queria, e podia tudo! A ordem restituida por elle, a victoria inseparavel de suas armas, o esplendor de tantas aces applaudidas, os milagres de uma vontade, a que ainda obedeciam os obstaculos e o destino, compozeram essa rara epopa, de que Napoleo I, grande como Cesar, ou maior talvez, foi ao mesmo tempo o heroe e o assumpto. Guiada pela providencia, a sua mo, ao passo que ia lavrando nas primeiras paginas da historia d'este seculo as datas memoraveis, com que se abriu sua agitada existencia, unia, pesada como a de Attila, gloriosa como a de Carlos Magno, queda do passado a transformao do presente. A fortuna muitos annos constante seguiu-o de triumpho em triumpho, desde as planicies da Italia, immortalizadas pela sua mocidade, at aos gelos do norte para os quaes a sorte parecia attrahil-o, e aonde o claro de Moscow incendiada havia de illuminar depois os funeraes do imperio. Marengo, Eylau, Essling, Wagram, e cem estaes assignaladas pelos prodigios do seu genio, viram a terra gemer abalada pelo galope dos esquadres; viram os thronos vacillar, [23] ou alluirem-se; viram os principios nvos germinarem grvidos do futuro nos sulcos rotos pela inundao, quando a onda vencida recolheu ao antigo leito! Abrazada em odio, ou cortada de espanto, a Europa contemplava aquella epocha de terremotos e de transfiguraes, sobresaltando-se com os decretos da voz soberana, que falava pela bcca de bronze dos canhes, e inclinando-se serva, mas fremente, na presena das aguias, que passavam e revolviam profundamente o mundo das idas e o mundo dos factos, desde as bases e os limites das monarchias, desde o solo e a familia, at ao estado physico e social, at organizao politica e economica. N'esta lucta de gigantes, a Frana e a Inglaterra, travadas como dois athletas, combatiam sem escolher as armas. Feriam-se sempre e em toda a parte! Percebiam que o duello era mortal, e que s podia terminar pela ruina de uma d'ellas. Aboukir e Trafalgar tinham assegurado a supremacia dos mares ao leopardo britannico. A Austria impaciente, mas resignada, a Prussia rendida em Jena, a Russia desenganada em Austerlitz e Friedland proclamavam a vaidade da liga continental. Mas Bonaparte, na maior elevao a que fra dado subir, tocado o apogeu, no foi superior fragilidade humana. Os deslumbramentos da grandeza trouxeram a vertigem. O abysmo chamou pelo abysmo. Esquecido de que s Deus omnipotente quiz e ousou tudo! Geraes inteiras immoladas semearam de cadaveres o rasto de seus passos. Os povos amaldioavam-lhe a ambio como flagello. As coroas, voando da cabea dos reis legitimos, arrancadas pelos furaces da guerra vinham cingir a fronte plebea dos eleitos da gloria. Retalhando o corpo exanime das nacionalidades desmembradas pela espada, edificou [24] na areia, s na areia, suppondo fundir em bronze esses reinos e dynastias ephemeras, que um aceno tirou do nada, que os seus revezes sepultaram para sempre. Repartindo pelos irmos e os generaes os diademas e os estados, queria ter n'elles satrapas, e no soberanos. Murat em Napoles, Joseph em Hespanha, Luiz na Hollanda, e Jeronymo na Westphalia representaram as peripecias d'esta ultima e arriscada phase de uma grandeza, que na usurpao dos sceptros e na provocao das antipathias populares encontrou o precipicio, a queda, e a lio! Portugal, no extremo occidente, abrigado pela distancia das revolues, que desmoronavam tudo ao meio dia e ao norte da Europa, no se eximiu afinal de participar tambem, e com largo quinho, das infelicidades, que a nenhum paiz poupou a sorte. A iniciativa do marquez de Pombal, interrompida pela morte do soberano, que vinte e sete annos o sustentra, apezar das conspiraes da nobreza, e da adverso da familia real, acabou com o monarcha to notavel pela firmeza. O poder do ministro eclipsou-se com o ultimo suspiro do principe, e com elle expiraram as tradies viris, e os commettimentos reformadores. Um gabinete quasi todo composto de aulicos, sujeito ao veto do confessor valido, substituiu o mando odiado do marquez; e este poude vr ainda do seu desterro a mo dos emulos alada contra a arvore, que plantra, arvore que apenas principiava a cobrir-se de flres, e qual a inveja no deixou amadurecer os fructos. A branda e devota indole da rainha atalhou em parte os bons desejos dos homens, que se prezavam de ainda respeitarem as maximas do grande reinado. Jos de Seabra, Martinho de Mello, e aps elles D. Rodrigo de Souza [25] Coutinho queriam continuar no caminho encetado por Sebastio Jos de Carvalho; porm divididos em partidos (o francez e o inglez), offuscados pelas intrigas dos hypocritas, e detidos pelos escrupulos, que assustavam a consciencia da filha de D. Jos I, luctavam muitas vezes em vo com a corrente, e os seus esforos a miudo naufragaram contra os artificios dos cortezos, e contra as declamaes dos beatos, senhores de todas as avenidas do pao. As providencias uteis, que honraram o governo de D. Maria I, derivaram-se do predominio conquistado sobre o animo da rainha, sua penitente, pelo arcebispo de Thessalonica, prelado isento de preconceitos e ornado de virtudes. Mal elle desceu ao tumulo, a viso terrivel dos patibulos, erguidos por seu pae, tornou-se uma allucinao perenne, e as trevas da demencia apagaram para sempre a razo vacillante da princeza. D. Joo, seu filho, empunhou as redeas do Estado, primeiro sem titulo expresso, depois com o de regente. Amigo da tranquillidade, avsso a complicaes e lances arrojados, humano e bondoso, era todavia mais sagaz e penetrante, do que supporia quem o conhecesse mal. Em suas mos a auctoridade soberana podia enfraquecer-se e rebaixar-se, como aconteceu, mas ferir os subditos, ou irritar os alliados, no! Comprada a preo de grandes sacrificios, a neutralidade foi a politica preferida pela timidez do principe, e ao mesmo passo o arbitrio prudente aconselhado pelas circumstancias. Comprada a preo de grandes sacrificios, a neutralidade foi a politica preferida pela timidez do principe, e ao mesmo passo o arbitrio prudente aconselhado pelas circumstancias. A republica tinha legado ao directorio esta amizade inerte, mas facil de conservar; e Napoleo, mais altivo, ou mais exigente, olhando quasi Portugal como colonia de Gr-Bretanha, no encobria j no consulado as [26] suas repugnancias pela dynastia de Bragana. Dictando-lhe a paz em 1801, e obrigando-a a submetter-se a condies injustas, nutriu acaso a esperana de que, no podendo executal-as, ella lhe proporcionasse um pretexto? No hesitando em animar a cobia e a rivalidade do gabinete de Madrid, queria costumal-o a invadir-nos as fronteiras, offerecidas como pasto quella ambio estimulada? Seja o que fr, a Hespanha tendo-se valido de nossas armas no Roussillon, pagou-nos com ingratides o soccorro, separando a sua causa da nossa, unindo-se a Bonaparte para nos humilhar, e aproveitando a sombra dos estandartes francezes para se apoderar d ......Buy Now (To Read More)

Product details

Ebook Number: 25330
Author: Silva, Luiz Augusto Rebello da
Release Date: May 5, 2008
Format: eBook
Language: Portuguese

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