O culto da arte em Portugal

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Author: Ortigão, Ramalho,1836-1915
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Author: Ortigão, Ramalho,1836-1915
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O culto da arte em Portugal

Title: O culto da arte em Portugal Author: Ramalho Ortigo Release Date: November 12, 2009 [EBook #30456] Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) Nota de editor: Devido existncia de erros tipogrficos neste texto, foram tomadas vrias decises quanto verso final. Em caso de dvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrar a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Nov. 2009) O CULTO DA ARTE EM PORTUGAL RAMALHO ORTIGO O CULTO DA ARTE EM PORTUGAL Monumentos architectonicosRestauraesDesacatos Pintura e esculpturaArtes industriaes O genio e o trabalho do povoIndifferena oficialDecadencia Anarchia esthetica Desnacionalisao da arteDissoluo dos sentimentos Urgencia de uma reforma LISBOA Antonio Maria Pereira, Livreiro-Editor 50Rua Augusta52 1896 Typographia da Academia Real das Sciencias de Lisboa Commisso dos Monumentos Nacionaes dedica respeitosamente este humilde trabalho O AUCTOR [1] Durante a Renascena, e ainda atravez da Edade Mdia, to insufficientemente conhecida no enigma da sua cultura artistica, os reis, os monges, os fidalgos, os burguezes enriquecidos ostentavam o fausto e a pompa hierarchica no smente construindo palacios e castellos, que enobreciam os logares que elles habitavam, mas erigindo basilicas e cathedraes, em que se concentravam todos os esforos do talento de uma raa, e eram verdadeiramente os palacios do povo, doados magnanimamente pelos mais poderosos aos mais humildes, em nome de Deus, em nome do rei, em honra da patria. [2] N'esses edificios incomparaveis se achavam colligidas como em escolas monumentaes, como em museus portentosos, todas as maravilhas da sciencia, da poesia e da arte. A esculptura architectural, a estatuaria dos mausoleus, a imaginaria dos altares, a illuminura dos missaes, a pintura das vidraarias, a talha dos retabulos subordinavam-se a um pensamento commum, expresso n'um vasto symbolismo, comprehendendo as fecundidades da terra e do mar, o trabalho do homem nos seus desfallecimentos e nos seus triumphos, a perturbao dos sentidos pelo peccado, a fatalidade do sangue, o horror do universal aniquilamento, e o vo da alma para Deus, levada por um immortal instincto de amor, de paz, de verdade e de justia. Dentro d'essas egrejas, ameaadas hoje de proxima ruina ou inteiramente arruinadas, se celebravam todos os actos da vida religiosa, da vida civil e da vida domestica. Ahi se casavam os noivos, se baptisavam os filhos, se sepultavam os paes. Ahi se ungiam os reis, velavam as armas os cavalleiros, professavam os monges, benziam-se os [3] fructos da terra, as bandeiras das hostes, as ferramentas da lavoura e os pendes dos officios. Ahi se discutiam os interesses do povo, os direitos, as franquias, os foros da communa. Ahi se prgava o Evangelho, se resava a missa, e se representavam os autos populares da vida de Jesus e dos seus santos; e nas vigilias da Natividade, da Epiphania e da Paschoa, quando o orgo emudecia no coro e se calavam os cantos liturgicos, o povo bailava ao longo da nave, sob as abobadas gothicas ou sob as cupulas bysantinas, e as las e os villancicos, entoados pelos fieis, subiam para o ceu com a fragancia das flores e com o fumo dos thuribulos, ao repique das castanholas e ao rufar dos adufes. Ao lado dos brazes e das divisas heraldicas pendiam dos muros os votos modestos dos mais obscuros mesteiraes, dos mais humildes braceiros. Esse alcaar dos pobres, que era a egreja medieval, alcaar mais sumptuoso que o de nenhum rei, dava asylo incondicional, inviolavel e sagrado, aos maltrapilhos, aos villes, aos mendigos, aos lazaros e s lazaras de todas as lepras do corpo [4] e da alma, aos tinhosos, aos nus, aos imbecis, aos ignorantes, aos criminosos, s mulheres adulteras, s mancebas, s mundanarias, s barregs. O egoismo dos tempos modernos torna-nos incompativeis com o commetimento de to grandes obras. Creamos instituies de caridade, fazemos regulamentos de assistencia publica, e vangloriamo-nos de haver definido pela revoluo liberal o dogma da fraternidade humana, mas somos fundamentalmente incapazes de consagrar pratica das virtudes, de que julgamos ter na historia o monopolio, monumentos como aquelles que nossos avs lhe levantaram a proll do comum e aproveitana da terra, dando em resultado que o mais andrajoso mendigo da portaria do mosteiro de Alcobaa ou do mosteiro de Santa Cruz, com o seu alforge ao pescoo e a sua escudella debaixo do brao, participava, alm da rao quotidiana que se lhe distribuia pelo caldeiro da communidade, de um agasalho de principe e de um luxo d'arte com que hoje no competem os maiores potentados, os quaes em suas casas e para seu recreio intimo se rodeiam de todas as joias artisticas de que [5] pela abolio dos vinculos e pela extino das ordens religiosas se apoderou o moderno commercio do bric--brac. Falta-nos a alta noo de solidariedade patriotica, falta-nos o desapego dos bens de fortuna, falta-nos o largo espirito de abnegao, falta-nos a illimitada liberalidade cavalleirosa, e falta-nos a f dos nossos avs. Na architectura trabalhamos unicamente para ns mesmos, sem cuidados de futuro, sem pensamento de continuidade de raa ou de familia, deslembrados de que teremos vindouros e de que teremos netos. Entre as nossas antigas construces hydraulicas ha o aqueducto de Elvas, que levou cem annos a fazer. Varias geraes successivas acarretaram para essa construco os materiaes; e lentamente, pacientemente, foram collocando pedra sobre pedra, para que um dia a agua chegasse a Elvas, e bebessem d'ella os netos dos netos d'aquelles que de to longe principiaram a recolhel-a e a canalisal-a. Uma tal empresa a humilhao e a vergonha do nosso tempo, imcapaz de pagar com [6] egual carinho ao futuro aquillo que deve previdencia, aos sacrificios e aos desvelos do passado. O nosso ideal na arte de construir que a obra se faa em pouco tempo e por pouco dinheiro. Vamos abandonando cada vez mais, de dia para dia, a pedra e a madeira, em que nimiamente moroso para a morbida inquietao do nosso espirito o trabalho de desbaste, de esquadria e de lavor. Adoptamos, como material typico do nosso systema de edificar, o ferro, o tijolo e a pasta. A casa cessou de ser uma obra de architectura para se converter em uma empreitada de engenharia, e os delicados artistas da pedra, da madeira e do ferro forjado abdicam da sua antiga misso perante os subalternos obreiros encarregados de fundir, de amassar e de enformar a vapr a habitao moderna e o moderno edificio publicoa gare, o quartel, o mercado ou a cadeia. O seculo XIX, se com a impotencia de continuar a obra monumental dos seculos que o precederam, accumulasse a incapacidade de comprehender e de venerar essa obra, representaria um pavoroso retrocesso na historia. No succede assim, [7] porque so inviolaveis as leis do progresso. Ao seculo XIX coube patentear o estudo mais dedicado e o conhecimento mais perfeito da arte antiga. A sciencia archeologica e a critica d'arte nunca em nenhum outro periodo da civilisao chegaram eminencia attingida pelos investigadores contemporaneos. tambem em sua maneira um colossal monumento, dos mais gloriosos para a intelligencia, o que erigiu a erudio do nosso tempo, constituindo scientificamente a archeologia, definindo o seu methodo, fixando os seus limites, especialisando o trabalho dos seus contribuintes, distinguindo da archeologia litteraria a archeologia da arte, ramificando para um lado a paleographia, a epigraphia, a ecdotica, a museographia e a propedeutica, para o outro as bellas artes, as artes industriaes, a numismatica, e ainda como desdobramento d'estes estudos a iconographia, a mithologia figurada e a symbologia, particularisando emfim estas investigaes a cada povo e a cada epocha da humanidade, creando d'esse modo a prehistoria, a egyptologia, a syriologia, que to amplo claro teem derramado sobre [8] os problemas da origem do homem, da distribuio das raas, da formao das linguas. Fixaram-se pelas escavaes de Troia, de Mycenes, de Chypre, de Santorin e de Rhodes as origens orientaes e pelasgicas da arte grega. Corrigiu-se na historia da ceramica a confuso existente entre os vasos pintados gregos e etruscos. Refez-se completamente sobre novos elementos e por um criterio novo a historia da olaria, a da toreutica, a da glyptica, a da esculptura em barro, a dos bronzes, a das joias, a da tapearia, a da illuminura. Desvendou-se o conhecimento da tachigraphia hieratica e dos alphabetos hieroglyphicos, ideographicos e phoneticos, que precederam o alphabeto grego e o latino. Creou-se a critica scientifica dos textos. Colligiram-se e classificaram-se as inscripes gregas e romanas dessiminadas pela Europa, e definiu-se o methodo de as datar. Leram-se os carcomidos graffitos de Pompeia, os papyrus carbonisados de Herculanum, as cartas lapidares da edade mdia e os palimpsestos de Plauto, de Cicero, de Marco Aurelio, de Tito Livio, de Euripedes e dos scribas carolingeanos. [9] Interpretaram-se os documentos de procedencia egypcia, copta ou phenicia sepultados nos jazigos das mumias. E os mysteriosos caracteres hieroglyphicos e cuneiformes das inscripes egypcias, caldas, assyrias e persas foram simplesmente trasladados a vulgar. Determinou-se a edade dos manuscriptos pelo systema das abreviaturas e da pontuao e pela evoluo da letra desde a oncial da Iliada no palimpsesto greco-syriaco do Museu Britannico at a minuscula italiana egual dos primeiros caracteres da imprensa. Inspeccionaram-se e inquiriram-se as primitivas habitaes do homem, as suas primeiras fortificaes, os seus mais antigos sepulcros,a caverna, a cidade lacustre, os castros e os dolmens. Na architectura principiou-se a estudar por novos meios de critica as causas dos seus progressos e da sua decadencia, prendendo assim pelos mais estreitos vinculos ao destino da arte o destino do homem. Por tal modo se transfigurou completamente desde o seu alicerce at o seu remate o vasto edificio da historia, segundo a resumida formula dada por Champolion Figeac: que todos os monumentos, ainda [10] os mais communs e os mais grosseiros, conteem factos cujo conjuncto como a estatistica moral das sociedades extinctas. D'esse novo criterio resultou a atteno especial com que todos os povos cultos principiaram a considerar a obra material do passado; e assim nasceu, com uma nova palavra, a nova maneira de restaurar os edificios publicos. Em mais de um documento da edade mdia se encontram provas de que os antigos poderes no abandonavam, to completamente como hoje se poderia suppor, ao accaso de qualquer iniciativa, sem beneplacito do estado, as edificaes consagradas ao publico. No Codigo de las partidas, lei 6., titulo X, dizia Affonso o Sabio, n'aquella saborosa lingua de que mais tarde se desdobrou o portuguez e o castelhano: Por bienaventurado se debe tener todo home que pueda facer eglesia, do se ha de consagrar tan noble cosa et tan sancta como el cuerpo de Nuestro Seor Jesucristo, et como quiere que todo home mujer la puede facer a servicio de Dios, pero con mandamiento del obispo, como es dicho en la ley segunda deste [11] titulo, con todo eso debe catar dos cosas el que la ficiere, que la faga complida et apuesta; et esto tambien en la labor como en los libros et en las vestimientas... Affonso V escreve de Almada, em 1467, aos juizes, vereadores, procuradores e homens bons da cidade de Evora para que se permitta a Sueiro Mendes levar duas pedras que estavam nos aougues, e eram do antigo templo romano, para antipeitos das janellas de uma casa, que a esse tempo edificava. E porque as ditas pedras aproveitam pouco honde estam e em as ditas casas faram muito, e ainda nobresa as cidades haverem em ellas bas casas taes como as do dito Sueiro Mendes, e seu fundamento he as faser para ns em ellas havermos de pousar, Ns vos rogamos e encomendamos que vos prasa lh'as quererdes dar, e Rodrigo Esteves mestre das nossas obras em essa cidade ter cuidado de as tirar donde estam, etc. Estas linhas so um trao caracteristico da policia do tempo. D'ellas se deduz que era preciso no seculo XV requestar a interveno regia para bulir em duas pedras de um velho monumento, [12] operao que hoje se realisa com menos formalidades, e at, como sabido, sem formalidade alguma. Era porm entendido como doutrina corrente no desdizer da nobreza de uma cidade que cantarias de stylo romano se transpuzessem do edificio a que pertenciam para edificio de stylo completamente diverso. Aquillo que modernamente se entende pelo neologismo restaurar operao desconhecida dos antigos. A obra architectonica seguia sempre e invariavelmente quer em novas edificaes, quer em reparao de antigas, o systema e o stylo da epocha em que era feita. Sem falarmos do Egypto, da Grecia, de Roma, onde as reconstruces se emprehendiam, sem o menor sentimento de respeito pela tradio, em vista de celebrar uma gloria coeva com os mesmos materiaes que haviam servido glorificao de feitos anteriores, como no arco de Constantino feito com as pedras do arco de Trajano, vemos em toda a Europa, e mais particularmente em Hispanha e em Portugal, edificios em cujos stylos sobrepostos perfeitamente se espelha o independentismo das influencias diversas [12] atravez das successivas phases da construco por differentes vezes interrompida. Uns nascem genuinamente bysantinos e desenvolvem-se romanicos; outros comeam romanicos e concluem gothicos; outros, gothicos de nascena, acabam no clacissismo greco-romano do renascimento; e frequente nas nossas egrejas entrarmos por um portal do seculo XVI para nos defrontarmos com uma capella mr no stylo barroco de D. Joo V, de D. Jos ou de D. Maria I. D'esses casos de polyarchitectonismo encontramos exemplos em Toledo, em Burgos, nos Jeronymos, na Batalha. A cathedral de Colonia n'este ponto de vista, um facto particularmente expressivo. A construco, principiada no meado do seculo XIII, proseguida muito lentamente, suspende-se no fim do seculo XV por desanimo de a concluir segundo o plano primitivo. No seculo XVII e no seculo XVIII, a nave, abrigada por um tecto provisorio, ornamentada em stylo rococo. Smente em 1842 se encetaram os trabalhos de uma restaurao authenticamente archeologica, segundo o plano original, cabendo o projecto da concluso a um architecto [14] que ao mais profundo estudo do stylo ogival reunia o talento mais esclarecido e mais perspicaz. Na historia da cathedral de Milo circumstancias analogas s de Colonia veem ainda corroborar a affirmao de que unicamente ao seculo XIX cabe o privilegio de restaurar monumentos. A obra de Milo iniciada no seculo XIV, interrompida por desavenas entre os architectos, uns allemes, outros italianos, outros francezes; continuada no seculo XVI em stylo da renascena; e to smente em 1805 a restaurao do monumento no seu stylo primitivo, segundo os programmas mais tarde definidos, se achou determinada por Napoleo I, o qual pela vastido do seu genio, ainda que pouco propicio aos humildes, muitas vezes se adeantou do seu tempo, e em muitas campanhas da intelligencia indicou de antemo o ponto da victoria, assim como ao principiar a campanha de Italia assignalava na carta do Piemonte o logar de Marengo. Foi Vitet, nomeado inspector geral dos monumentos historicos em 1830, quem primeiro indicou [15] em Frana o programma das restauraes architectonicas, presentemente seguido em toda a parte:em Hispanha, onde depois da real ordem de 4 de maio de 1850, se no emprehende obra de especie alguma nos edificios monumentaes sem prvia consulta da commisso dos monumentos historicos e artisticos; em Inglaterra e na Allemanha, que haviam precedido a Frana na proteco da arte nacional; na Italia, emfim, na Belgica, na Dinamarca, na Suecia, na Noruega, na Grecia, na Turquia. Violet-le-Duc, o erudito mestre a quem tanto deve o ensino da archeologia e das artes, completou o programma de Vitet, no smente ampliando os seus preceitos, mas dando da applicao d'elles o mais notavel exemplo na restaurao do castello le Pierrefonds. Conhecidos os livros de Violet-le-Duc, estudados com to paciente laboriosidade, escriptos com to lucido e penetrante engenho, e conhecida a legislao europa baseada n'esses estudos to completos e to perfeitos, a questo puramente administrativa de dar aos monumentos nacionaes de [16] cada povo a proteco que se lhes deve, quando menos por simples solidariedade intellectual na civilisao do nosso tempo, questo perfeitamente illucidada e rigorosamente definida. Vejamos agora qual em Portugal, perante as responsabilidades da administrao, o reflexo das ideias, cuja historia procurei resumir, com o fim de pr o assumpto na perspectiva que a sua magnitude pede. Levaria muito tempo e seria excessivamente triste ennumerar todos os attentados de que teem sido e continuam a ser objecto, perante a mais desastrosa indifferena dos poderes constituidos, os monumentos architectonicos da nao, os quaes assignalam e commemoram os mais grandes feitos da nossa raa, sendo assim por duplo titulo, j como documento historico, j como documento artistico, quanto ha, sobre a terra em que nascemos mais delicado e precioso para a honra, para a dignidade, para a gloria da nossa patria. Dos desacatos de lesa magestade nacional, a que tenho a dr e a vergonha de me referir, uns [17] teem caracter anonymo, outros affectam directamente a cumplicidade official. Os primeiros so uma consequencia de desdem; os segundos so um resultado de incapacidade. A auctoridade, incerta, vagamente definida, a quem tem sido confiada a conservao e a guarda da nossa architectura monumental, procede com esse enfermo, de quem se incumbiu de ser o enfermeiro, por dois methodos differentes: umas vezes deixa-o morrer; outras vezes, para que elle mesmo no tome essa resoluo lamentavel, assassina-o. Na primeira hypothese a calamidade correlativa chama-se abandonar. Na segunda hypothese a catastrophe correspondente chama-se restaurar,gallicismo technico, recentemente introduzido no vocabulario nacional, mas ainda no definido vernaculamente na applicao pratica. Para o argumento que tenho em vista produzir, tomarei unicamente d'entre os differentes desastres com que se deshonram e enxovalham os nossos monumentos, o desastre denominado restaurao. Serei laconico, sem deixar de ser sufficientemente [18] expressivo, porque os factos so de uma eloquencia que esmaga toda a especie de replica na materia de que se trata. Aqui temos tres edificios restaurados ou em restauro a expensas da nao, sob os auspicios do estado: Os Jeronymos, a Madre de Deus e a Batalha. Nos Jeronymos a construco desmoronou-se, sem provocao alguma de agente extranho, por mero desequilibrio de si mesma. Inutil todo o commentario. A restaurao, ainda antes de terminada, cahiu. Que prova mais lastimavelmente completa, evidente e cabal, de que foi insufficientemente estudado, logo nos seus primordiaes elementos, o programma de tal restaurao?! As seguranas de execuo falham precisamente na parte mais rudimentar do problema. Attente-se em que no se trata ainda de uma questo de archeologia, nem de uma questo de arte; no se apresenta nenhuma d'essas subtis difficuldades inherentes ao estudo das frmas constructivas ou ornamentaes, ao discernimento dos diversos stylos, ao pleno conhecimento das antigas [19] escolas no tempo e na regio a que o edificio pertence. Resolve-se apenas realisar uma simples tarefa de construco, e esquece, incumbindo esse trabalho de simples mestre de obras ao mais distincto dos scenographos, que a primeira condio de um architecto a quem se confia a restaurao de um monumento que elle seja, antes de tudo, acima de tudo, o mais habil, o mais experiente, o mais perito de todos os constructores. Na Madre de Deus, onde alis o primitivo portal da rainha D. Leonor foi discretamente reconstituido na moderna fachada do edificio, temos o infortunio de ir encontrar no consecutivo restauro de uma fabrica do tempo de D. Joo III novos capiteis de columnas, nos quaes em vez da ornamentao vegetal do nosso seculo XVI se v reinar nos entablamentos a figurao, absolutamente imprevista e inopinada, de uma locomotiva de caminho de ferro, arrastando fumegante o respectivo comboyo, tudo lavrado mui laboriosamente em pedra, e demandando um tunel. Este assombroso phenomeno de pathologia archeologica estou convencido de que dispensa ainda mais [20] do que o caso dos Jeronymos a investigao da autopsia. Nas restauraes da Batalha, umas j em realidade, outras ainda em projecto, falta, primeiro que tudo, o meditado programma de conjuncto no ponto de vista archeologico, no ponto de vista artistico e no ponto de vista technico, visando o assumpto por todos os lados de que elle pode ser encarado: qualidade do solo, influencias da atmosphera, escolha de materiaes, condies de resistencia e de equilibrio, systema geral de structura, determinao do stylo, desde as suas grandes linhas e dos seus motivos dominantes at os ultimos desenvolvimentos d'essas linhas, at o extremo desdobramento d'esses motivos, mo de obra, direco e apprendisagem em todas as officinas de que depende o restauro, etc. Seria por um programma d'essa natureza que a competencia do architecto restaurador deveria principiar a affirmar-se. Perante essa prova, comprehendendo o estudo do monumento, plantas, alados, photographias, desenhos de projectos, systemas de stylisao, methodos de estudo e de trabalho, [21] regimentos de officinas, etc., poderiamos ns, que no somos architectos, mas simples criticos, fiscaes da arte em nome do publico, decidir se o restaurador da Batalha est ou no est ao nivel da sua misso. Sem prova d'essa ordem que cotejemos com os requisitos a que teem de satisfazer, nos paizes extrangeiros, os architectos a quem se entrega a restaurao de um monumento, ns no podemos julgar seno de um modo muito imperfeito, tendo de entrar mais ou menos no exame da execuo, para o qual nos fallece a competencia profissional. Luiz da Silva Mousinho de Albuquerque o unico architecto portuguez de quem conhecemos, com relao historia do edificio e ao plano da restaurao da Batalha, estudos especiaes, consubstanciados n'uma memoria publicada, depois da morte do auctor, em 1867. A monographia a que me refiro, alm de mui interessantes revelaes sobre os vandalismos perpetrados pelos ultimos frades que habitaram o mosteiro e chegaram a quebrar os preciosos vidramentos das janellas para presentearem os visitantes com cabeas das [22] figuras de que elles se compunham, contm alguns principios mui judiciosos e bem definidos, sobre o modo como esse perito restaurador, que a influencia do rei D. Fernando fizera nomear, comprehendia a sua delicada misso. E excellente o methodo por elle proposto para a conservao das Capellas imperfeitas. Notam-se alguns excessivos e infundados rigores de zelo, como na parte em que ao restaurador repugna adoptar, para o fim de pr o monumento ao abrigo das intemperies, processos de resguardo mais perfeitos que os conhecidos ao tempo da construco primitiva, taes como, por exemplo, o emprego de cimentos modernos na vedao de uma cobertura, etc. A memoria programma de Mousinho de Albuquerque no obstante um trabalho de incontestavel merecimento, que muito augmenta de valor se levarmos em conta que esse illustre architecto escrevia em 1840, quatro annos depois d'aquelle em que o rei D. Fernando visitou o edificio, chamando para elle pela primeira vez a atteno dos poderes publicos. At Mousinho a architectura da Batalha foi na [23] litteratura portugueza um puro thema de rhetorica. O romantismo tinha-nos trazido a moda do gothico por via de Chateaubriand e de Victor Hugo. Os romances, as xacaras, as baladas e os solaus, com as suas castells, os seus paladinos, os seus pagens, os seus menestreis e os seus respectivos attributoslanas, montantes, elmos, guantes de ferro, falces, adagas, bstas e bandolins, pediam um scenario de fortificao feudal, fossos e pontes levadias, revelins, caminhos de ronda, ameias, torres de menagem, amplas chamins com trasfogueiros forjados, ogivas e abobadas. As egrejas, para os effeitos de grandiosidade no stylo, sempre que no eram ermidas eram cathedraes. Os romanticos chamavam cathedraes a todos os grandes templos, como o da Batalha, o do Carmo e o dos Jeronymos. O romance historico, tanto em voga durante a gerao litteraria de Alexandre Herculano, tinha exigencias decorativas analogas s da poesia cavalheiresca. Os estudos de critica e de archeologia artistica, tendo por objecto os nossos monumentos architectonicos, davam em resultado [24] geral uma especie de lenga-lenga de eruditos ciceroni. A Batalha tem sido constantemente, desde a primeira appario da Abobada no Panorama, at hoje, o grande livro de marmore, o immortal poema, a Divina Comedia portuguesa, a triumphante affirmao da nacionalidade independente, definitiva, fundada pela vontade do povo, pela espada do mestre de Aviz, pela lana de D. Nuno Alvares Pereira e pela penna de Joo das Regras. Com effeito, nada mais bello, na historia nacional, do que o feito d'armas de Aljubarrota e o monumento de Nossa Senhora da Victoria, destinado a commemorar esse feito, por voto de D. Joo I. Mas d'ahi a poder-se dizer que o edificio da Batalha , como a epopa dos Luziadas, a imagem technica das idas e dos sentimentos da patria, medeiame pareceum largo abysmo. Olhemos por um momento a historia d'esta construco. Frei Luiz de Sousa diz que El-rei chamara de longes terras os mais celebres architectos que se sabiam; convocara de todas as partes, officiaes de [25] cantaria dstros e sabios; convidara a uns com honras, a outros com grossos partidos, e obrigara a muitos com tudo junto. Este testemunho precioso e est acima de toda a suspeita, porque nos vem de um frade de S. Domingos, que habitou por muitos annos o convento da Batalha, e que, como chronista da ordem, conheceu inteiramente pelo archivo do convento quanto se sabia da historia da sua fundao. Frei Francisco de S. Luiz contesta, sem provas, que fossem architectos celebres chamados de longes terras, como diz Sousa, os iniciadores da grande obra, e cita como auctor do risco Affonso Domingues, porque d'elle se sabe que teve parte na direco das obras nos primeiros annos da fundao, e no consta de documento authentico que qualquer outro architecto interviesse nos trabalhos durante os dezeseis annos que medeiam entre o seu comeo e o anno da morte de Affonso Domingues, em 1402. Todos os que se seguiram a Frei Francisco de S. Luiz, adoptaram esta opinio; de modo que se tornou uma cousa to corrente como se estivesse [26] demonstrada que foi Affonso Domingues quem construiu a Batalha. James Murphy, porm, no seu livro Travels in Portugal, affirma, por informaes que lhe foram dadas em Lisboa por empregados da Torre do Tombo, que o encarregado da construco foi o architecto inglez Stephan Stephenson, socio das free and accepted masons, que tinham a sua sde principal em York. Stephenson teria vindo a Portugal por interveno da rainha D. Filippa, mulher de D. Joo I, ingleza de nao, filha do duque Joo de Lencastre e neta de Eduardo III. O conde de Rakzynski diz a este respeito, que desde que examinou as gravuras do convento da Batalha, na obra in folio de Murphy, se convenceu de que a analogia existente entre a Batalha e a cathedral de York no permitte a minima duvida acerca da origem commum d'estes dois edificios. Que o plano da igreja da Batalhadiz Rakzynskiseja obra de um portuguez ou de um inglez, a verdade que as duas igrejas nasceram de inspiraes artisticas analogas, homogeneas e contemporaneas, e o estylo de ambos me parece [27] identico. Esta impresso tornou-se para mim ainda mais forte, depois que visitei a Batalha. Temos, pois, sobre a origem estrangeira d'este monumento tres votos importantes: o de Fr. Luiz de Sousa, o de James Murphy e o do conde de Rakzynski, aos quaes recentemente se juntou o architecto Haupt. Na Torre do Tombo no se encontra documento algum relativo construco da Batalha, nem vinda de Stephenson a Portugal. Em 1845, Alexandre Herculano e o Visconde de Juromenha, auxiliados pelos officiaes da Torre, fizeram as mais demoradas e escrupulosas pesquizas para o fim de satisfazer a curiosidade de Rakzynski, e nada appareceu. claro que esta ausencia de vestigios no real archivo nada prova sobre o facto de ter estado ou no em Portugal o architecto de York. No consta to pouco, dos documentos existentes no archivo, que tivesse estado em Portugal durante nove annos o insigne esculptor italiano Andrea Contucci, emulo de Miguel Angelo; e no emtanto este facto acha-se fra de toda a contestao. [28] O cardeal patriarcha Frei Francisco de S. Luiz, queixando-se da negligencia e da superficialidade com que Frei Luiz de Sousa falla dos primeiros architectos da Batalha, e propondo-se demonstrar que o auctor da obra foi Affonso Domingues, diz que no v razo para pr em duvida a habilidade dos nossos compatriotas, suppondo que houvessemos de reclamar a assistencia de estrangeiros em uma epocha como a de D. Joo I, na qual, exceptuadas as italianas, nenhuma nao da Europa se achava mais adeantada que a nao portugueza, tanto na arte da architectura, como em todas as outras. O patriotismo imprudentemente levado at s affirmaes da natureza das de Frei Francisco de S. Luiz, tem um inconveniente grave, que o de fazer sorrir os estrangeiros, da ingenua applicao dos nossos sentimentos civicos historia da arte europa. Hoje, toda a gente sabe, porque esta ordem de conhecimentos tem-se vulgarisado muito, que o systema gothico ou systema ogival, a que primitivamente se chamou Opus francigenum, teve a [29] sua origem na ilha de Frana e na regio circumstante. Foi n'esses logares que at o seculo XII se construiram os primeiros edificios gothicos. O novo stylo chega em Frana aos seus mais completos desenvolvimentos no seculo XIII, e d'essa epocha datam as cathedraes de Amiens, de Pariz, de Reims e de Chartres. Os allemes e os inglezes teem contestado Frana a prioridade do emprego do arco ogival e dos desenvolvimentos architectonicos que d'elle procedem. O que, porm, est acima de todo o litigio, que o systema ogival, chamado stylo gothico, ou gothico puro da igreja da Batalha, no procede da inveno dos paizes meridionaes, de cu azul, mas sim das regies nevoentas de longos e rudes invernos. No norte da Europa, durante a edade mdia, tratou-se de edificar a grande cathedral que dsse um abrigo espaoso s numerosas congregaes de fieis e de cidados; como a pedra escasseava, como a neve cahia em abundancia e permanecia por longo tempo, procurou-se um modo de construco, que, sem difficultar a circulao da gente [30] com grandes e repetidos corpos de cantaria no interior do edificio, permittisse empregar materiaes menos solidos e fazer tectos elevados e agudos, que, no pesando excessivamente sobre os membros destinados a sustental-os, deixassem facilmente resvalar e escorrer a neve pelas superficies exteriores, impedindo o mais completamente possivel a infiltrao da humidade no interior do templo. Foi d'estas causas, determinadas pela natureza do clima e do solo, pelas condies sociaes, e no de um mero capricho inventivo, que resultou para os architectos dos paizes septentrionaes o pensamento de readoptar a abobada de aresta, que os romanos, depois de a haverem empregado, puzeram de parte, para o fim de dar logar na construco das basilicas christs enorme quantidade de columnas legadas pelo paganismo. Assim foi que nasceu, bem longe de Portugal e inteiramente fra das influencias cosmicas e das influencias sociaes geradoras do caracter e da indole da nossa raa, que nasceu o stylo architectonico da egreja da Batalha. [31] A affirmativa de que nenhuma nao da Europa, com excepo da Italia, se achava mais adeantada do que Portugal do tempo de D. Joo I, nas artes da architectura, smente prova, da parte do cardeal frei Francisco de S. Luiz, que este benemerito academico e illustre litterato, ou no viajou nunca em Frana e na Allemanha, ou no visi ......Buy Now (To Read More)

Product details

Ebook Number: 30456
Author: Ortigão, Ramalho
Release Date: Nov 12, 2009
Format: eBook
Language: Portuguese

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