Principios e questões de philosophia politica (Vol. II)

Principios e questões de philosophia politica (Vol. II)

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Author: Cândido, António,1850-1922
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Title: Principios e questes de philosophia politica (Vol. II) Author: Antnio Cndido Release Date: November 5, 2012 [EBook #41293] Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) Preo--700 ris PRINCIPIOS E QUESTES DE PHILOSOPHIA POLITICA POR ANTONIO CANDIDO RIBEIRO DA COSTA II LISTA MULTIPLA E VOTO UNINOMINAL COIMBRA LIVRARIA CENTRAL DE JOS DIOGO PIRES 9--Largo da S Velha--10 1881 PRINCIPIOS E QUESTES DE PHILOSOPHIA POLITICA PRINCIPIOS E QUESTES DE PHILOSOPHIA POLITICA POR ANTONIO CANDIDO RIBEIRO DA COSTA II LISTA MULTIPLA E VOTO UNINOMINAL COIMBRA IMPRENSA DA UNIVERSIDADE 1881 AO DR. JOS CABRAL TEIXEIRA COELHO em homenagem lealdade do seu corao e exemplar probidade do seu talento Off. O auctor. SUMMARIO I Comprehenso actual do suffragio politico. Opinies de Dupont White, Bluntschli, Wirouboff, Oliveira Martins. Antinomias d'aquelle facto social; diversas solues para as reduzir; a que deve ser preferida.--II Estado da questo tratada n'este folheto: a votao deve ser uninominal, ou de muitos nomes? , fundamentalmente, uma questo de anthropologia. A philosophia naturalista do seculo XVIII em contradico com a moderna anthropologia.--III Historia da lista multipla (scrutin de liste) na Frana e entre ns. Tem por si as melhores tradies democraticas. Juizo de Gambetta sobre a revoluo de 1848. Como a questo eleitoral foi considerada no nosso parlamento em 1859.--IV A lista multipla preferivel ao voto uninominal. Tem, principalmente, a vantgem de inverter o suffragio, tornando-o indirecto. Porque foi inefficaz na constituio da assembla franceza de 1871. Objeces contra a lista multipla.--V Analyse da primeira objeco. O suffragio directo uma illuso; se tem de ser dirigido, antes o seja pelas grandes commisses dos partidos do que pelas influencias locaes. Este regimen produz, quasi sempre, as melhores assemblas legislativas. Importancia da imprensa n'este modo de eleger; sua justificao.--IV Analyse da segunda objeco. A lista multipla rompe a intimidade do eleitor com o seu representante. O sentimento pessoal no da essencia do voto. Aquella intimidade produz as seguintes consequencias: rebaixa a lucta eleitoral, permitte a seduco pelo dinheiro, obriga os eleitos a um servilismo indecoroso. Demonstrao.--VII o regimen mais proprio para a formao de parlamentos fortes e de governos viaveis. esta a sua maior excellencia n'este momento da civilisao occidental. Apreciao rapida do estado da Frana, da Italia, da Hespanha e de Portugal. A representao das minorias compativel com a fortaleza dos governos. A lista multipla, s por si, permitte, at certo ponto, aquella representao. Demonstra-se isto.--VIII Commentario a uma phrase de Lord Derby. Consideraes sobre o presente estado da civilisao politica. Perigos das agitaes muito repetidas. Incerteza do futuro. Gravidade d'esta incerteza. I O suffragio politico, que , desde muito, um facto consummado na vida dos povos mais cultos, est ainda longe de ser um raciocinio triumphante uma verdade positivamente liquidada nas especulaes da sciencia. Em quanto dominou o mundo a philosophia absoluta, que tinha a intuio por methodo principal, a discusso d'aquelle facto foi apaixonada, levou alguns interessados n'ella prova extrema do martyrio, chegou a determinar uma formidavel revoluo, que um dos acontecimentos culminantes d'este seculo; mas a ponderao das suas difficuldades praticas e o verdadeiro conhecimento da sua indole, antinomica com irrecusaveis condies sociaes, so obra de outra escola, que antepe a analyse ao enthusiasmo inconsciente e a realidade das cousas ao optimismo dos espiritos. E no so j smente os discipulos d'essa escola, os puritanos seguidores da philosophia experimental, que vem no suffragio politico as difficuldades, que elle importa, e as contradices, que elle encerra. Graas influencia dos novos methodos, sentida ainda por aquelles que fazem gala de os [2] combater, essa instituio do Direito Publico perdeu o falso prestigio sentimental que a aureolava, e geralmente tida hoje pela mais perigosa de todas as funces sociaes. Ao invez de tantos que saudaram o suffragio generalisado como aurora d'uma liberdade viavel e fecunda, insignes publicistas de todos os matizes so attestes em consideral-o um mal gravissimo, a que urge applicar remedio. Dupont White qualifica a democracia de contra-senso, de pura chimera, porque entrega e confia o que a sociedade tem de mais difficil nas suas obras a quem mais incapaz entre os seus membros, e para a mais alta das funces, que o governo, destina o mais grosseiro de todos os orgos, o suffragio do povo![1]. Bluntschli friza muitas vezes a mesma ida, e, na violenta apprehenso que lhe causam os perigosos abusos do voto universal, prope, como foroso antecedente ao exercicio dos direitos politicos, o que elle chama consagrao civica, uma especie de chrisma administrado pelo Estado, n'uma festa solemne, aos que a edade vai collocando na categoria de cidados[2]. Wirouboff, o energico continuador de Littr, teve ainda ha pouco a coragem de dizer em plena Frana, no paiz classico do suffragio universal, que este, quando no era uma flagrante contradico, no passava d'uma inanidade, a que a rhetorica constitucional revestia, a seu talante, toda a sorte de roupagens[3]. E, para produzirmos uma auctoridade [3] nossa, transcrevemos as seguintes palavras de Oliveira Martins, o poderoso e brilhante escriptor, que dia a dia se habilita para exercitar gloriosamente o primado das letras portuguezas: O descredito chegou a um ponto que os maiores amigos do systema so hoje os inimigos da liberdade. Os cesaristas so os primeiros defensores do suffragio universal, que a democracia, como partido, no teve ainda a coragem de confessar que uma burla[4]. [4] Por outro lado, a legislao eleitoral muda, transforma-se sempre dentro de curtos periodos, revelando-se assim frequentemente [5] a desilluso padecida pelos povos, que teem de repellir, por inefficazes, as suas creaes no dia seguinte ao da [6] produco d'ellas. A propria Inglaterra, to adherente s suas tradies de toda a ordem, excepciona, a este respeito, o temperamento da sua raa. Que explicao tem este grave conflicto, em que esto empenhados os mais distinctos entendimentos e os mais importantes interesses do nosso tempo? Tem a seguinte: a imprudentissima antecipao de reformas, que o povo, a ultima e mais numerosa classe da sociedade, est longe de comprehender e executar, e a manifesta impossibilidade de restringir faculdades, que a lei e o costume consagraram como direitos. certo que na Suissa e nos Estados-Unidos o suffragio universal funcciona menos imperfeitamente; mas o povo d'essas duas florescentes republicas tem uma longa educao democratica, e, sobre tudo, uma larga descentralisao administrativa e politica, e por isso o voto individual dos seus cidados satisfaz, pelo menos, a estes requisitos de todo o legitimo suffragio: interesse immediato e especialisao do saber. Nos outros paizes o regimen unitario annulla estas duas condies, e causa lastima, profunda lastima, ver como a humanidade culta relucta ahi infructuosamente com a fatalidade [7] d'um legado historico, que no sabe aproveitar e no pde repellir! Partindo da mesma comprehenso d'este phenomeno social, so diversissimas as direces seguidas pelos pensadores que consideram e sentem as difficuldades do problema. Uns limitam-se, no maior desalento, negao pessimista de todo o progresso. Outros, to insensatos e estereis como aquelles, esperam que o suffragio universal se curar a si mesmo todos os males, como se fosse alguma cousa mais do que um instrumento material, manejavel a quaesquer impulsos! No falta quem se contente com ostentosos programmas das reformas a operar para que o voto politico seja uma realidade efficaz, esquecendo-se de que taes reformas s em muito distante futuro so realisaveis, e de que, no entretanto, a suspenso do suffragio universal absolutamente impossivel. Ha, emfim, alguns espiritos melhormente avisados, que, vendo as cousas como ellas so, curam de applicar desde j ao suffragio universal um systema de modificaes que o torne mais racionavel na sua organisao e menos damnoso nos seus effeitos. Para estes toda a discusso dos fundamentos do suffragio abandonada por ociosa e inutil. Elles sabem que so totalmente indifferentes ao interesse real dos povos as controversias apparatosas, que podem entreter os ocios d'uma sabia academia, mas no accrescentam um ceitil economia das sociedades, nem despontam a rudeza das infimas classes, que, sem saberem para qu, nem porqu, esto hoje investidas dos supremos poderes. Acceito o pensamento d'este grupo de pensadores, e j procurei servil-o formulando e desenvolvendo a grande verdade [8] da representao proporcional[5]; e hoje contino o primeiro trabalho, examinando uma questo, tambem eleitoral, que a Frana retomou ainda ha pouco, e exhibiu ao mundo n'aquella magnifica frma com que esta gloriosa nao avulta e sobredoira sempre todos os assumptos que a impressionam sriamente. Esta questo versa sobre a unidade ou multiplicidade de nomes na lista de cada eleitor. II O suffragio politico concedido para a formao de assemblas legislativas, ou de corporaes incumbidas da administrao local. Para que elle produza, pelo melhor modo, o seu resultado, qual d'estas duas cousas ser mais conveniente: a votao de cada eleitor n'um s nome, destinado a representar um determinado circulo, ou a votao de lista com muitos nomes, que ficam constituindo a representao collectiva d'uma area mais larga? Do simples enunciado da questo resalta j que ella de pura frma, extranha ao que poderia chamar-se, em linguagem antiga, a essencia do suffragio. O que se debate o valor relativo de dois processos empregados para a consecuo da mesma cousa, de dois modos de aproveitar praticamente [9] uma fora, que, em qualquer d'elles, subsiste como era. No partem da mesma ordem de idas os que defendem o voto uninominal e os que rompem lanas em defesa da lista multipla. Aquelles preoccupam-se mais do interesse e da competencia do eleitor; estes visam principalmente melhor constituio das assemblas politicas. Os primeiros representam, n'esta questo, a escola que considera o suffragio como um direito; os segundos pertencem que considera o voto politico, no como um direito do homem, mas como o privilegio do cidado, subordinado aos interesses geraes do Estado. Diga-se de passagem que esta distinco tem um grande sabor metaphysico. Contra a comprehenso do suffragio como um direito insurge-se a anthropologia, estudada pelos modernos processos; contra a definio d'elle como privilegio levanta-se a historia da sua generalisao, pde dizer-se que at ao limite extremo, nos mais adeantados povos da Europa e da America. philosophia naturalista do seculo XVIII que se deve a ida de que todos os homens, pelo s facto de serem homens, devem ter egual participao no governo das sociedades. A declarao dos direitos do homem e do cidado, com que abre a constituio franceza de 1793, consagra, no art. 6., este principio: a liberdade tem por fundamento a natureza. Esta phrase vem da Encyclopedia. Mas a natureza, como a entendia aquelle seculo, no qual a descrevem as sciencias de hoje. Era ento um mixto de factos positivos e de abstraces idealistas, um conceito absoluto de que era facil deduzir as mais ousadas consequencias. [10] E passava-se da natureza para a sociedade, importando ao regimen d'esta as mesmas illuses egualitarias que a sciencia consagrava n'aquella. Se a natureza a mesma em todos os homens, todos os homens devem ter os mesmos direitos politicos. Era este o raciocinio, sympathico s inferioridades sociaes, fulminante para as tradies estabelecidas, excellente como instrumento de negao, mas falso, falsissimo, como base da nova ordem de instituies, que era necessario edificar sobre os escombros do passado. O naturalismo de hoje formla concluses oppostas quella doutrina. Buffon e Diderot so triumphantemente combatidos por Darwin e Haekel. j verdade incontestada que os progressos da civilisao, differentes de povo para povo, e, dentro do mesmo povo, de classe para classe, produzem novas faculdades naturaes, e que a obra do esforo humano se perpeta conjunctamente nas paginas da historia e na anatomia do cerebro. A este modo de explicar as desegualdades sociaes corresponde a doutrina que considera o voto como um encargo, na phrase de Stuart Mill[6], ou como um direito publico, por opposio a direito natural, na linguagem de Bluntschli[7]. O direito de suffragio, diz este illustre professor, no um direito natural do individuo, como pretende o Contracto Social, mas um direito publico derivado do Estado, existindo s no Estado, no podendo servir contra elle. como cidado, no como homem, que o eleitor vota; elle no deduz o [11] seu direito de si mesmo, das necessidades da sua existencia, ou do seu desenvolvimento pessoal, mas da constituio do Estado, e para bem d'este. Infelizmente as lies da moderna biologia e as profundas theorias dos mais eminentes publicistas vieram tarde, demasiadamente tarde. A revoluo politica, que estendeu a todas as classes a faculdade de intervirem na gerencia social, sem considerao pelo seu estado mental e pela sua situao economica, estava j consummada quando vieram a lume aquellas verdades. E uma revoluo feita uma fatalidade indestructivel; deixa sempre na organisao dos povos um elemento novo, bom ou mo, mas to firme, to persistente como as camadas geologicas que se sobrepem na constituio do nosso planeta. III Quando, no vero passado, a questo da lista multipla (scrutin de liste) appareceu no parlamento francez por uma proposta do deputado Bardoux, defensores e adversarios d'ella invocaram a historia dos dois regimes eleitoraes, querendo os primeiros mostrar que estavam com as mais genuinas tradies republicanas, e sustentando os segundos, com inflammado interesse, a these opposta. Sem embargo de ser pouco edificante vr uma das mais brilhantes assemblas do mundo dividir-se assim na interpretao de factos tam proximos e tam geraes, certo que a inteno de todos elles era perfeitamente legitima, porque a [12] melhor prova d'uma instituio pratica a experiencia que d'ella se faz. Houve exaggero de um e outro lado, mas da parte dos que pugnavam pela lista multipla estava maior poro de verdade historica. A lei de 22 de dezembro de 1789, a primeira que a Frana teve sobre liberdade politica, mandava fazer as eleies pelo voto plurinominal, e do mesmo modo dispunham a Constituio de 1791, o decreto de 12 de agosto de 1792, a Constituio de 1793 e a do anno III. Este systema, hybridamente combinado com o do suffragio uninominal, atravessou todo o periodo da Restaurao, e s em 1831, no estabelecimento da monarchia de julho, foi que elle teve de ceder, ficando em vigor, at 1848, o suffragio por circulo, que a revoluo d'esta data aboliu logo por um acto do governo provisorio, sendo a lista multipla adoptada para a formao das duas assemblas republicanas. O principe L. Bonaparte, ainda presidente, substituiu-lhe o voto uninominal, que serviu admiravelmente, em todo o tempo do imperio, aos nefastos intuitos d'este famoso aventureiro. A terceira republica reviveu o regimen eleitoral de 1849, e foi por elle formada a assembla de 1871. Substituido pelo outro systema em 1875, voltou, no anno corrente, a ser proposto, questionado apaixonadamente e por fim votado na camara franceza, depois d'um dos mais notaveis discursos com que a poderosa eloquencia de Gambetta tem illuminado a tribuna de Mirabeau; e se a fortuna lhe foi adversa no senado, talvez isso se deva antes a rivalidades pessoaes do que a divergencias de doutrina. D'este summario historico v-se que a democracia franceza [13] tem decidida predileco pela lista multipla, que ainda pde invocar em seu favor as malquerenas dos ministros de Luiz Philippe e dos cortesos de Napoleo III. Menos avisado andava, pois, o deputado Charles Boysset, relator da commisso que deu parecer contrario proposta de Bardoux, quando escrevia que aquelle systema eleitoral no tinha honrosos precedentes; e ainda menos feliz quando a paixo e o interesse partidario o levavam injustia de dizer que a assembla de 1848 era mediocre de espirito e de corao! A grande voz de Gambetta vingou nobremente a memoria da revoluo de 1848 n'estas eloquentes palavras: A assembla constituinte d'esta epocha est acima de todas as aggresses e de todas as criticas, quer se falle do seu corao, quer do seu espirito. Todos podem julgar, sua vontade, o corao das assemblas, mas o brilho do talento, o prestigio dos caracteres... Qual o talento, o genio, o illustre homem politico que no tinha logar na assembla de 1848, com excepo do sr. Guizot? Eu vejo-os ahi todos. A sua politica pertence s disputas dos homens, mas no o ascendente do seu espirito, da sua auctoridade. Eu creio que, depois da Conveno, a assembla de 1848 a maior que a Frana tem na ma historia. A camara de Versailles no merecia ao eminente orador uma phrase de rehabilitao; mas, n'um dos mais distinctos movimentos da sua eloquencia, o suffragio universal e a lista multipla ficaram salvos d'essa prova, pela reaco que logo operaram contra as suas proprias fraquezas. Os adversarios da proposta de Bardoux no podiam sustentar-se dignamente n'este campo. O voto plurinominal, segundo [14] o espirito d'aquella proposta, vulneravel em alguns pontos, mas, como logo veremos, no se lhe pde negar a qualidade de ser, mais que outro qualquer systema, favoravel formao de assemblas fortes pelo seu pensamento politico e luzidas pela distinco intellectual dos seus membros. E esta qualidade, sempre consideravel, hoje preciosissima, porque os deveres da civilisao, instantemente reclamados em toda a parte, s podem ser satisfeitos por situaes politicas muito definidas e muito vigorosas. Na nossa prtica constitucional foram j adoptados os dois regimens. Estabelecida a eleio directa, comeou-se pela lista multipla. Consagra este systema eleitoral o decreto de 30 de setembro de 1852[8]. Durou sete annos este regimen, que no pde resistir valente opposio que lhe fez Jos Estevo. A lei de 23 de novembro de 1859 foi inspirada por este glorioso orador, [15] que, d'essa vez, desserviu um pouco a liberdade que elle tantas vezes honrara com o seu talento e com o seu caracter, porque no pde prever que o systema de 1859 ainda havia de produzir peores resultados, muito peores, do que o de 1852. No relatorio do projecto, que se converteu n'aquella lei, diz-se: A commisso adopta o principio dos circulos pequenos, propondo um s deputado por cada circulo. Buscando assim a unidade e a verdade da representao, e procurando obter a expresso genuina de todas as opinies e conveniencias das povoaes, considerou a commisso que os interesses locaes so distinctos, mas no contrarios ao interesse geral, e que este no pde compr-se seno da somma de todos aquelles. E com estas poucas idas, variadamente paraphraseadas nas duas camaras, correu toda a discusso d'um projecto importantissimo, que interessava propria existencia da liberdade, porque esta tem, com o suffragio politico, a mesma estreita relao que as funces vitaes tem com os seus respectivos orgos! Estudada nas sesses das camaras, aquella discusso d'uma esterilidade absoluta. No ha alli um argumento estatistico, uma considerao pratica, uma alta theoria, a comprehenso, por qualquer modo manifestada, de que se questionava o mais momentoso assumpto que pde ser sujeito a assemblas politicas. Passou-se d'um para outro regimen eleitoral, sem que o systema revogado fosse convencido da sua iniquidade, e o que vinha substituil-o recebesse a calorosa consagrao que os amigos da liberdade offerecem sempre s novas frmas d'este augusto principio. Pois na camara, [16] que votou a lei de 23 de novembro, estavam os eloquentissimos oradores Jos Estevo e Rebello da Silva, e batia o corao do sincero democrata F. Coelho do Amaral! IV Prefiro a lista multipla votao uninominal. Aquella tem para mim a preciosa vantagem de restringir a extenso do suffragio e de realisar, pela melhor frma, a votao em dous grus, no como ella proposta em theoria e tem sido praticada em todos os paizes, mas de modo inverso: collocando n'uma especie de assembla primaria os eleitores influentes, os que constituem a parte pensante da sociedade, e deixando aos outros a mera confirmao da escolha feita. Sei que esta opinio irrita as coleras de todos os visionarios do suffragio directo, os quaes acham delicioso zelar e defender, no conforto do gabinete, os direitos da multido, salva sempre a disposio de sacrificar esses direitos na primeira opportunidade que apparea; mas eu procuro uma soluo pratica, e o que menos contribue para isso o platonismo de publicistas que, a despeito das mais rudes lies da experiencia, continuam a considerar o povo uma abstraco, e a recortar n'esta abstraco os caprichosos arabescos da sua phantasia. Se admitisse a realidade d'uma ligao moral entre os eleitores e os seus representantes; se no soubesse que entre uns e outros s raramente se produz uma relao politica, [17] no mais nobre significado d'esta phrase; se a observao quotidiana no estivesse ahi a mostrar aos mais refractarios que a grande maioria dos cidados ignora sempre as qualidades, os precedentes e os intuitos dos candidatos que elege; se fosse possivel alterar, dentro de curto praso, as condies mentaes da turba, que no sabe, nem quer saber, os rudimentos da boa educao civica; se no fosse vo e esteril todo o proposito de levar, pelos processos usados, consciencia do povo a luz dos seus deveres e a dignidade dos seus direitos--ainda poderia hesitar entre os dois systemas. Mas como voaram, ha muito, as douradas illuses com que o meu espirito se creou, e me parece que perfeitamente legitimo tirar de situaes defeituosas o maior partido possivel, entendo que, vista a impossibilidade de realisar no maior numero de individuos a inteno do voto, deve este servir a mais alguma cousa do que ao triumpho inglorio das insignificancias locaes, ou s predileces dos governos, as quaes recem quasi sempre em amigos pessoaes e partidarios accommodaticios, e lanar-se mo da lista multipla, que no pde, certo, photographar as feies miudas da sociedade, mas desenha as linhas principaes da sua physionomia politica. No infallivel este meio. Em determinadas circumstancias pde ser inefficaz para a formao de uma boa assembla politica; e um exemplo recente, a camara franceza de 1871, prova d'isso. Cau o imperio nas ignominias de Sdan; os deputados de Paris, tendo sua frente o general Trochu, assumiram o governo provisorio e deram brilhantes manifestaes do seu patriotismo e da sua coragem; fieis s suas tradies, despertadas em 1869 por uma celebre proposta [18] de Ferry, Gambetta e Arago, os homens que tinham a responsabilidade da situao reviveram logo a lista multipla, suspensa desde 1852; no havia razo para invocar as obliteradas tradies do velho regimen; a despeito da violenta compresso exercida sobre o movimento democratico nos vinte annos precedentes, a corrente das idas modernas tinha engrossado de dia para dia; tudo parecia indicar que a urna, abandonada sua espontaneidade por expressas recommendaes de F. Herold, o honrado ministro que presidiu ao acto eleitoral, consagraria definitivamente a republica como frmula comprehensiva de todas as aspiraes politicas... Pois o que aconteceu foi exactamente o contrario de quanto se esperava: os elementos reaccionarios apparecerem em grande maioria; o partido republicano, com que a Frana se encontrava na hora da desgraa, foi o menos considerado pelo suffragio universal! As angustiosas circumstancias em que estava, aquelle paiz explicam sufficientemente este phenomeno sociologico. O desejo da paz era o mais forte sentimento que dominava os espiritos; os republicanos, talvez pela vehemencia com que tinham dirigido a sua recente opposio ao imperio, passavam na opinio geral por demasiadamente insoffridos, e, por tanto, perigosos n'aquella difficillima conjunco. Por outro lado, os exercitos allemes pesavam ainda, como um castigo e uma ameaa de ferro, no solo da Frana, e o delirio communalista, que era o exaggero d'uma ida, levava naturalmente aos extremos da reaco contra tudo o que de algum modo se assimilhasse a essa ida, na essencia ou na frma, de longe ou de perto, na realidade ou no nome. [19] A lista multipla serviu situao moral d'aquelle momento. Traduziu com fidelidade um estado mu, que ella no podia alterar nem substituir por outro. E, vistas as cousas d'este modo, a assembla de 1871, condemnada ao infortunio de se reunir por graa e sob a inspeco do vencedor, na phrase de L. Blanc, no razo plausivel contra o systema eleitoral que a formou. Diz-se contra este systema que elle a negao do suffragio universal directo, porque a incidencia do voto tem de ser regulada, forosamente, por grandes commisses centraes do governo e da opposio; que rompe a intimidade do eleitor com o seu representante; que favorece os abusos do poder, e permitte, sob apparencias parlamentares, os maiores excessos da dictadura. Vejmos o que estes argumentos valem. Contra elles opponho desde j a affirmao de que, com a representao das minorias[9], a lista multipla o menos inconveniente [20] de todos os regimens applicaveis a um Estado unitario,--e de que, ainda sem aquella representao, preferivel a outro qualquer systema. V O que fica dito nos numeros precedentes bastante para annullar a preoccupao do suffragio directo, que avulta em todos os defensores do voto uninominal. O suffragio no , em caso algum, verdadeiramente directo, se esta phrase significa a aco immediata e a inteno conscienciosa do eleitor no exercicio da sua liberdade politica. [21] Em circulos de um s deputado, ou em districtos de muitos, a maioria dos cidados determina-se por motivos completamente extranhos inspirao do seu direito, porque esta inspirao no possivel na cerrada ignorancia e na invencivel dependencia das classes inferiores. Isto evidente a todas as luzes; uma verdade de applicao geral a todos os povos, no lhe escapando a propria Frana, que tem por si a vantagem d'uma mais adeantada cultura, e o effeito inapagavel da sua educao revolucionaria. L, como em toda a parte, o povo esta grande classe operaria, numerosissima, que trabalha para viver, sem se importar muito com quem governa, confundindo as cres das bandeiras politicas, e fazendo do seu voto um presente de favor ou um objecto de mercancia. No podia ser d'outro modo. Que interesse pde ter o eleitor em decidir com um acto da sua vontade questes que no conhece, e julgar homens que incompetente para apreciar? O suffragio directo , pois, uma illuso, uma mentira, a hypocrisia da lei, que se contenta com a apresentao da sua letra, e no se importa para nada com a sophismao do seu espirito. Considerados, sob este aspecto positivo, os factos eleitoraes de todos os paizes, qual d'estas duas solues melhor: deixar merc de pequenos interesses pessoaes e locaes a faculdade de que a lei investe o povo, ou organisar o suffragio de maneira que essa faculdade tenha de ser movida por mais elevadas causas, quaes so o prestigio d'um partido e a influencia d'uma doutrina? esta a melhor soluo. Os principios tomam o logar aos [22] individuos; o espirito do eleitor sobe da confiana absoluta n'um homem comprehenso de que alguma cousa mais importante depende do seu voto; os cidados intelligentes, verdadeiramente interessados nos negocios publicos, tm uma area mais larga para o exercicio dos seus direitos; estabelecem-se correntes de idas e de factos em que podem colher ensinamento e lio os que so capazes d'isso; e n'estas condies sempre o voto dos eleitores, consciencioso ou no, serve elevao de homens distinctos, collocados maior luz pela fama do seu merecimento e pelo respeito do seu partido. Com a lista multipla vem a necessidade de commisses politicas, que discutam e escolham os nomes mais prestigiosos, combinem as influencias locaes, aconselhem e dirijam todo o movimento. isto uma objeco vlida contra a lista multipla, como pretendem os defensores do outro systema? Pelo contrario. Fica o suffragio popular com o que elle mais precisa: uma grande escola; advem aos partidos uma nova fora, que elles, em geral, s teem no nome: a fora da disciplina. No se comprehende o horror que muita gente professa pelas grandes commisses directoras dos partidos, quando essa mesma gente v, sem magua, as que disputam o ascendente eleitoral no espao breve e fechado d'uma pequena localidade; e no se comprehende porque, em primeiro logar, o systema da lista multipla no inutilisa as influencias que so legitimas, mas aproveita-as n'um sentido impessoal e mais nobre,--e depois claro que aquellas commisses, no seu proprio interesse, ho de mostrar-se determinadas por [23] motivos dignos da ampla discusso a que esto sujeitas, e da grave responsabilidade que assumem. No ha vida publica, elevada e digna, sem partidos fortemente organisados. Quando a opinio anarchica, sem principios certos e indicaes positivas, o governo fatalmente pessoal, sem culpa sua, por necessidade das cousas. Tudo o que possa dar coheso e nervo disciplina dos partidos por tanto de aproveitar a bem da liberdade e da ordem, principalmente da ordem, porque, segundo um profundo conceito de Augusto Comte, por esta que mais hoje se deve receiar, sendo, como , a liberdade um facto radicado nos costumes e, de todo o ponto, superior a quaesquer tentativas para o annullar. No indifferente organisao dos partidos o modo de fazer as eleies. Tal systema pde inutilisar todos os esforos politicos, por melhor commando que tenham; outro, pelo contrario, liquda e apura com verdade, pelo menos aproximada, as foras compromettidas n'uma lucta eleitoral. Na vigencia do primeiro, produzem-se a inaco e a indifferena; sob garantia do segundo, a actividade politica multiplica os seus meios de propaganda e de combate. Parece-me que, dos regimens usados e conhecidos, a lista multipla o mais adequado a fomentar e entreter nos partidos o seu espirito de disciplina. Este regimen importa uma certa centralisao eleitoral, e sem esta no ha, como no ha no governo sem centralisao politica, a energia que convem pratica de principios que ho de soffrer opposio, e realisao de actos que teem de ser contestados. Com o voto uninominal frequente a imposio feita aos [24] chefes dos partidos, supremos representantes da sua dignidade e da sua fora, pelas influencias locaes, que fazem questo d'uma pessoa, recusam toda a transaco proposta, e reclamam ainda o que julgam preo devido pela sua dedicao, que no passa de miseravelmente egoista. No outro systema taes intransigencias seriam quasi sempre impossiveis por virtude d'este dilemma: sujeio ao pensamento geral do partido, ou perda dos votos dissidentes. Como esta soluo difficilmente encontraria seguidores, aquella viria a vingar, e, com ella, o maior lustre da vida publica, que est, evidentemente, em substituir as mediocridades, que o favor ou a dependencia dos vizinhos eleva s assemblas legislativas, pelos talentos mais prestimosos e pelos mais veneraveis caracteres que sustentam e brazonam as aggremiaes partidarias. No falta quem, por uma notavel inverso das observaes mais repetidas, desconhea aquella vantagem da lista multipla, e at lhe faa cargo de favorecer a elevao de insignificancias politicas, que s valem porque a opinio, n'um dos seus movimentos mais imprevistos e menos reflectidos, lhes pe os nomes no primeiro plano. N'esta falsa preoccupao escreveu o duque de Broglie[10]: um meio (a lista multipla) de dar ingresso no parlamento aos corypheus do jornalismo, s reputaes de coterie, a estes idolos de uma popularidade factic ......Buy Now (To Read More)

Product details

Ebook Number: 41293
Author: Cândido, António
Release Date: Nov 5, 2012
Format: eBook
Language: Portuguese

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