A Casa dos Fantasmas - Volume II

A Casa dos Fantasmas - Volume II

A Casa dos Fantasmas - Volume II - Episodio do Tempo dos Francezes Title: A Casa dos...
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Author: Silva, Luiz Augusto Rebello da,1822-1871
Format: eBook
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Author: Silva, Luiz Augusto Rebello da,1822-1871
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Language: Portuguese

A Casa dos Fantasmas - Volume II - Episodio do Tempo dos Francezes

Title: A Casa dos Fantasmas - Volume II Subtitle: Episodio do Tempo dos Francezes Author: Luiz Augusto Rebello da Silva Release Date: September 13, 2008 [EBook #26605] Language: Portuguese Credits: Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net Nota de editor: Devido quantidade de erros tipogrficos existentes neste texto, foram tomadas vrias decises quanto verso final. Em caso de dvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrar a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Set. 2008) OBRAS COMPLETAS DE LUIZ AUGUSTO REBELLO DA SILVA XII VOLUMES PUBLICADOS I Russo por homizo II Odio velho no cana (1.) III Odio velho no cana (2.) IV A Mocidade de D. Joo V (1.) V A Mocidade de D. Joo V (2.) VI A Mocidade de D. Joo V (3.) VII A Mocidade de D. Joo V (4.) VIII A Mocidade de D. Joo V (5.) IX Lagrimas e thesouros (1.) X Lagrimas e thesouros (2.) XI A Casa dos Fantasmas (1.) XII A Casa dos Fantasmas (2.) XVI OthelloAs redeas do governo XVII A mocidade de D. Joo V (drama). XVIII O amor por conquista (comedia)O Infante Santo (fragmento). XIX Fastos da Egreja (1.) XX Fastos da Egreja (2.) XXI Fastos da Egreja (3.) XXII Fastos da Egreja (4.) obras completas de luiz augusto rebello da silva revistas e methodicamente coordenadas XII ROMANCES E NOVELLASV A CASA DOS FANTASMAS EPISODIO DO TEMPO DOS FRANCEZES 2. EDIO VOLUME II LISBOA Empreza da Historia de Portugal Sociedade editora LIVRARIA MODERNA R. Augusta, 95 | | TYPOGRAPHIA 45, R. Ivens, 47 1908 A CASA DOS FANTASMAS I Quando Deus queria... do norte chovia A procisso do Corpo de Deus, em Lisboa, era talvez a festa religiosa mais solemne da cidade. Nossos avs, e sobre tudo nossas avs, preparavam-se para ella mezes antes, e nas vesperas do grande dia as costureiras, os alfayates, e os cabelleireiros viam-se doidos com as impertinencias, recados, e instancias. que todas as sumptuosidades da mobilia, toda a prata mareada das baixellas, todo o recheio das arcas e armarios tinha de apparecer e luzir n'aquella bem vinda festividade, que abria as portas das casas e o seio das familias a uma verdadeira inundao de visitas, de conhecidos, e de curiosos. As janellas das ruas, por onde passava o prestito do bemaventurado S. Jorge, santo cavalleiro e general ao servio de Portugal desde os tempos heroicos de el-rei D. Joo I, em odio a Castella e como pirraa ao senhor Santiago, convertiam-se em outros tantos camarotes armados de sanefas e listes de purpura nas vergas [6] e ombreiras, forrados de colchas da India e de cobertas de seda da China. O copo de agua, que era costume offerecer aos convidados, despejava as lojas mais sortidas dos confeiteiros e conserveiros da moda. O jantar, ao qual se assentavam os hospedes mais aceitos, s com a vista fartaria a gula mais faminta. As galas devotas espertavam a emulao, e as bolsas mais discretas e apertadas no se negavam por excepo aos maiores sacrificios para que vestidos, joias, e toucados brilhassem ao menos uma vez no anno com esplendor digno da vaidade e ufania de seus donos. Instituida por Urbano IV, em 1264, na primeira quinta feira depois da festa da Trindade, afim de solemnizar o culto particular do Santissimo Sacramento, confirmada e ampliada por muitos Papas, a procisso do Corpo de Deus fra sempre feita em Portugal com fausto e invenes notaveis nas terras principaes do reino. O brutesco acompanhamento, que a seguia na meia edade, e ainda no seculo XVI, tornava-a ao mesmo tempo um acto religioso e um espectaculo profano. A imaginao popular de nada se esquecia para que ella fosse unica e singular pela extravagancia das figuras e pela riqueza ostentada pelas corporaes mechanicas em competencia e rivalidade umas com as outras. As naus e gals dos carpinteiros e calafates da Ribeira das naus, os anjos e gigantes dos merceeiros e boticarios, a torre e a serpe dos alfayates, o sagitario dos armeiros, uma nuvem de demonios de todos os feitios, e mil outras representaes entresachadas de danas e folias, no meio das musicas mais desvairadas e dos instrumentos mais oppostos, como gaitas de folles, tambores, pandeiros, violas, cros de donzellas, flautas, e doainas pastoris, tudo isto [7] compunha, variava, e confundia o cortejo, o qual consumia quasi o dia todo nas ruas apinhadas de povo, e alegradas de alecrins e rosmaninhos. O senhor D. Joo V, o Salomo portuguez, creando a patriarchal em 1717, no omittiu em sua liberalidade a festa mais pomposa da crte, e com espiritos regiamente devotos modificou o plano e accessorios da famosa procisso. Este grande acto inspirou a um dos mais respeitosos admiradores do prodigioso genio de sua magestade, a um dos eruditos irmos Barbosas, um volume em folio de 240 paginas, obra monumental, que attesta ao mesmo passo a importancia do assumpto e a profunda philosophia do auctor. N'este livro, curioso em muitos trechos pelas noticias, que encerra cerca da capital nos principios do seculo XVIII, veem narradas com escrupulosa miudeza as circumstancias, que mais preocuparam o augusto reformador e os seus conselheiros circa sacra. El-rei com mo firme supprimiu do solemne acto as figuras, e as danas, mas empalideceu talvez com o arrojo. O golpe era temerario. O povo a tudo indifferente, em materia de recreao ao Divino era zeloso e irritavel como um tribuno da plebe dos nossos dias. As chacotas, os andores, o baile das espadas, e a folia dos moleiros, por entre as visagens dos diabos sarapintados, e os uivos e bramidos das fras de papello, serviam-lhe de opera comica, e foi necessaria grande firmeza de vontade, e toda a sabedoria de sua magestade, instruida pela sua larga experiencia das confrarias e irmandades, para o obrigar a contentar-se com os arcos, medalhas, columnas e louros, que ornavam o pao e as ruas do transito, e com a magra e dolorosa substituio de um anjo vestido de brocado, [8] com suas azas de cambraia tesas de gomma e chapins altos, unico personagem, que sobreviveu de todos os vistosos e engraados momos, que distraam d'antes a procisso com seus esgares e jogralidades. A ausencia da crte e da nobreza, a tristeza impaciente causada pelo jugo estrangeiro, e o receio, que vozes vagas faziam conceber de alguma exploso popular, no diminuiam, apesar d'isso, o alvoroo, nem a concorrencia. No palacio do governo as apprehenses eram mais vivas. Lagarde recebia de momento para momento avisos assustadores, e lia-os sobresaltado aos collegas. Herman meneava a cabea com ar incredulo. Junot sorria-se e encolhia os hombros. A frivolidade do seu espirito e os arrebatamentos do seu genio no lhe offuscavam todavia a penetrao natural. Conhecia e despresava as murmuraes do vulgo, e confiava no seu valor, e no das tropas que lhe obedeciam. Sabia que as linguas e as ameaas eram mais intrepidas, do que as aces. Alm d'isto o plano innocente dos honrados conspiradores de toga e rabicho tinha ferido o seu amor proprio, e por nenhum caso admittia que se julgasse, que elle queria furtar-se s ciladas e assaltos theoricos do Conselho Conservador. O perigo, exclamou, depois de larga discusso, vem do mar com os inglezes; est nas serras e desfiladeiros do norte com os camponezes armados! O que rosnam, ou vociferam aqui mercieiros obesos, frades apopleticos, e desembargadores tropegos, no vale uma escorva. O galope de um esquadro seria de mais para os metter pelo cho abaixo. Lisboa no Paris. Lagarde suspirava, o ministro da guerra e da marinha limpava os vidros dos oculos, e o conde da Ega affectava ar heroico para no desmentir o elevado conceito, que suppunha [9] merecer ao duque de Abrantes. O conselho dilatou-se, e terminou j pela noite dentro, dois dias antes da ceremonia, com uma transaco digna da prudencia insidiosa do intendente geral da policia. No podendo alcanar que a procisso no saisse, Lagarde obteve ao menos que Junot a no acompanhasse, pegando s varas do pallio, mas que se resignasse a vel-a passar da varanda do palacio da inquisio para, dizia o astucioso magistrado, no estimular a saudade e o ciume dos portuguezes, os quaes de certo se aggravariam se elle occupasse o lugar do principe regente e os ministros francezes o dos fidalgos expatriados! O general em chefe resistiu, porm cedeu. Receando que o accusassem de um rasgo de vaidade nescia, e que a ostentao da sua pessoa dsse armas aos inimigos, no podia negar, egualmente, que, fra do cortejo, lhe seria mais facil accudir para atalhar qualquer emoo provocada entre as multides, que se acotovellavam, riam, e chasqueavam nas praas, e travessas da capital. Dispostas assim as cousas, amanheceu o appetecido dia. Os regimentos francezes s quatro horas da madrugada formaram no Passeio publico, e a alegria marcial das musicas annunciou cidade a grande solemnidade. Os raios do sol principiavam a beijar as grimpas dos telhados e as cruzes dos campanarios. As senhoras, que mal tinham repousado, sentadas em cadeiras, para no arrepiarem a symetria laboriosa dos toucados, comeavam a enfeitar-se com as ricas modas escolhidas para esta occasio. As janellas, armadas como templos, guarneciam-se de damas e cavalheiros, mais curiosos ainda de se mostrarem, e de serem vistos, do que de gozarem o espectaculo, que servia de pretexto reunio. Nas ruas, areadas e cobertas de espadanas e [10] flores, enxameiava com zumbidos cada vez mais fortes a primeira irrupo de abelhas matutinas, sada do cortio popular com os arreboes da aurora. A vstia de abas e o calo curto do saloio contrastavam tanto com a jaqueta de ramagem do campino, como o leno e a capa das mulheres da cidade com as roupinhas a saia vermelha, e a carapua das matreiras filhas de Friellas e Alcabideche. A pouco e pouco os enxames engrossaram, as mangas de povo cresceram, os zumbidos converteram-se em borborinho, e por entre as alas de tropas postadas desde S. Domingos at ao Terreiro do Pao, entrou a avultar, colleando similhante a serpe gigantesca e monstruosa, o immenso concurso, que esperava a procisso, e cujo sussurro perenne era cortado, ou avivado a miudo, por vaias brutescas, por estridulos preges, e pelas corridas e contendas de algum Ado menos soffrido, que os gritos e queixas da sua Eva expunham aos apupos e sorriadas da plebe. Os repiques festivos dos sinos nas torres das parochias e conventos despenhavam sobre a cidade um verdadeiro alarido de notas metalicas, imitando com arte mais, ou menos boal os cantos e melodias em voga nas serenatas e nas operas. A esta matinada pouco harmoniosa, e asss impertinente, rebate estrondoso do sagrado alvoroo das freguezias e communidades, respondiam as salvas do castello, dos navios, e das fortalezas. O jubilo espiritual da populao traduzia-se em pragas, exclamaes, e algazarras, em que no eram poupados pelo patriotismo escandecido dos zelosos os soldados de Napoleo, firmes e silenciosos como estatuas em seus pedestaes. Rebentaram gritos de alegria, moveu-se maior tropel de povo, e ondas encontradas, impellindo-se e remoinhando no adro de S. Domingos [11] e no Rocio, deram o signal de que o prestito transpunha, emfim, os umbraes do templo. As bandeiras dos officios, na figura de grandes paineis suspensos de cordes de seda em compridas varas, tremulavam na testa do cortejo, representando entre ricas bordaduras a ouro e preciosas tarjas as imagens dos santos, que em sua vida haviam exercido o trabalho manual, de que eram advogados e protectores no paraizo. Atraz das bandeiras, oscillando sobre um formoso cavallo branco, vinha o vulto equestre de S. Jorge, precedido de trombeteiros montados e de tambores a p, entre a furia sonorosa dos clarins e atabales. Um homem d'armas, robusto comparsa alugado para queimar dentro de uma pesada casca de ferro o sangue e a corpulencia, erguia o guio do cavalleiro santo sobre a lana, capitaneando, meio suffocado e tonto de vertigens, o vistoso apparato dos cavallos da casa de Bragana ricamente ajaezados, e levados mo pelos moos das cavalharias reaes. A imagem de S. Jorge vestia arnez, coxotes e grevas, e trazia na cabea o gorro de velludo, que em tempos mais ditosos adornavam os diamantes do duque de Cadaval. Um pagem enfeitado de vistoso cocar de plumas, quasi to alto como elle, acabava de figurar a fico das emprezas militares do glorioso general, que nunca vira os campos de batalha portuguezes, por que nunca pelejou contra os inimigos da f, ou da independencia na Peninsula. Seguiam-se as irmandades de Lisboa e do termo, os servos das diversas confrarias, e os farricoucos, amortalhados em hollandilhas da cabea at os ps, todos sequiosos de alardearem sua compunco anonyma. Eram perto de cem as irmandades e confrarias, que desfilavam [12] em passo grave com suas tochas na mo e suas opas de variadas cres, trocando em voz baixa de umas para outras censuras e chascos nada caridosos cerca do numero, ou negligencia de seus irmos em Jesus Christo. No couce d'estes virtuosos auxiliares do altar, com os olhos baixos, e ademanes reverentes, caminhavam as communidades, Franciscanos, Ordens Terceiras, Trinos descalos, Agostinhos, Carmelitas, Capuchos, Capuchinhos, Arrabidos e innumeros outros ramos da frondosa arvore monastica, cujo tronco brotado da piedade e munificencia dos soberanos era alimentado pela devoo, ou pelos remorsos dos fieis. Transparecia o orgulho beato da santidade no rosto de muitos d'elles. Os religiosos de S. Domingos fechavam a rectaguarda da sacra milicia. Depois dos monges e mendicantes comeava o clero regular, e apoz elle, debaixo da cruz patriarchal, todo o clero secular, os padres da congregao de S. Filippe Nery, os das Misses, e os parochos, curas, e presbyteros das freguezias de Lisboa, conegos, e as dignidades, e a curia ecclesiastica. Rematavam o longo e estendido sequito os conselhos e tribunaes da crte, os fidalgos que residiam em Portugal, e os cavalleiros das ordens militares. As varas do pallio pegavam as pessoas mais nobres e conspicuas por sangue, empregos, e representao. Havia tres horas, que a procisso andava fra, e ainda nenhum tumulto, ou perturbao justificra os presentimentos sinistros da policia. O povo olhava com enlevo para tudo, ajoelhava e batia nos peitos, e limitava a maldies abafadas a sua averso aos francezes. Junot, que assistia da varanda do palacio do Rocio ao religioso acto, e cujos olhos indagadores no cessavam de espreitar o menor indicio [13] de agitao, vendo tudo sereno e socegado, e os maus prognosticos desmentidos, ria-se j sem disfarce dos receios do intendente Lagarde, e perguntava-lhe em ar de mofa pelo nome dos malsins assustadios, que tinham inventado a conspirao, talvez para os promover na falta de concorrentes ao logar, ainda vago, apezar da sua proclamao, de Cames do reino do Algarve! De repente o duque de Abrantes suspendeu-se. O riso gelou-se-lhe nos labios. Herman, que estava sua direita, enfiou; e Lagarde, crescendo sobre os aprumados collarinhos, dilatou o pescoo fra da gravata. Um olhar, em que se retratava ao mesmo tempo o receio e o triumpho fez comprehender em sua muda eloquencia ao general em chefe, que se rira cedo de mais da infallibilidade da policia. O que succedia, porm, n'este momento para assim mudarem de subito as scenas e as phisionomias? Estlara a revoluo promettida? Tinham os conspiradores denunciados deixado cair a um signal, como no theatro do Salitre o imperador Jos II, as becas, as capas, os habitos, ou as sotainas, e appareciam metamorphoseados em actores de novas e segundas vesperas sicilianas? Ninguem podia dizer ainda. Da varanda de pedra, Junot e o seu cortejo viam e ouviam o tumulto, sentiam-n'o avultar, mas ignoravam as causas e os incidentes. As bandeiras dos officios dobravam j com todo o socego da rua Augusta para a rua do Ouro, dando a volta pelo Terreiro do Pao, e o pallio e o Sacramento saam da egreja de S. Domingos, quando uma furiosa vaga de povo, encapellando-se inopinadamente, investe com o corpo da procisso na rua Augusta, envolvendo e afogando em suas ondas loucas as confrarias e communidades, derruba tudo [14] no impeto irresistvel, corre infrene como inundao despenhada, como furaco vertiginoso, e por cima de todos os obstaculos galga invencivel at ao Rocio, aonde, similhante a rio caudaloso que se precipita, rasga por entre milhares de vultos o seu caminho! No meio da praa esta onda, repellida pela corrente opposta, golfada das portas de S. Domingos, v-se entalada sem poder avanar, ou recuar, lucta com esforo desesperado, e por fim, semeando o terror e o espanto por toda a parte, vae acabar de se desfazer em redemoinhos, ou em pinhas oscillantes, que se quebram, e renovam entrada das ruas e travessas por onde as multides se escoam, fugindo feridas de demencia. Os clamores, os gritos de angustia, as interjeies de pavor cortam os ares, e ensurdecem os ouvidos. Mulheres e crianas arrastadas no tropel, meio suffocadas, pallidas e quasi moribundas, alam em vo os braos supplicantes, e desapparecem perdidas depois nos rolos, que se ennovellam e arremessam a cada passo. A tropa, cujas alas vergam e se rompem com o embate da plebe, cortada em todos os sentidos, e debalde tenta reunir-se. Os artilheiros desordenados cedem e desamparam as carretas. Colhida no centro do bulco popular, a procisso rota e dispersa em mil fragmentos, que vozeam e se revolvem, como troos semi-vivos de um reptil, alastra as ruas de cruzes, de tochas, e de insignias, calcadas por milhares de ps. Frades, padres, magistrados, cavalleiros, irmos, e penitentes bradam, imploram, atropellam-se, e ora dobados no ar, ora estatelados em terra, lividos, moidos, e descompostos pelejam por se arrancarem a este pelago tempestuoso, em que abafam, buscando [15] por similhante forma refugio contra o perigo. O prelado, que trazia a custodia, e o pomposo sequito que rodeava o pallio, v de repente a praa tornada um mar procelloso, e ouve sobre o clamor geral as vozes dos officiaes francezes mandando carregar as armas guarda de granadeiros, e accender os morres aos artilheiros da bateria postada junto do adro. Attonitos e paralyzados um instante, o medo presta-lhes azas depois. Luctam, repellem-se, volvem a traz, e rompendo, como cunha viva, por meio da multido, que transborda do templo, vo cair uns sobre os outros de roldo na sacristia, deixando o pavimento juncado de thuribulos, de capas de asperges, de roquetes dilacerados, de chapus de plumas, e de mantos das ordens militares. A cavallaria de Junot une as fileiras. As largas espadas dos soldados reluzem por cima das cabeas com lampejos terriveis. O povo agglomerado, entre a muralha que o atira sobre os cavallos, e o terror das armas, que o ameaam, solta horriveis clamores, peleja por abrir passagem, e augmenta o ruido, o sossobro, e a confuso do tumulto immenso. No ha pincel, nem tintas que possam desenhar quadro to medonho! Os gemidos, os choros, as quedas, contrastam a cada minuto com os lances comicos e os episodios risiveis. O medo inspira os ardis mais burlescos. O desespero suggere os arbitrios mais violentos. As ruas e travessas proximas, similhantes a canaes rotos furia das aguas, engolem e despejam incessantemente os bandos variegados dos fugitivos, entre os quaes a egualdade do terror acotovella os commendadores e os togados com o operario, o frade e o farricouco pelo judeu transido, ou pela collareja [16] to veloz nos passos, como solta de lingua e prompta de gestos. Capotes, cabelleiras, chins, sapatos, abas de fardas e de casacas, canhes e gollas bordadas, lenos, cintos, farrapos, de todas as telas e de todos os matizes em fim, coalham este campo de batalha, aonde os mortos, felizmente, isto os que baqueiam, resuscitam logo ao beijarem o cho, e se levantam para disputar celeridade aos mais ligeiros. No meio dos alaridos e dos estrepitos, do centro d'este cahos ruidoso de furias, bramidos, e uivos bestiaes, vozes tremulas e roucas de susto, em perguntas e replicas instantaneas, exclamam confusas e lugubres: O terremoto! Os inglezes! As ruas minadas! II De um argueiro um cavalleiro As vozes, o espanto, o terror, e o tumulto das ruas, todas as apparencias, em fim, inculcavam a cidade sublevada e as apprehenses de Lagarde confirmadas. O denodo e a presena de espirito de Junot no o atraioaram n'este lance. Descendo os degraus da escadaria pressa, emquanto o intendente da policia se emparedava e calafetava no gabinete secreto, o duque de Abrantes atravessa intrepido por meio das ondas revoltas do povo, rompe pelo centro d'ellas at egreja, corre sacristia, e fora de estimulos e persuases consegue arrancar d'aquelle asylo pouco seguro o prelado e os sacerdotes, que tremem de medo, e que julgam chegada a sua ultima hora. Chamando depois os padres, os fidalgos, e os cavalleiros das ordens militares e animando-os com as palavras e o exemplo, diz-lhes: De que se receiam? O que temem? No estou eu aqui? No vem os meus soldados firmes? Continuemos a procisso. Recompondo, do modo possivel depois, o [18] prestito disperso manda sar o pallio, e acompanha-o a p com o seu estado maior. Patrulhas fortes circulam ao mesmo tempo, e dispersam os mais pequenos ajuntamentos. O regimento 86. marcha com tanta precipitao, que leva o po espetado nas bayonetas por carecer de vagar para comer o rancho! Qual fra, porm, a origem do estrondoso successo? Nascra de planos concertados pelos amigos da independencia, como cuidaram os francezes, ou rebentra espontaneo da agitao e do odio comprimido dos habitantes de Lisboa? Nem uma, nem outra cousa. Um gro de areia fez parar a roda. Um sopro desenfreou o temporal. A verdadeira causa do arruido colossal do dia 16 de junho de 1808 foi uma imprudencia policial do honrado sargento Cabrinha, e um esquecimento de lingua do seu virtuoso assessor Gaspar Preto, por alcunha o Sapo. Estes dois personagens, que no cabiam em si de vaidade, desde que os louvores do intendente geral da policia inflammaram o seu zelo pelo servio da sua magestade o imperador e rei, succumbiram um instante fraqueza dos grandes homens, e estiveram a ponto de fazer nadar a capital em sangue. Eis como se passou o notavel episodio. J sabemos que o Antonio da Cruz, o Manuel Simes da Aramanha, e o Joo da Ventosa, obedientes como bons patriotas s instancias do morgado de Penin, capito de milicias de Rio Maior, tinham feito a jornada de companhia, e por um triz no apanharam em Villa Franca o sargento e o seu ajudante, que partiam para os denunciar a Lagarde. Os tres em Lisboa alojaram-se em uma casa conhe J sabemos que o Antonio da Cruz, o Manuel Simes da Aramanha, e o Joo da Ventosa, obedientes como bons patriotas s instancias do morgado de Penin, capito de milicias de Rio Maior, tinham feito a jornada de companhia, e por um triz no apanharam em Villa Franca o sargento e o seu ajudante, que partiam para os denunciar a Lagarde. Os tres em Lisboa alojaram-se em uma casa conhecida do lavrador da ponte da Asseca, regalaram-se de bom vinho e de bons boccados, e esperaram resignados que a causa nacional [19] lhes pedisse o auxilio do brao ou do cajado. Na madrugada do dia da procisso, muito antes do sol fra, j o triumvirato ribatejano palmilhava as ruas com a curiosidade mais inoffensiva, e apenas se abriu a primeira taverna uma copiosa libao desjejura os tres vastos estomagos, montados em diamante. Comeou a concorrer gente, acabou a parada no Passeio publico, e desfilaram as tropas. Davam nove horas, e o fazendeiro da Aramanha, interpellando o Joo da Ventosa, perguntou alto aonde era o almoo, e se teriam tempo de o engulir antes da procisso? A resposta foi sumirem-se por uma travessa escusa, entrarem para uma especie de furna escura, immunda, e humida, e sentarem-se em mochos vacillantes roda de uma mesa, cuja toalha bem mostrava nunca haver deixado os lenoes de vinho. Chiavam as appetitosas iscas de figado, e o cheiro exhalado das enfumadas frigideiras convidava o olfato dos freguezes. Quando os tres se levantaram d'este banquete plebeo, a procisso andava j no Rocio, e o Deus Baccho tambem lhes fazia a elles mil travessuras na vista e no equilibrio. Metteram hombros ao aperto, foram rompendo a murro e a calcadellas, mas esquina da travessa da Assumpo encontraram resistencia tal, que se viram obrigados a ceder. As bandeiras dos officios fluctuavam nos ares, e uma linha cerrada de bayonetas, pouco condescendentes, no consentiu que os provincianos a atravessassem. O lavrador e seus amigos rosnaram algumas pragas, mas tiveram de as engulir em scco e de ficar. Antonio da Cruz, guapo e decidido, trajava bem suas galas domingueiras, e dava-se ares de moo mui desempenado debaixo das abas do chapu novo de Braga. Vendo-o assim alegre [20] e pimpo, meio encostado ao cajado, uma saloia, fresca e viosa como as rosas do campo, pediu-lhe licena de passar para deante afim de ver melhor, e o moleiro officioso fez-lhe logar immediatamente, acto de cortezia recompensado por um sorriso, que descobriu indiscretamente as trinta e duas perolas, que escondiam uns beios mais vermelhos, do que bagos de rom. Ao mesmo tempo o Joo da Ventosa e o Manuel Simes, encontrando-se hombro a hombro com um marchante conhecido, homiziavam-se com elle a furto no retiro de uma tasca chamada loja de bebidas, para onde os iniciados se introduziam por um corredor estreito, disfarado no fundo da entrada da casa, deante da qual se achavam. At aqui corrra tudo admiravelmente, mas o demonio depressa as arma. O sargento, o Sapo, e uma quadrilha de beleguins da policia seguiam de longe o triumvirato innocente, desde as portas do Passeio publico. Haviam-n'o perdido de vista, quando voz do almoo o robusto lavrador capitaneou a evoluo, que levra os convivas ao sujo templo, aonde o Comus enfarruscado das iscas os detivera duas horas. Cabrinha recebra ordem expressa de Lagarde de se apoderar dos tres amigos, e de os hospedar na cadeia, mas fra egualmente admoestado para obrar com finura e sem ruido. Era a razo porque no se atrevra a empolgal-os na rua, e no meio do povo, que seus gritos podiam alvorotar. Quando lhe desappareceram, como se a terra se tivesse sumido com elles, scismando um instante, disseminou logo depois a quadrilha em duas mangas. Uma partiu para o Rocio e foi postar-se esquina do arco do Bandeira. A outra conservou-se na rua Augusta, vigiando-a. O Sapo, trepado em um frade d, trepado em um frade de pedra, servia de vedeta. [21] O Antonio da Cruz estava todo embebido nos colloquios e requebros de seu galanteio com a saloia, quando sentiu de repente, que lhe batiam no hombro. Virou-se, e deu de rosto com um sujeito magro e grelado, de chapu arrombado, cales espigados, casaca de cr cambiante, e sapatos risonhos, que lhe disse muito manso ao ouvido, travando-lhe do brao. Est preso! Venha commigo. No faa bulha! Ao mesmo tempo outro escudeiro, baixo, rolio, olhos encarnados e chorosos, e nariz expansivo, cravejado de rubis assanhados, deitava-se-lhe ao outro brao, ao brao do cajado, pendurando-se quasi n'elle. N'um rapido relancear o moleiro descobriu a poucos passos, cozidos com as hombreiras da porta, por onde se tinham escoado os seus amigos, o sargento, o Sapo, e um terceiro quadrilheiro. Esta appario revelou-lhe que era serio o caso. Soltando um assobio forte e prolongado, signal aos companheiros para se juntarem e accudirem, o Antonio, sem accusar a inteno na physionomia, sem levantar voz, ou grito, por um movimento secco dos hombros saccudiu de si os dois malsins, e empunhando-os j no ar pela gola asss madura das casacas cossadas e transparentes, cuspiu-os das mos, colhidos em flagrante, cada qual para sua direco. Ao arremesso momentaneo, o homem esguio e grelado, por ser mais leve, subiu mais alto, e veiu car por elevao sobre as costas de um massio prebendado, com os olhos escudados de oculos e palla verde, o qual estava explicando a duas sobrinhas boqui-abertas a lenda aurea de S. Crispim, pintado na bandeira dos sapateiros. O agarrador, grosso e baixo, mais pesado, voou [22] rasteiro, deixando metade da gola, as costas, e uma aba da casaca no punho do moleiro, e foi bater, como pella despedida, no vulto enorme de certa dona viuva e namoradeira, notavel pelo toucado impossivel e alteroso, a qual occupava os ocios em tiroteio amoroso com um alferes da brigada da marinha, pessoa corpulenta, forosa, e de maus narizes, cuja carranca um par de bigodes hirsutos e alastrados tornava ainda mais temerosa. O prebendado com a pancada afocinhou o cho, no sem trazer comsigo tambem de golpe o tambor mr de um dos regimentos, que por acaso seus braos extendidos empolgaram na ancia de se amparar. O militar francez, verdadeiro Alcides, arqueava n'aquelle instante o corpo com donaire, e dobrado para traz, firme nas pontas dos ps, aparava com a palma aberta o couto do basto volteado com graa. A dona, impellida pelo esbirro-tortulho, soltou um grito agudo, desabando de chofre sobre o peito do seu Adonis. O volume era colossal, e o alferes desapercebido, no podendo suster de p posto o pezo d'aquella montanha de ternura, que em cima d'elle o alluia, apalpou a calada com as costas, mastigando uma blasphemia por entre as guias dos bigodes. O drama complicou-se ento. Advertido pelo signal, o Joo da Ventosa deixra em meio o monstruoso caneco de vinho de Torres, que saboreava, e saltou da tasca vermelho e inflammado. A primeira figura, com que a fortuna o obsequiou, foi a figura patibular do sargento Cabrinha, o qual primeiro se offereceu s iras do lavrador. Um murro capaz de fulminar um touro prostrou o espio sem sentidos sobre o lagedo. Nem o sacrificador, nem a victima tiveram tempo de proferir palavra. Ao mesmo tempo o marchante, que vinha atraz, [23] colleando os beios com a lingua, esbarrando com o quadrilheiro entufado em defeza do seu superior, despediu-o nos bicos dos sapatos, e remetteu-o ao meio da rua, aonde se espalmou sobre os ps gotosos de um frade arrabido, mestre e prgador, cujas rezas nasaes paralyzou o baque repentino. Finalmente, o Manuel Simes da Aramanha, que sara em ultimo logar, como homem de consciencia, porque no quizera deixar o copo cheio, encarando com o Sapo, que se fazia pequeno como um verme a ver se escapava, calado, mas terrivel de gesto, alongou o brao com a rapidez e a fora irresistivel da mola de ao, que resalta, e aferrando o aborto pela nuca, com um murro metteu-lhe os dentes e os queixos pelas guelas, e metade a rastos, metade por seu p, seguiu com elle atordoado e alagado em sangue o rasto dos companheiros. Os tres cortaram depois intrepidos pelo meio da procisso alvoroada, por entre as alas de tropa baralhadas, e pelo centro dos magotes de povo em remoinho, e entranhando-se por travessas e bccos desertos esquivaram-se modestamente aos justos applausos de suas proezas. Cabrinha tornando a si, e os beleguins moidos e estirados, soltavam gritos espantosos, bradando pelo soccorro da justia. Respondeu-lhes a bengala magistral do tambor mr, e a bainha de ferro da espada do alferes, vingando com raiva incansavel o riso e as vaias da queda desastrada no dorso dos delinquentes. O mais agil dos dois, o homem-grelo, fulo de dor, e cego de medo, para se furtar ao chuveiro de bastonadas, que no cessava de lhe afagar as costellas, atirou-se de um pulo, ao meio do prestito, abalroou um desditoso cruciferario banhado em suor, e encontrando-o em cheio, rolou com elle. Amotinou-se o [24] vulgo, ferveram juras, ameaas, e punhadas, e um patriota, que espreitava a occasio, lembrou-se de aular a desordem, exclamando: Fujam! fujam! Ahi vem os inglezes! No foi preciso mais. O espanto e o terror obraram prodigios. A multido precipitou-se, e o tumulto tomou as propores, que sabemos. Em quanto nos quarteires da cidade baixa se representavam estas scenas, corriam os tres auctores do motim direitos ao caes hoje chamado da Areia. Chegados em poucos minutos viram uma falua do Riba-tejo de verga de alto, e o arraes, seu conhecido, metteu-os dentro sem mais perguntas. D'ahi a pouco navegavam rio acima, e o Sapo, sempre hypocrita e vil, estorcia-se aos ps dos inimigos triumphantes, chorando e supplicando, com prantos mulhers! Mas o Manuel Simes apontava-lhe para a cicatriz da bala, com que o ferira ......Buy Now (To Read More)

Product details

Ebook Number: 26605
Author: Silva, Luiz Augusto Rebello da
Release Date: Sep 13, 2008
Format: eBook
Language: Portuguese

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