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Scenas Contemporaneas
Title: Scenas Contemporaneas Author: Camilo Castelo Branco Release Date: October 26, 2007 [EBook #23203] Language: Portuguese Original Publication: , Porto: Em Casa De Cruz Coutinho--Editor Rua Dos Caldeireiros N.s 18 E 20 Porto--Typographia De Antonio Jos Da Silva Teixeira, Rua Da Cancella Velha N. 62 1862 Credits: Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) SCENAS CONTEMPORANEAS. SCENAS CONTEMPORANEAS POR CAMILLO CASTELLO-BRANCO. 2. EDIO. PORTO: EM CASA DE CRUZ COUTINHOEDITOR, Rua dos Caldeireiros n.os 18 e 20. 1862. PortoTYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOS DA SILVA TEIXEIRA, Rua da Cancella Velha n. 62. MORRER POR CAPRICHO. I. Os meus amigos, de certo, no sabem o que caar coelhos na neve? No admira. Imaginem-se em qualquer alda, nas visinhanas do Maro. Olhem em redor de si, e contemplem o quadro que os viajantes na Suissa lhes descrevem todos os dias, supposto que nunca sahissem da sua terra. A primeira impresso que recebem a do assombro. Leguas em roda, nem na terra nem no co, se descobre uma crista de rochedo, a frana d'uma arvore, a dobra d'uma nuvem, que no seja branca, alvissima, desde um horisonte a outro horisonte. E, depois, ha ahi em toda essa natureza amortalhada um silencio funebre. No cantam as aves, no balam os cordeiros, no silva o buzio de pegureiro, no soam nas quebradas as campainhas da arreata de machos. Se ouvis um rugido assobiado ao qual respondem outros, no vos afasteis para longe da casa d'onde presenceaes, com o corao confrangido, esta scena. uma alcata de lobos, que descem famintos da serra, e [6] sero capazes de vos hirem buscar cozinha, onde naturalmente tiritaes de frio, sentados ao p do tro de carvalho. Fao-vos esta recommendao porque sois uns homens afeminados, que nunca sahistes dos sales, dos botequins, dos theatros, e das praas. Aposto que se desseis de face com um lobo, de garras arqueadas, e fauces inflammadas, antes que o lobo vos dsse o cordial abrao da fome, j vs tinheis perdida a sensibilidade, e consciencia da vida, e at o direito que todo o homem tem de matar no s o seu semelhante, mas at um lobo, em justa defeza! Se eu podesse contar com o vosso animo, aconselhar-vos-hia, que em uma d'essas manhs de neve, com meio covado de altura nos terrenos chos, tomasseis um cajado, e, com duas finas cadellas de coelho, fosseis dar na serra um passeio d'algumas horas. O peor que podia succeder-vos era o desvio do caminho, que s com muita pratica se acerta, e, quando mal vos precatasseis, resvalar n'um abysmo de neve, onde nem as orelhas de fra dissessem ao passageiro que um moo, a todos os respeitos excellente, fra alli absorvido por um sorvete dos que a natureza offerece aos amantes de refrescos, com menos economia que o Guichard. Afra este inconveniente, ainda ha o dos lobos, que muitas vezes tomam conta das nossas cadellas, devoram-nas com uma perfeio e rapidez fabulosas, e, quando Deus quer, fazem dos nossos corpos um supplemento nutritivo s nossas cadellas, deixando-nos a alma por muito grande obsequio. O terceiro percalo, affecto caa do coelho na neve, aconteceu-me a mim, ultimo dos mortaes, em 26 de Dezembro de 1844. o que tereis a bondade de procurar saber no capitulo seguinte.[7] II. Fui convidado por alguns amigos a acompanhal-os serra, porque o sol refrangia-se em scintillas na neve, que parecia desfazer-se em laminas de prata. Fui muito contente da considerao que se me dava, como caador, porque, em verdade vos digo, atirei com certeiro olho a perdizes e galinholas. Se nunca matei nenhuma, o que tambem verdade, deve-se pessima polvora das nossas fabricas. Em compensao, matei muito melro e tordo nas serdeiras, e consegui matar de noite uma coruja, africa que muitos caadores famosos de certo no fizeram. Eu fui um grande homem antes de escrever folhetins! Deus perde a quem me torceu a vocao! Eu podia, a estas horas, ser um habil corredor de lebres, e assim tornei-me a lebre dos galgos sociaes. Estes galgos sociaes, meu leitor, se tu s um d'elles, permitte-me dizer-te que tens o faro muito descaado, e que eu hei-de saltar por cima de ti, quando cuidares que me abocas. Se no s galgo, sensato amigo, aqui rasgo o diploma de tolo, que te concedi, sem te levar direitos de merc. Agora, vai entrar a historia direitinha at ao fim. III. Subimos esplanada da serra. Eramos seis. Dividimo-nos em tres grupos, e combinamos em nos darmos signaes com tiros no caso de nos perdermos encobertos pelo nevoeiro, que poderia de improviso esconder-nos[8]os cabeos das serras, unicas balizas que nos serviam de guia. Assim combinados, cada grupo, com dous ces, seguiu as pgadas dos coelhos impressas de fresco na neve. Eram muitos, e morriam pancada, porque os pobresinhos alapados debaixo das urzes, se fugiam, eram logo mordidos pelos ces; se esperavam eram apanhados mo. Alguns, mais previdentes, tinham emigrado para as fundas colheitas, formadas pelas sinuosidades interiores dos penedos agglomerados. A estes perseguia-os o furo, que eu levava no meu cacifo, desalapava-os, e os ces, farejando as avenidas da colheita, recebiam-os nos dentes, sacudiam-nos com o rancor do instincto, e atiravam-nos mortos aos nossos ps. Andamos assim uma hora, to entretidos, to esquecidos do mundo, que nunca to distrahida hora eu tive na minha vida, a no ser aquellas em que durmo, e sonho que hei-de tornar quelles meus dias de candura, depois de lidar muito com a innocencia d'estas angelicas creaturas, que vestiriam, por innocentes, como Ado e Eva, se a serpente lhes no dissesse que andavam indecentes. Ao cabo d'essa hora, toldou-se o ar, e cahiu uma segunda camada de neve. O meu companheiro quiz logo voltar sobre os seus vestigios, porque (dizia elle) d'aqui a minutos as nossas pgadas estaro cobertas, e no saberemos caminhar para o nascente nem para o poente. Eu, por ora, no voulhe disse eu. Porque? Estou bem aqui. Acho muita poesia n'este quadro. Imagino que esta chuva de neve se transforma em chuva de fogo... Este nevoeiro, que rola em ondas aos nossos ps, e sobre a nossa cabea, afigura-se-me o fumo do grande incendio no juizo final! Olha... no te parece que o vento espalha j as cinzas d'uma grande [9]cidade! No vs Sodoma l em baixo vomitando columnas de fumo?... Eu no vejo nada... Acho de muito mau gosto as tuas vises... vamos embora... Vai tu... e quando encontrares os nossos companheiros, d um tiro, que eu l vou ter. Estou bem aqui; no me mudo por cousa nenhuma. At logo. IV. E eu continuei a vr as minhas vises. Parece-me que, por esses tempos, fui poeta, muito poeta, em elevaes d'alma para cousas de imaginao, que no era esta fria imaginao, que tenho hoje. Absorvido no meu quadro do juizo final, que s uma phantasia abrasada poderia dar-me, transfigurando a neve em fogo, ouvi um tiro, e no fiz caso. Ouvi segundo, e senti um piedoso desdem por aquelles homens, prosa vil, que no tiravam partido do grandioso panorama, que a mo liberal da natureza desenrolava diante de meus olhos absortos. No sabeis que o nevoeiro embriaga? uma verdade. A cabea enfraquece; nos ouvidos ha um zunido, que vos faz perder o rumo. Sentis uma sensao desagradavel, semelhante do giro penoso em que a indigesto do vinho vos traz a cabea vertiginosa. Foi o que eu senti, quando me furtei s minhas contemplaes improprias do tempo e do lugar. Ergui-me, e no sabia j designar a direco que levra o meu companheiro, nem o ponto onde se deram os tiros. Desfechei a minha clavina, mas a humidade inutilisra a escorva. Os ces, que poderiam ensinar-me o caminho, tinham seguido o meu companheiro. No desanimei. [10] Tal direco pareceu-me que deveria ser a melhor, e segui-a. O nevoeiro deixava-me vr apenas o espao que pisava. Atravessei a lombada da serra, e comecei a descer. Escorreguei muitas vezes nos algares da encosta, e senti a neve pela cintura. Gastei duas horas, tres, quatro, descendo, descendo, sem encontrar uma povoao. Conheci que estava perdido. A neve augmentava. A noite aproximava-se, e nem um symptoma de vida! Ento, sim; tive medo, e imaginei que a minha sepultura, sem solemnidade alguma, deveria encontral-a brevemente no estomago d'algum lobo. E, de mais a mais, eu tinha fome. Todos os provimentos, que eu levava na minha rede, eram um pedao de bra para o meu furo. Reparti-o entre ns. O animalsinho comeu com appetite, e pilhando-se solto, como o seu officio era desemlapar coelhos, entrou na primeira lura que viu, e fez saltar fra um gato bravo, que espirrava diabolicamente por cima dos tojos coroados de neve. Nunca me esqueceram os espirros d'este gato bravo! Continuei o meu caminho, sem esperanas de encontrar pousada. Escureceu. Encostei-me, desalentado, a um castanheiro, e fiz da minha pobre cabea uma cabea academica. Pensei muito, estabeleci varios raciocinios, que conspiraram em provar-me, que, perto d'alli, devia existir uma povoao, por isso que os castanheiros, campos, e paredes eram indicios de alda proxima. N'este comenos, ouvi um mugido de boi, e em seguida uma sineta, que tocava s Ave-Marias. Aquellas tres badaladas ergueram a Deus o meu espirito reconhecido. Orei com a devoo dos dezoito annos. No vos digo mais nada a este respeito, porque me no entenderieis. Sois excellentes pessoas para devorar [11] um romance em dez volumes; mas no lerieis, sem abrir tres vezes a bocca, uma pagina de sentimentos embalsamados do aroma do co, que o poeta no deve nunca profanar, misturando-os a frioleiras d'uma historia, ao alcance de todas as capacidades. Eu creio que entre vs ha entendimentos muito finos, paladares muito apurados no sabor do bello, coraes muito brandos para emoes suaves. Creio que sim; mas o melhor fazer de conta que os no ha. V. Minutos depois, achava-me n'uma povoao, onde nunca estivera. Encontrei uma velha que castigava um porco, rebelde invocao de sua ama, com uma roca. Perguntei-lhe que povo era aquelle. Alpedrinhadisse ella. Ora, Alpedrinha distava duas leguas e meia de minha casa. Era necessario pernoitar alli. Perguntei dita velha onde morava o parocho. Mostrou-me a casa. Pedi gasalhado ao reverendo, que n'esse momento voltava da igreja. Disse-me que subisse. Quiz saber quem eu era, e tratou-me delicadamente, quando lhe citei um medico, pessoa de minha familia. O snr. padre Joaquim era um padre admiravel. Tinha maneiras da crte. Vestia com muita limpeza. Fallava com prodigiosa correco, e offerecia aos seus hospedes aguardente e biscoutos, tudo do melhor, e servido em bons crystaes e polida salva de prata. Momentos depois que eu chegra, apeou porta do meu sympathico sacerdote um cavalleiro, ainda moo, muito pallido e magro, com chapo hespanhol, faxa vermelha, e botas d'agua. Era um estudante de Coimbra, que voltava doente [12] para sua casa, e costumava pernoitar em Alpedrinha, com aquella familia. A primeira pergunta do academico foi esta: Como est a snr.a D. Amelia? O mesmo...respondeu padre Joaquim. E seu mano? Tem vindo a casa? No senhor: desde que foi delegado para * * *, ha tres mezes, no voltou.... Eu estava ancioso por conhecer a snr.a D. Amelia, porque at ao momento em que o estudante chegou, suppunha eu que toda a familia do parocho se limitaria a alguma ama, e alguns pequenitos, que, de ordinario, so afilhados do padre. Depois das perguntas do meu illustre companheiro de hospedagem, fiquei sabendo que n'aquella casa existia uma snr.a D. Amelia, e um senhor delegado de * * *. Padre Joaquim contou ao academico as minhas aventuras de caador; disse-lhe que me tinha achado muito fino (referia-se naturalmente magresa), e fez a apologia dos meus olhos, que, naturalmente, revelavam uma extraordinaria esperteza, espiritualisados pelo espirito de vinho, que o sacerdote me injectou nas veias marasmadas pelo frio. Conversei com o academico. Perguntei-lhe muitas cousas de Coimbra: quantos canelles soffria um calouro; o calculo aproximado dos puxes de orelhas; a solemnidade indecente de certo vaso na cabea.... &c. &c. O academico respondia-me com muito agrado, e offerecia-se para meu protector em Coimbra, no anno seguinte, que devia ser o da minha partida. VI. Snr. Valladaresdisse o padre ao estudanteminha [13]cunhada ergueu-se da cama para vir comprimental-o... uma grande considerao, que eu lhe no mereo; mas a delicadeza da snr.a D. Amelia sempre um severo preceito que ella se impe. Fallou bem. N'isto, entrou uma senhora, com um ar de tanta nobreza, que me pareceu uma cousa nova. Eu no conhecia assim nenhuma. Era alta, muito magra no rosto, mas muito bella nos olhos, nos labios, nos cabellos, em tudo se via tanta formosura, tanto donaire, um senhoril to estreme do vulgo, que eu, creana e poeta, senti-me to acanhado como o mais boal dos pastores de cabras d'aquella freguezia. Como passou, snr. Valladares?perguntou ella com voz tremula, tossindo a cada palavra, e aconchegando da face a golla de veludo da sua capa. Sempre doente, minha senhora... Por no poder mais, recolho-me a casa... Eu bem lhe disse que no fosse... v. s.a teimou, agora j sabe que os conselhos d'uma mulher no so sempre pieguices... E os de v. exc.a nunca podero sl-o... E a snr.a D. Amelia como est? D'este modo que v... Tossindo sempre, sempre mal, sem descano d'este lado, que me parece que j no vive, se no para matar o resto de vida que tenho... D. Amelia indicava o corao. Porque no d um passeio at Lisboa?tornou o academico. Isso lhe tenho eu dito todos os diasatalhou o padre. De que me serve Lisboa? So ares patrios, minha senhora. Talvez o contacto do corao com as suas amigas de collegio... [14] Eu j no tenho corao para contacto com amigas nem inimigas, snr. Valladares... O que v. exc.a tem uma ardentissima imaginao, alma de poeta, que s tem a sensibilidade do que triste, e no sabe tirar recursos da esperana... Esperana!...murmurou ella com um triste sorriso, e voltando-se para mim, perguntou-me: J sei que este senhor esteve em risco de passar uma noite divertida com os lobos... verdade, minha senhora; mas a Providencia encaminhou-me ao paraizo, depois de me ter mostrado o inferno. Ora ahi tem uma resposta d'um moo, que seria pena comerem-no os lobos!...disse o padre, desafiando um gracioso sorriso de Amelia. Ha-de dizer ao seu parente medico que me salve da sepultura assim como ns esta noite o salvaremos de ser victima dos lobosdisse-me ella, apertando affectuosamente a mo de Valladares, em despedida, porque a tosse exasperava-se cada vez mais. Esta rapida appario impressionou-me muito. Queria fazer mil perguntas; mas eu no tinha a quem. O padre e o estudante fallaram em assumptos, que me no interessavam nada. O que eu queria era a vida, a historia, os soffrimentos, a poesia d'aquella mulher. Eu tinha lido, dias antes, no sei que romance, onde vira uma mulher assim... Appareceu um taboleiro com a ca. O abbade fez o prato de D. Amelia. Era uma aza de gallinha, que elle mesmo lhe serviu. Valladares tambem comeu do pucaro da doente. Eu, com o abbade, entramos corajosamente n'um coelho guisado, cuja retaguarda cortamos com um excellente caldo verde, e lourejantes castanhas assadas com manteiga. No fim, demos graas a Deus. O padre, segundo o seu costume, foi sentar-se [15]cabeceira de sua cunhada. Eu e Valladares entramos n'um quarto commum. VII. O academico tinha uma physionomia franca e insinuante. Conversava comigo sem desdenhosa superioridade. Familiarisamo-nos depressa, como dous futuros companheiros de casa em Coimbra. Eu fui um grande fallador, n'aquella idade, em que pensava menos. O meu recente amigo sympathisou com a minha garrula eloquencia, e dava signaes de desenfado, quando naturalmente devra querer dormir, depois de uma fatigante jornada, em dia de neve. Eu no era rapaz que, por delicadeza, calasse a minha curiosidade a respeito de D. Amelia. O senhor faz-me o favor de me dizer uma cousa?disse eu. Que ? quantas horas so?... so 10... quer dormir? No, senhor: queria saber quem esta snr.a D. Amelia? cunhada do padre, e casada com um sujeito, delegado em * * *. Isso j eu sabia... pouco mais ou menos. Ento sabe tanto como eu... Mas d'aqui d'esta alda esta senhora? Creio que ouvi dizer que era de Lisboa. verdade... nasceu em Lisboa... E como veio parar aqui n'este matagal? Naturalmente perdeu-se, como eu, na serra, por causa da neve, e veio c bater, e c ficou! Pois eu dou-lhe a minha palavra de honra, que apenas vir luzir o buraco, retiro-me sem mais ceremonias d'este delicioso covil de cabras. [16] O meu amigo ria-se. Estava disposto a achar-me graa, e o leitor pde tambem rir-se, se lhe aprouver. E acrescentou ao sorriso: Parece-lhe impossivel que a tal senhora viesse de Lisboa para aqui sem ser impellida por um acaso? De certo... J no admira que ella tenha tosse de tisica... O que me espanta ella viver, se c est desde hontem!... Quando veio ella? Ha dous annos. Ento eterna... ou santa. Hei-de dizer que encontrei esta martyr a uma minha tia, que capaz de jurar que a viu fazer milagres... O menino sarcastico! Se o no visse to inclinado a rir-se de cousas serias, contava-lhe uma historia triste... E eu gosto muito de historias tristes... Ver que me no rio, quando me dizem alguma cousa que me toque o sentimento. A minha familia chama-me poeta; os visinhos chamam-me tolo; no sei bem o que sou; mas o que no sou insensivel... V... j no tenho vontade de gracejar... Conte-me agora a historia, que eu prometto contar-lhe outra que me fez chorar, porque uma passagem to infeliz, que, se eu fizesse novellas, escrevia uma. Talvez as escreva no futuro... Eu?... Deixe-se d'isso... O meu mestre de logica diz que eu sou um alarve, e o de rhetoria j me mandou ser aprendiz de alfaiate... No tenho habilidade nenhuma. O meu gosto lr os sonetos do abbade de Jazente, e as quintilhas do Nicolau Tolentino. No sei mais nada, nem quero saber... Vamos historia, sim? Ento aproxime-se de mim, que eu quero fallar baixo. Mas, antes de mais nada, promette no contar a ninguem o que vou dizer-lhe? Pois segredo! [17] . Prometto... Pois ahi vai. VIII. Esta senhora viveu em Lisboa at aos dezeseis annos. Hoje o mais que pde ter so vinte e dous. S?! Eu calculava trinta e tantos bons, como diz minha tia, quando quer fazer todas as pessoas mais velhas que ella. Pois deixemos l sua tia, que deve ser, pouco mais ou menos, como todas as tias... Vamos com a nossa historia, e depressa, seno adormeo, e o meu curioso amigo perde a occasio de saber quem a snr.a D. Amelia... Isso de modo nenhumatalhei eu com sobresaltoPrometto no interromper a historia. Pois bem. O pai d'esta senhora morreu em Lisboa, e o conselho de familia deliberou que a orph viesse para a provincia, onde tinha tios, e o seu patrimonio em quintas. Quando appareceu em * * *, os rapazes fizeram-lhe montaria, e disputaram a primazia no namoro. D. Amelia no aceitava, nem repellia a crte de nenhum. Tinha o mesmo riso para todos, e fallava a todos com a mesma delicadeza. Havia alli um rapaz que no frequentava a sociedade de Amelia, porque no frequentava sociedade nenhuma. Fra educado em Genova, viera de l aos quinze annos, vivera no Porto at aos vinte e cinco, e quando recolheu provincia, d'onde sahira de tres annos, com a sua familia que emigrra em 1828, ninguem o conhecia, e elle mesmo no queria conhecer ninguem. [18] Chamavam-lhe celebre, exquisito, excentrico, orgulhoso, impostor, e no sei que muitas outras lisonjas do charco de certos espiritos, que no podem sahir da pequena esphera de lama, que a natureza lhes deu por homenagem. D. Amelia viu este rapaz n'um cemiterio: leu um epitaphio que elle mandra abrir na sepultura de seu pai que o deixra em Genova no collegio, e viera morrer em 1836 patria: comprimentou-o de passagem, respondendo a um distincto cortejo do melancolico poeta; e parece que, desde esse encontro, Amelia transfigurou-se para todos os homens, deu que pensar sua familia, queria todos os dias visitar o cemiterio, e retirava quasi sempre mais triste, porque muito raras vezes encontrou alli o invisivel extravagante da opinio publica. Como se chamava elle? Eu conheo alguns rapazes de * * * que foram meus condiscipulos em logica. No nenhum dos seus condiscipulos. J lhe disse que este sujeito veio do Porto para a provincia, com vinte e tantos annos pelo menos. O seu appellido Crte-Real, conhece? Nada, no conheo; mas ouo fallar todos os dias n'esse rapaz. Que ouve dizer? Que est em Lisboa, doudo, no hospital... O senhor afiana-me isso? Ha que tempo endoudeceu? Ha dous ou tres mezes... Quem lh'o disse? Um medico, meu parente, que o mandou conduzir para a enfermaria dos doudos. O academico fez-me signal de silencio, e mandou-me ouvir. No ouve?disse elle. Ouo... alguem que solua... ella... [19] D. Amelia? Sim... Ouviu a nossa conversa... Tem ouvidos de tisica... admiravel!... Pois o quarto d'ella no longe d'este? Passam-se tres quartos, mas os repartimentos so de tabique, e eu no me lembrei de tal... Calemo-nos... E a historia?... Falle mais baixo, que ella no ouvir mais nada... Agora, impossivel... Aquelles soluos transtornaram-me a cabea... Deite-se, e manh fallaremos antes de nos despedirmos... IX. cabeceira do meu leito, estava um volume das Viagens de Cyro, e o quinto volume d'uma Miscellanea curiosa e proveitosa, onde encontrei uma longa poesia a D. Ignez de Castro, que me fez dormir at s 8 horas da manh. O meu companheiro, quando abri os olhos, estava sentado na cama, e escrevendo nas paginas d'uma carteira. O senhor est a fazer versos?perguntei eu. Adevinhou. Faz favor de recitar, se no segredo! Recito: olhe l se entende: Eras um anjo? Se o eras Que torvo facho do inferno Te queimou as azas? Diz: Porque, to cedo, infeliz Cahes no abysmo eterno!... eterno! [20] Entendeu? No, senhor. Veja se entende agora: Eras pura, quando lagrimas Tu me dste, e me pediste... Tu choraste aqui, choravas... Mas porque? prophetisavas Este abysmo em que cahiste? Entendeu? Nada... Ora diga-me os versos tem alguma cousa com a historia que ficou suspensa? No, senhor; pertencem a outra, que nasceu aqui n'esta casa, e que toda minha... Esta casa parece-me uma casa de novella... Estou a vr se aqui arranjo tambem alguma historia para contar a minha tia, que est resando o quadragesimo responso a Santo Antonio por minha causa, se que j me no resou por alma... Ento o senhor no conta ao menos a primeira historia completa? Hei-de contar. Quando? Eu vou-me embora logo. No vai. J aqui esteve o padre, e disse que no sahiriamos d'aqui hoje, porque augmentou de noite a neve. Deixal-a; mas a minha familia, se eu no appareo, nem dou parte de mim, julga-me morto, e capaz de me fazer officio de corpo ausente. No se assuste, que o padre hontem noite mesmo fez partir para a sua alda um criado com a certeza de que o senhor ficava vivo, e mais o seu furo. A proposito, sabe se j dariam de almoar ao meu furo. natural que sim... Ahi vem o snr. abbade; [21]perguntemos-lhe... Snr. padre Joaquim, pergunta alli o nosso amigo se o furo ja almoou. Comeu quatro ovos, e est agora brincando com minha cunhada, que muito amiga de bichos. E como passou ella?perguntou Valladares. Penso que melhor... Ergueu-se muito cedo: a creada disse que a vira chorar toda a noite; mas agora fui, com grande espanto meu, encontral-a com o furo no regao, a sorrir-se como quem muito creana e muito feliz... Sabe o senhor que... No sei bem o que o padre disse ao ouvido do estudante. Desconfio, pela resposta, que o resto do segredo era o receio de que ella endoudecesse. Tudo isto, apurava-me o desejo de saber o que era a demencia de Crte-Real, e a tisica de Amelia. X. Almoamos. D. Amelia esteve comnosco alguns minutos, ouvindo no sei que palavras a meia voz, do meu amigo, inintelligiveis para mim, supposto que ahi se fallasse duas ou tres vezes n'uma D. Miquelina. Tudo mysterios! O padre foi dizer missa. D. Amelia foi com elle. Fiquei com Valladares, tremendo de frio, ao p d'uma bacia de brazas. O attencioso levita teve a delicadeza de nos no convidar a participarmos da sua missa, que n'aquelle dia, com tal frio, faria hereges espiritos devotos. Ahi vai agora a continuao da historiadisse o academico, engulindo o fumo de quatro cigarros successivosA familia d'esta senhora muito realista, muito fanatica, arde em odio contra os impios, que so todos, menos os sectarios de D. Miguel, e alguns, seno todos, de D. Sebastio. A familia de Crte-Real [22] ultra-liberal, odeia os realistas com aquelle odio saturado na emigrao, e no admitte honra, intelligencia, nem merecimento em homem que no fosse capaz de cortar as orelhas a um miguelista, se elle estiver por isso. J v que as duas familias detestam-se. De parte a parte no momento em que as relaes de Amelia com Crte-Real fossem percebidas, imagine o meu amigo que no hiria! Ento elles namoravam-se? Pois eu no lhe disse j que sim? No, senhor: disse-me que Amelia passeava repetidas vezes no cemiterio para vl-o, mas que no o via muitas vezes. Eu queria saber como se encontraram... porque... desejo saber como que a gente pde sahir d'um encontro d'esses!... No ha muito que me vi entalado com um d'esses encontros... Eu tinha o recado na ponta da lingua, e, quando vi a mocetona, que no era cousa de atarantar um estudante de logica, pegou-se-me a lingua ao co da bocca, como diz no sei que poeta... vox faucibus hoesit... Que lhe disse elle quando a viu? Isso que eu no sei, porque no ouvi. O que sei que se fallavam por cartas, e entretiveram assim relaes seis mezes. Por fim, descobre-se o namoro. Crte-Real fallava da rua para a janella com Amelia: um tio d'ella avisado; espera-o no pateo, com a porta fechada, e, quando elle principia a dizer bellas cousas, o tal bruto abre a porta, e descarrega-lhe quatro bordoadas, que o pozeram fra do combate. No dia seguinte, mandou-lhe a casa a capa, o chapo, e uma clavina, que fra tres vezes batida queima roupa do tal varredor de feiras. E depois? D. Amelia, duas horas depois, foi mandada entrar n'uma liteira, e conduzida a casa d'este padre. Para que? [23] Para ninguem saber o seu destino, em quanto vinha de Lisboa, onde ella tinha o conselho de familia, uma ordem para ser recolhida a um convento. E Crte-Real que fez? Curou as feridas da cabea, e indagou o destino de Amelia. Como o no soube, cahiu n'uma melancolia profunda, teve accessos de loucura, e, pelo que o senhor me disse, est hoje no hospital de Rilhafolles. E Amelia casou-se? Pois no casamento que est o interessante da historia. Quinze dias depois da sua vinda para aqui, chegou de Coimbra o irmo do padre. Parece que sentiu por Amelia o que era muito natural que sentisse. Amou-a, mas no ousou declarar-se, porque sabia os precedentes, que a trouxeram a esta casa. Ella, por si, tractava-o com a fria delicadeza da indifferena, at ao momento, em que recebeu de uma sua tia a noticia de que viera ordem do conselho de familia para ser conduzida a Lisboa, e l recolhida em um convento. Lida a carta, Amelia offereceu-se como esposa do bacharel. O imprudente sem mais nem menos, aceitou a offerta. Alcanou do arcebispo dispensa de banhos e consentimento do tutor: o irmo, sem consultar a philosophia, a religio, e a consciencia, casou-os. Na tarde do dia das bodas, chegou a liteira que devia levar a orph a Lisboa. Amelia apresentou-se a seu tio com um desdenhoso sorriso, e disse: No tenho duvida nenhuma em hir para Lisboa, e para um convento, mas necessario que meu marido v comigo. Seu marido!exclamou o tio estupefacto. [24] XII. Dias depois, esta victima dos seus caprichos, cahiu doente. O medico capitulou-lhe a enfermidade de tisica no primeiro grau. O marido arrependeu-se muito cedo. Ella no se arrependeu, porque sabia que dava um passo que devia matal-a. E, com effeito, est alli... est morta... ...Ahi vem ella e o padre... Fallemos d'outra cousa... CONCLUSO. Um anno depois, em Coimbra, dizia-me Valladares: Olha que tive carta do abbade de Alpedrinha. D. Amelia morreu, e as suas ultimas palavras ao marido foram estas: morro por capricho. UMA PAIXO BEM EMPREGADA. UMA PAIXO BEM EMPREGADA. I. O meu amigo Valladares, em uma tarde formosa, passeando comigo no Penedo da Saudade, sentou-se, accendeu um cigarro com perfeio academica, abriu a carteira, e recitou-me os versos, que, um anno antes, me recitra em Alpedrinha. Lembras-te?disse elle. Perfeitamente. Prometteste contar-me ento uma historia. Vou cumprir a promessa. E disseste que o teu conto prendia muito com aquella casa. Disse, e vaes vr porque. Olha que eu no vou fazer estilo. Prepara-te para uma narrao simples, e clara. No perteno escla dos nossos lapidarios de palavras, que nos dizem em estilo de Corneille as scenas comicas de Moliere. A minha historia, se tal nome lhe cabe, uma tragedia com muitas scenas de fara. Ainda que me no vejas rir, tens a liberdade da gargalhada. Ahi vai: [28] Em 1843 fui feira do Santo Antonio a Villa-Real. Encontrei ahi uma familia que mora uma legua distante de minha casa. Compunha-se d'uma senhora idosa, que era mi d'um cavalheiro, e este cavalheiro era pai d'uma bonita mulher, que teria dezoito annos. Gostei d'ella, ou antes confirmei a sympathia que ella me tinha presa desde que a vi, pela primeira vez, dous annos antes, n'umas ferias grandes. No lhe disse quasi nada. Eu era rapaz de dezoito annos, e, aos dezoito annos, um moo d'alda tem o corao acanhado, e cra facilmente, quando encontra os olhos d'uma mulher, supposto que os veja constantemente em sonhos. A rapariga chamava-se Miquelina; isto no faz ao caso; mas sempre te digo que nunca suppuz poder pronunciar este nome sem lagrimas... O que o tempo!... Combinamos partir juntos de Villa-Real. No recordo na minha vida um dia mais feliz do que o dia da nossa partida! A familiaridade animava-me a dizer algumas palavras d'aquellas que nunca exprimem seno a sombra do sentimento. Miquelina corava, mas nem por isso sustinha as redeas do cavallo para esperar a av e o pai, que vinham alguns passos distantes. Teriamos andado legua e meia, quando o macho em que vinha montada a velha tomou susto d'um tiro, que se deu ao lado da estrada, recuou, e deu em terra com a pobre senhora. Acudimos todos. Encontramos-lhe uma fractura profunda na cabea, e uma perna quebrada. Perguntamos se d'alli perto haveria uma casa onde nos recolhessemos. Encaminharam-nos a Alpedrinha, e a casa era a do padre onde me encontraste. O acolhimento que nos deram foi excellente. Encontrei ahi o irmo do abbade que era meu contemporaneo em Coimbra. Os facultativos disseram que era impossivel continuar jornada, e ahi ficamos vinte dias. N'este espao de tempo, sonhei a felicidade, por [29]que hoje sei que no existe a realidade d'esses sonhos. Fui muito feliz, senti-me poeta, idealisei sombra de Miquelina cousas e pessoas que nunca tiveram seno materia vilissima para as aspiraes do poeta. Em fim, meu caro, cheguei a recuperar a f perdida nas cousas da Providencia, porque me parecia impossivel tanta felicidade sem consentimento especial da Providencia. Disse a Miquelina tudo que humanamente pde dizer-se. Traduzi-lhe em palavras os extasis, que as no tinham. Interessei-a na comprehenso da minha alma, e arranquei-lhe uma palavra, que mil vezes lhe morrera nos labios, como queimada pelo ardor do pejo. Quando ella me disse amo-o se no endoudeci de contentamento, porque a disposio do meu cerebro invulneravel aos golpes da demencia. Hoje rio-me d'isto, e tu, se te no ris, agouro-te que no poders dizer o mesmo a respeito da tua cabea, passados alguns annos. Porque? Porque das duas uma: ou doudo, ou cynico. Tomar a serio a sociedade endoudecer. Viver com ella em boa paz escarnecel-a. Ou doudo ou cynico. No enlouqueci; mas depravei-me. Este escarneo, que indistinctam ......Buy Now (To Read More)
Ebook Number: 23203
Author: Castelo Branco, Camilo
Release Date: Oct 26, 2007
Format: eBook
Language: Portuguese
Publisher: Em Casa De Cruz Coutinho--Editor
Rua Dos Caldeireiros N.ºs 18 E 20
Porto--Typographia De Antonio José Da Silva Teixeira
Publication Date: 1862
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