Côrte na aldeia e noites de inverno (Volume I)

Côrte na aldeia e noites de inverno (Volume I)

Côrte na aldeia e noites de inverno (Volume I) Title: Crte na aldeia e noites de inverno...
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Author: Lobo, Francisco Rodrigues,1580-1622
Format: eBook
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Author: Lobo, Francisco Rodrigues,1580-1622
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Côrte na aldeia e noites de inverno (Volume I)

Title: Crte na aldeia e noites de inverno (Volume I) Author: Francisco Rodrigues Lobo Release Date: October 14, 2011 [EBook #37757] Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) Nota de editor: Devido quantidade de erros tipogrficos existentes neste texto, foram tomadas vrias decises quanto verso final. Em caso de dvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrar a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Outubro 2011) BIBLIOTHECA UNIVERSAL ANTIGA E MODERNA CORTE NA ALDEIA E NOITES DE INVERNO POR FRANCISCO RODRIGUES LOBO VOLUME I 16. SERIENUMERO 62 LISBOA COMPANHIA NACIONAL EDITORA Successora de DAVID CORAZZI e JUSTINO GUEDES 40Rua da Atalaya52 FILIAES: Praa de D. Pedro, 127, 1. andar, PORTO 38, rua da Quitanda. Rio de Janeiro 1890 LISBOA typographia da companhia nacional editora 309, Rua da Rosa, 309 1890 Em quanto est o avaro em seu thesouro Cevando os olhos, dando ao pensamento Materia a v cobia de mais ouro. Primavera, Floresta, 5. ADVERTENCIA A Noticia biographica de Francisco Rodrigues Lobo encontram-a os leitores frente do volume 23. da Bibliotheca Universal Antiga e Moderna. CRTE NA ALDEIA E NOITES DE INVERNO DIALOGO I ARGUMENTO DE TODA A OBRA Perto da cidade principal da Luzitania est uma graciosa aldeia, que com egual distancia fica situada vista do mar oceano, fresca no vero, com muitos favores da natureza, e rica no estio e inverno com os fructos e commodidades, que ajudam a passar a vida saborosamente; porque com a vizinhana dos portos do mar por uma parte, e da outra com a communicao de uma ribeira, que enche os seus valles e outeiros de arvoredos e verdura, tem em todos os tempos do anno o que em differentes logares costuma buscar a necessidade dos homens: e por este respeito foi sempre o sitio escolhido para desvio da crte, e voluntario desterro do trafego d'ella: dos cortezos, que alli tinham quintas, amigos ou heranas, que costumam ser valhacouto dos excessivos gastos da cidade. Um inverno em que a aldeia estava feita crte com homens de tanto preo, que a podiam fazer em qualquer parte, se juntava a maior d'elles em casa d'um antigo morador d'aquelle logar, que tambem o fra em outra edade da casa dos reis, d'onde com a mudana e experiencia dos annos, fez eleio dos montes para passar [8] n'elles os que lhe ficavam da vida, grande acerto de quem colhe este fructo maduro entre desenganos. Alli ora em conversao aprazivel, ora em moderado e quieto jogo se passava o tempo, se gosavam as noites, se sentiam menos as importunas chuvas e ventos de novembro, e se amparavam contra os frios rigorosos de janeiro. Entre outros homens, que n'aquella companhia se achavam, eram n'ella mais costumados, em anoitecendo, um letrado que alli tinha um casal, e que j tivera honrados cargos do governo da justia na cidade, homem prudente, concertado na vida, douto na sua profisso, e lido nas historias da humanidade: um fidalgo mancebo, inclinado ao exercicio da caa, e muito affeioado s cousas da patria, em cujas historias estava bem visto: um estudante de bom engenho, que entre os seus estudos se empregava algumas vezes nos da poesia: um velho no muito rico, que tinha servido a um dos grandes da crte, com cujo galardo se reparara n'aquelle logar, homem de boa creao, e, alm de bem entendido, notavelmente engraado no que dizia, e muito natural de uma murmurao que ficasse entre o couro e a carne, sem dar ferida penetrante. Ao senhor da casa chamavam Leonardo, e ao doutor Livio, ao fidalgo D. Julio, ao estudante Pindaro, ao velho Solino. Fra estes havia outros de quem em seus logares se far meno, que assim como os mais, no eram para engeitar em uma conversao de poucas porfias. Uma noite do novembro, em a qual j o frio no dava logar a que a frescura do tempo convidasse ao sereno, estando ainda Leonardo mesa, porm no fim das iguarias, bateram porta Pindaro e Solino, aos quaes o velho mandou abrir com grande alvoroo e festa; porque a de o buscarem era a que mais estimava por sua. Subiram, agasalhou-os com contentamento e cortezia. Sentaram-se perto da mesa, e disse o senhor da casa:Peza-me que no viesseis mais cedo, que me poderieis acompanhar n'este trabalho to necessario da velhice. Mas se ainda virdes na mesa alguma cousa de vosso gosto, lanae mo d'ella, que de mistura achareis a minha boa vontade.Eu sei (disse Pindaro) a que tendes de me fazer merc; mas venho ceiado e tambem Solino, a quem tive por hospede, e j a conversao [9] me dobrou o gosto das iguarias.Eram ellas to boas (respondeu Solino) que a mim me davam graa. Porm o serdes vs to miudo nas cortezias, me deu muita pena: e j que sois to discreto, e tanto meu amigo, d'aqui adeante emendae-vos nas ceremonias da mesa; e adverti ao vosso moo que no acompanhe com os olhos os bccados dos hospedes, at o estomago: porque apostarei que me contou todos os da ceia, e anda to destro no apartar das brigas, que ainda bem no desvio um prato do outro, quando me d xaque em ambos, e me deixa em casa branca. E no vos parea que isto dizer que venho faminto; que, se assim fra, pde ser que o cumprimento do sr. Leonardo no ficra solto e livre; antes fazer-vos lembrana que, pois daes tambem de comer, no tenhaes um moo Harpya, que descomponha o sabor dos manjares.Bem sei (respondeu Pindaro) que ainda farto no haveis de deixar de roer. O meu moo de uma d'estas aldeias vizinhas, ha pouco que me serve; por isso, e por ser creado de estudante, lhe devieis perdoar o erro, e a mim o remoque; porm a vossa condio no se sujeita a respeito nem a desculpas. to saborosa a murmurao de Solino (disse Leonardo) que tambem na mesa se pde estimar como boa iguaria: e se a eu tivera muitas vezes, dra vida ao appetite que para as outras me falta.Se o ella fra (tornou Solino) em mais occasies me valra das em que a vs podeis desejar. Mas, no tratando de vol-a offerecer, nem de a desculpar com meu amigo; como ceiastes hoje to tarde, e no vieram mais cedo o doutor e D. Julio?Antes (disse o velho) me mandaram j recado, e no devem tardar. Eu o fiz com a ceia, porque os homens de servio me no deram logar seno a esta hora: mas ouo que batem porta e devem ser elles. A este tempo mandou juntamente alar a mesa, e levar a luz escada. Subiram o doutor e D. Julio; saudaram-se com muita alegria; e sentados perto do fogo, disse o velho: Muito deveis ambos a Solino; porque vindo a esta casa com Pindaro, de quem foi convidado na ceia, e tendo a minha em estado de que se podia aproveitar de alguma cousa d'ella, vos achou menos, e perguntou a causa da tardana; signal este de amor e da pouca razo com que o temos [10] por desobrigado de toda a affeio dos amigos.No Solino to descuidado do que lhe eu mereo (tornou D. Julio) que se esquea de mim, e de quanto sentirei perder horas suas: e pelo interesse das da conversao do doutor o tivera em menos conta se as no desejra: e alm d'isto posso affirmar que est pago da lembrana que teve, com a diligencia que fizemos pol-o trazer comnosco, que voltamos pela sua porta, e eu tirei uma pedra janella, d'onde me disseram que ceiava com Pindaro; e cada um dos dois me fez inveja.Ah! sr. D. Julio (respondeu elle) to grande trovoada de cumprimentos seccos no podia deixar de lanar pedra. Eu tenho feita a conta, e sei que no posso pagar o que vos devo alm d'essa honra e merc, seno com a humildade com que a todas reconheo por vossas. Dae-vos por satisfeito de meus desejos, e de pr aqui ponto nos cumprimentos; porque no tenho polvora mais que para a primeira salva.J eu me quizera metter em meio (disse o doutor) porque se vs a terdes em cortezias, no haver quem as pague, se no fr Pindaro, que tem uma corrente to arrebatada, que no d vau a nenhuma rethorica do mundo.Agora (arguiu Leonardo) levastes tres de um tiro; no me dou por seguro n'este logar, inda que de minha casa: porm no tendes razo contra Pindaro, que, cada vez que o ouo, me parece um livro de cavallarias. Se elle tivera encantamentos escuros, castellos roqueiros, cavalleiros namoradores, gigantes suberbos, escudeiros discretos, e donzellas vagabundas, como tem palavras sonoras, razes concertadas, trocados galantes, e periodos que levam todo o flego, pudra pr a um canto o Amadis, Palmeirim, Clarimundo, e ainda o mais pintado de todos os que n'esta materia escrevram: e j estive em o persuadir que se mettesse em uma empreza semelhante: porm receio que se me ensoberbea com a altiveza de seu estylo, e despreze aos amigos.No merecia eu, sr. Leonardo, a vs, nem ao doutor (disse Pindaro) que tomasseis meus defeitos por materia de vossa galantaria: falo como sei, e cada um se extende conforme a roupa com que se cobre. No sou to philosopho como o doutor, to cortezo como vs, nem to engraado como Solino, nem tenho maiores penas que a gaiola; porm se abrisse as azas [11] para compr livros, no houveram de ser de patranhas. Por isso fiae mais de meus pensamentos.Nunca o tive de vos offender (respondeu o velho) nem me parece com razo a vossa desconfiana; nem podeis fazer to pouca conta dos livros de cavallarias, e dos famosos auctores que os escreveram, e que mostraram n'elles a sua boa linguagem com toda a perfeio: a graa de tecer e historiar as aventuras, o decoro de tratar as pessoas, a agudeza, a galantaria das tenes, o pintar as armas, o betar as cres, o encaminhar e desencontrar os successos, o encarecer a pureza de uns amores, a pena de uns ciumes, a firmeza em uma ausencia, e outras muitas cousas que recreiam o animo, affeioam e apuram o entendimento. Se vs tendes por despreso compr livros de cavallarias, eu vos desengano que pertencem mais cousas ao bom auctor d'elles, que a um dos lettrados philosophos ou juristas, com que desejaes do vos parecer; porque lhe importa saber a geographia dos reinos e provincias do mundo, para encaminhar por ellas a sua historia; ter noticia dos nomes e cousas que usam n'aquellas partes, d'onde faz naturaes os cavalleiros, saber estylo de crte para as mesuras, gasalhados e cortezias, conforme as pessoas introduzidas, conhecer da justia, do torneio e do sarau. a ordem, as leis e as gentilezas, entender da bastarda e da gineta, o que convm para pintar o encontro, a quda, o acerto, o dezar, o brio ou descuido de um cavalleiro, debuxar o cavallo nas cres, concertal-o nas redeas, no pizar, no arremesso, na furia, na destreza, nas carreiras, chaas e rodeios, e sobre o conhecimento de todas as sciencias e disciplinas, tambem ha de ter alguma noticia dos nigromantes antigos para os encantamentos que servem de bordo e valhacouto aos historiadores.Tenho por mal empregado (disse ento o doutor) tanto cabedal em cousa de to pouco interesse, e no sou de voto qee o auctor, que tiver as partes que vs dizeis que so necessarias para essa composio se occupe n'ella. De que servem livros de cavallarias fingidas? E se ha ociosos que os leiam, porque ha de haver algum que os escreva? Ou que espere algum fructo de trabalho to vo?Mas que certeza to grande (tornou Leonardo) que cada um approva o que segue, sendo assim que ninguem se contenta do que [12] tem. Desejaveis agora que todos os livros, e todos os homens tratassem smente da vossa profisso e fossem juristas e philosophos. Pois ainda que eu sou bacharel em linguagem, me atrevo a contradizer essa opinio adquirida em latim: porque para recreao, politica e bom estylo se no deve menor logar a estes, que aos vossos de trapaas e opinies, e outros a que chamaes conselhos, que o do s vezes bem ruim a quem se fia de sua leitura. Eu era de parecer (disse D. Julio) que poupassemos esta materia para gastar a noite, pondo-a em maneira de disputa. E se a todos parece assim, cada um diga sua opinio nos livros que mais lhe contentam, e das razes que tem para os approvar; e d'este modo, ou affeioados, ou convencidos, saberemos os que so de maior gosto, e utilidade.A isto (respondeu Solino) at agora estive calado contra minha natureza; porque me houve por incapaz de fazer tero ao doutor e Leonardo: mas pois o voto que se jogue com toda a baralha, digo que esta a melhor materia que se podia escolher para passar o tempo. E j pode ser que algum dos que aqui esto, que deseja deixar no mundo memoria de seu engenho, saiba n'esta occasio o em que o pode empregar melhor.Pelo que a mim toca (disse o doutor) comecemos logo; e a vs, sr. D. Julio, bem que demos a mo a troco do alvitre: e no tratando dos livros divinos, nem dos necessarios, dos de recreao nos podeis dizer quaes, e por que razes vos contentam.A minha inclinao em materia de livros (disse elle), de todos os que esto presentes bem conhecida: smente poderei dar agora de novo a razo d'ella. Sou particularmente affeioado a livros de historia verdadeira, e mais, que s outras, s do Reino em que vivo, e da terra onde nasci: dos reis, e principes que teve, das mudanas que n'elle fez o tempo e a fortuna, das guerras, batalhas, e occasies, que n'elle houve, dos homens insignes, que pelo discurso dos annos florecero: das nobrezas e brazes que por armas, lettras, ou privana se adquiriram. O que me inclinou escolha d'esta lio, foi que tive alguma de um homem muito douto, em o que o deve desejar de ser, e parecer o que bem nascido; ao qual elle dizia, que o que mais convinha que soubesse era, o appellido, que [13] tinha, d'onde lhe veio; quem fram seus passados, que armas lhe deixaram, a significao, e fundamento da figura d'ellas, como se adquiriram, ou accrescentaram. Logo os reis que reinaram na sua patria, as chronicas d'elles, os principios, as conquistas, as emprezas, e o esforo de seus naturaes; porque falando d'elles nas terras extranhas, ou na sua com extrangeiros, saiba dar verdadeira informao de suas cousas. E alcanadas estas, lhe estar bem tudo o que mais puder saber das alheias. E na verdade, nenhuma lio pode haver que mais recreie, e aproveite, que a que sei que verdadeira, e por natural ao desejo dos homens deleitosa.No essa a minha opinio (disse Solino) porque contra o gosto me assombram muito cousas passadas, e andar abrindo sepulturas de gente morta. E no que toca verdade, certo que conta dos enterrados se escrevem algumas vezes to grandes mentiras, que lhes no levam vantagem os fingimentos de historias imaginadas. E havendo um homem de ler o que no , ou o que sabe, to caldeado, e to batido da forja dos auctores, que mudado traz o metal, a cr, e a natureza: estou melhor com os livros de cavallarias, e historias fingidas, que, se no so verdadeiros, no os vendem por esses: e so to bem inventados, que levam aps si os olhos, e os desejos dos que os lem. E no estima um auctor matar mais dois mil homens com a penna, para fazer valente o seu cavalleiro, com a espada, sem estar receando os ditos das testemunhas que ficaram da batalha; que por eguaes respeitos pende cada uma para seu cabo. Pois se caso, em que um historiador queira passar adeante como Ariosto, no matou mais gente a peste grande em Lisboa, que Rodamonte nos muros de Paris.Essa uma das razes, porque eu os reprovo (tornou o doutor) porque a fabula uma cousa falsa, que podia comtudo ser verdadeira, e acontecer assim como se fingio. Porm a isto no do logar os livros de cavallarias, com esses excessos, e outros encantamentos, fazendo casas, e torres de crystal, edificios, lagos, e columnas impossiveis, pyramides de alabastro, e casas de pedraria, cuja riqueza podia empobrecer a fortuna. E em nossos tempos, na India Oriental, sabemos que o rei Mogor andou muitos annos fabricando uma casa de esmeraldas, por [14] cujo respeito se passavam d'este Reino nossa India as da Occidental. E emfim morreu sem a acabar; e no ha livro de cavallarias em que qualquer cavalleiro de um castello no acabe cousas maiores. E deixando isto, graa, e galantaria, comparar historias verdadeiras com patranhas desproporcionadas, que gastam o tempo mal a quem n'ellas se occupa, quando as outras servem de exemplo para imitar, de lembrana para engrandecer, e de recreao para divertir. A quem no anima ler as historias de seus passados? A quem no move o desejo de egualar a fama que l de suas obras? O governo da paz? A ordem da guerra? O trato dos homens? O commercio das provincias? D'onde se conserva, alcana, e sabe seno pelas historias verdadeiras? Porque n'ellas sabe cada um felizmente pelos successos alheios o que deve seguir. D'onde Marco Tullio chamou historia mestra da vida.Vs, sr. doutor (disse Solino) achareis isso nos vossos cartapacios: mas eu ainda estou contumaz. Primeiramente, nas historias, a que chamam verdadeiras, cada um mente segundo lhe convm, ou a quem o informou, ou favoreceu para mentir; porque se no frem estas tintas, tudo to misturado, que no ha panno sem nodoa, nem lgua sem mu caminho. No livro fingido contam-se as cousas como era bem que fssem, e no como succederam, e assim so mais aperfeioadas. Descreve o cavalleiro como era bem que os houvesse, as damas quo castas, os reis quo justos, os amores quo verdadeiros, os extremos quo grandes, as leis, as cortezias, o trato to conforme com a razo. E assim no lereis livro, em o qual se no destruam soberbos, favoream humildes, amparem fracos, sirvam donzellas, se cumpram palavras, guardem juramentos, e satisfaam boas obras. Vereis que as damas andam pelas estradas, sem haver quem as offenda, seguras na sua virtude propria, e h cortezia dos cavalleiros andantes. E quanto ao retrato e exemplo da vida, melhor se colhe no que um bom entendimento traou, e seguiu com muito tempo de estudo, que no successo, que s vezes se alcanou por mo da ventura, sem a diligencia e engenho metterem nenhum cabedal. No digo que os livros tenham excessos desatinados, que no sejam semelhantes verdade, nem os encantamentos to escuros e desconformes, [15] que no tenham alguma maneira de enganar o juizo; porm os livros bem fingidos, como verdadeiros obrigam. Um curioso em Italia (segundo um auctor de credito conta) estando com sua mulher ao fogo lendo o Ariosto, prantearam a morte de Zerbino com tanto sentimento, que lhe accudiu a visinhana a saber o que era. E no que toca ao exemplo; um capito valoroso houve em Portugal, que o no teve melhor o Imperio Romano, que com a imitao do um cavalleiro fingido, foi o maior de seus tempos, imitando as virtudes que d'elle se escreveram. Muitas donzellas guardaram extremos de firmeza, e fidelidade, costumadas a lr outros semelhantes nos livros de cavallarias. Na malicia da India tendo um capito nosso cercado uma cidade de inimigos, certos soldados camaradas, que albergavam juntos, traziam entre as armas um livro de cavallarias, com que passavam o tempo. Um d'elles, que sabia menos que os mais d'aquella leitura, tinha tudo o que ouvia lr por verdadeiro (e assim ha alguns innocentes, que cuidam que se no pode mentir em lettra redonda) os outros ajudando a sua simpleza lhe diziam que assim era. Veio occasio de um assalto, em que o bom soldado invejoso, e animado do que ouvia lr, lhe pareceu ensaio de mostrar seu valor, e fazer uma cavallaria, de que ficasse memoria; e assim se metteu entre os contrarios com tanta furia, e os comeou a ferir to rijamente com a espada, que em pouco espao se empenhou de sorte, que com muito trabalho, e perigo dos companheiros, e de outros muitos soldados, lhe ampararam a vida recolhendo-o com muita honra, e no poucas feridas. E reprehendendo-o os amigos d'aquella temeridade, respondeu: Ah! deixae-me, que no fiz a metade do que cada noite ldes de qualquer cavalleiro do nosso livro. E elle d'alli adeante o foi muito valoroso.Muito festejaram todos o conto, e logo proseguiu o doutor: To bem fingidas podem ser as historias, que meream mais louvor, que as verdadeiras; mas ha poucas que o sejam; que a fabula bem escripta (como diz Santo Ambrozio) ainda que no tenha fora de verdade, tem uma ordem de razo, em que se podem manifestar as cousas verdadeiras. Xenofonte querendo pintar uma republica perfeita, e regimento politico, por modo de historia, fingiu [16] o governo de Cyro, rei dos Persas. D. Antonio de Guevara, em nome de um imperador romano escreveu o que elle queria dizer em Hespanha; e outros que ainda em modo mais extranho ensinaram aos homens, como Esopo nas suas fabulas, e Lucio Apuleio no seu Asno d'ouro; e todos os livros que em seu genero so bons, se podem chamar perfeitos. Resta agora que o que escreve historia seja verdadeiro; e no ter Solino de que o reprehender n'ella. O que compe fabulas seja verosimil, e no terei eu razo de o reprovar. O que trata de sciencia, alegue razes. O que fala de artes, experiencia. E o que quer ensinar principios, mostre auctoridade. E posto que eu tenha muitas que allegar em favor da vossa opinio, sr. D. Julio, vs estaes no caso, e todos os mais, que a historia verdadeira apascenta os doutos, adelgaa os grosseiros, encaminha os moos, ensina os mancebos, recreia os velhos, anima aos baixos, sustenta aos bons, castiga aos maus, resuscita aos mortos, e a todos d fructo a sua lio. E porque esta no seja mais comprida, diga Pindaro agora a sua opinio. Apostarei eu (disse Solino) que, se a Pindaro lhe armarem com poesia levantada sobre os bons conceitos, e versos, que com serem amorosos, sejam arrogantes, que o tomaram como passaro em visco.Para isso (disse o doutor) arredar-lhe as occasies, e v com declarao, que no tratamos de poesia.Essa condio (accudiu Pindaro) logo ao principio ficou declarada; que como exceptuastes livros divinos, n'esse numero devem estar os dos poetas, que mereceram este nome; e o que elles antigamente tiveram, e ainda agora lhe do os Latinos, assim o deixa entender. E Plato quando d'elles escreve, lhes chama divinos interpretes dos deuzes, possuidos de espiritos celestes: d'onde Marco Tullio tirou os louvores, com que os trata. Origenes affirma que a poesia uma virtude espiritual, que inspira em os poetas, e lhes enche o animo e o entendimento de uma divina fora. Santo Agostinho lhes chama theologos para cantarem os louvores divinos. Diziam os philosophos antigos que, se os deuses falassem, seria em verso: trazendo exemplo do oraculo de Apollo, e das Sibyllas. Cassiodoro diz que a poesia tomou principio da divina escriptura. De maneira que por auctoridade [17] de to grandes vares, nunca os livros de poesia podem vir em competencia com os de que at agora tratastes; que d'outro modo j estivera concluida a differena.O que eu vejo (tornou D. Julio) que, ainda que o doutor vos cerrara a porta, que mettido de ilharga dissestes tudo o que cumpria a vosso intento por junto, o quanto para mim estaes declarado; o com o desejo de ouvir a opinio do doutor, no digo o mais que me, parece.Ora (respondeu elle) no quero que a essa conta fique o meu voto s escuras; e digo, no falando em poesia, que no escolho lio de historiadores verdadeiros, nem tenho por melhor a dos fingidos; porque uns servem de conservar a memoria, os outros de enganar o entendimento: e sero melhores os livros que deleitem a memoria, e a vontade, e apurem, e levantem o entendimento, como os de recreao, que com alguma enganosa novidade tratam de materias politicas, e engraadas: de crte, de aldeia, e de qualquer sujeito aprazivel: e ha d'estes muito bem recebidos, approvados, e proveitosos na republica, cuja variedade, e doutrina para mim lio muito saborosa.No estou mal com essa opinio (disse o doutor) o quasi que vs, e eu estamos em um mesmo pensamento; seno que deixastes de declarar o que agora me fica para dizer; porque at aqui falmos do modo de compor, e escrever livros; e no das materias, que escriptas sero agradaveis. E deixando em duvida o vosso parecer para se conferir com a teno; o meu , que o melhor modo de escrever so os dialogos escriptos em prosa, com figuras introduzidas, que disputem, e tratem materias proveitosas, politicas, engraadas, e cheias de galanteria: sendo a primeira figura da obra o autor d'ella; e isso que v guiando, e introduzindo as mais, que sejam apropriadas quellas materias, de que ho de tratar entre si. E alm de ser este estilo mais claro, mais vulgar, mais excellente, inclue em si a lio de todos os outros modos de escrever, como o so os da historia verdadeira, e fingida, das artes liberaes, e mecanicas; das sciencias, e disciplinas necessarias; das profisses particulares; da razo do governo; da vida politica ou privada. E quando este modo de escrever no tivera por si mais que a auctoridade dos que n'elle escreveram, como foi Plato, Xenofonte, Tullio, e outros [18] infinitos: essa bastara para acreditar os dialogos. Alm d'isto, eu tenho para mim que aquella melhor escriptura, que com mais perfeio, e viveza imita a pratica, e conversao dos homens; porque assim como a melhor pintura a que mais se parece com a obra da natureza, a que quer contrafazer; assim a melhor escriptura a que retrata com mais semelhana o falar, e conversao d'entre os amigos. Nos poemas tinham os poetas antigos que o mais levantado era a tragedia pela imitao natural da pratica, com introduco de figuras, junto com a gravidade, peso, e tristeza dos successos tragicos. E porque tambem a variedade a que mais costuma enterter, e deleitar o animo dos homens, e esta mais certa, e mais propria nos dialogos, me parece que no gosto d'elles sero melhor recebidos. Pois assim (disse D. Julio) que a principal razo porque approvaes os dialogos, porque mais familiarmente se parecem com a pratica. Desejo saber qual mais nobre cousa, se a pratica, se a escriptura: porque a mim me parece que escriptura se deve o melhor logar, e que antes merecia a pratica por se parecer com ella; o que agora encontra a vossa opinio.Nenhuma duvida ha (respondeu o doutor) que a pratica seja mais nobre, mais antiga o mais excellente; porque, alm de o falar ser operao natural dos homens, e acto em que elles fazem vantagem, e differena a todos os animaes, a escriptura no mais que uma escrava e servente das palavras, e o escrever no outra cousa mais que supprir com um instrumento por meio da arte, e das mos o que com a voz se no pde exprimir e alcanar com os ouvidos, ou por distancia de logar, como quem escreve aos ausentes, ou por discurso de tempo, como quem escreve para os vindouros. E porque nunca a escrava to nobre como a senhora a quem serve, em quanto escrava, nem o que substitue em logar d'outrem se lhe pde preferir no mesmo logar; assim nunca a escriptura pde egualar a nobreza e perfeio da pratica.O contrario me parece a mim (replicou o fidalgo) porque nem por a pratica ser mais antiga, e primeira que a escriptura mais perfeita; antes ella foi a perfeio da pratica: e posto que seja prpria operao do homem o falar, no n'elle menos nobre accidente o de escrever; antes me parece [19] mais digno o que elle alcanou por arte, que o que adquiriu por uso: e quasi que ousaria a dizer que operao sua o falar, dada a respeito de haver de escrever, pois esse o meio de se perpetuar, sustentando no entendimento dos presentes, e na lembrana dos futuros a memoria das cousas passadas. Assim que nem por a primeira razo merece a pratica melhor logar, nem a escriptura, por servente e ministra sua, menos nobre. Porque o sol serve de mostrar as cousas creadas, que lhe so muito inferiores, e de dar luz e nutrimento a outras de menor qualidade, e nem por isso ellas se lhe podem antepr. E quanto a substituir a escriptura em logar da voz, ella o faz por to excellente maneira, que lhe tem muita vantagem; pois o que a voz no pde exprimir juntamente em differentes logares, e a diversas pessoas em um mesmo tempo, o faz a escriptura com grande perfeio, podendo muitas pessoas, em differentes logares, lr em um mesmo tempo a propria cousa: pelo que me parece que, ainda que a vossa escolha fosse boa, no fundastes bem a razo d'ella.Certo (disse Leonardo) que de ambas as partes dstes to boas razes, que fica duvidosa a melhoria. Porm concedendo pratica a excellencia, a aco, o modo e a graa de falar, que uma viveza a que se no eguala outra nenhuma lembrana; a escriptura tem tantas grandezas que parece egualmente necessaria para a vida, pois ficava o mundo s escuras sem a luz da dilao escripta; e s na tradico dos homens se salvaria a memoria das cousas; e nas principaes dominaria a ignorancia com mero imperio. Porm, deixando isto por averiguar, pois com tanta galantaria e agudeza est tocado o que baste, quero que passemos adeante, e, por me fazerdes merc, que me ensineis se na pratica, em voz, e na escriptura considerada tem bom logar a nossa lingua portugueza; porque ouo de m vontade a alguns naturaes que tratam mal d'ella e a condemnam por grosseira e limitada. Uma cousa vos confessarei eu, sr. Leonardo (disse a isto D. Julio) que os portuguezes so homens de ruim lingua, e que tambem o mostram em dizerem mal da sua, que assim na suavidade da pronunciao, como na gravidade e composio das palavras lingua excellente. Mas ha alguns nescios, que no basta que a [20] falem mal, seno que se querem mostrar discretos, dizendo mal d'ella: e o que me vinga de sua ignorancia, que elles acreditam a sua opinio; e os que falam bem desacreditam a ella e elles.Bravamente apaixonado o sr. D. Julio (acudiu o doutor) pelas cousas da nossa patria: e tem razo, que divida que os nobres devem pagar com maior pontualidade terra que os creou. E verdadeiramente que no tenho a nossa lingua por grosseira, nem por bons os argumentos com que alguns querem provar que essa; antes branda para deleitar, grave para engrandecer, efficaz para mover, dce para pronunciar, breve para resolver, e accommodada s materias mais importantes da pratica e escriptura. Para falar engraada com um modo senhoril: para cantar suave com um certo sentimento que favorece a musica: para prgar substanciosa, com uma gravidade que auctorisa as razes, e as sentenas: para escrever cartas nem tem infinita copia que damne, nem brevidade esteril que a limite: para historias nem to florida que se derrame, nem to secca que busque o favor das alheias. A pronunciao no obriga a ferir o co da bcca com aspereza, nem arrancar as palavras com vehemencia do gargalo. Escreve-se da maneira que se l, e assim se fala. Tem de todas as linguas o melhor: a pronunciao da latina; a origem da grega; a familiaridade da castelhana; a brandura da franceza; a elegancia da italiana. Tem mais adagios e sentenas que todas as vulgares, em f de sua antiguidade. E se lingua hebrea pela honestidade das palavras chamaram santa, certo que no sei eu outra que tanto fuja de palavras claras em materia descomposta quanto a nossa. E para que diga tudo, s um mal tem, e que pelo pouco que lhe querem seus naturaes, a trazem mais remendada, que capa de pedinte.Folguei extranhamente de vos ouvir (disse Solino) por no ficar to covarde, como at agora estava, em ouvindo murmurar da lingua portugueza; e no ousava, ou no sabia dizer a minha opinio, a qual cuidava que me nascia do amor que lhe tenho, e que cada um tem s suas cousas como o corvo aos filhos, e Pindaro s suas trovas. Porm quando um homem to bem fundado na razo como o doutor, e to auctorisado em seu parecer sustenta esta parte, nenhuma [21] haver j to rija, que me tire o atrevimento.Nem a lingua (disse Pindaro) pois no ha amizade que vos faa perder o costume.Perdoae-me (tornou elle) que vos feri por no perder o golpe. E tornando ao que aqui se tratou para recordar o que comeamos, averiguou o doutor que a melhor maneira de escrever eram os dialogos (ficando meu direito reservado nos livros de cavallarias), tocaram-se louvores da pratica e escriptura com muito engenho; declarou-se como a lingua portugueza no desmerece logar entre as melhores, para n'ella se escreverem materias levantadas, apraziveis, proveitosas e necessarias. Que falta entre vs para que d'estas noites bem gastadas, d'estas duvidas bem movidas, e d'estas razes melhor praticadas se faa um ou muitos dialogos, que sem vergonha do mundo possam apparecer nas praas d'elle vista dos curiosos, e ainda dos murmuradores?Tem Solino muita razo (disse D. Julio) e se assim forem os dialogos como se podem formar com a pratica de alguns que esto presentes, bem se auctorisar ......Buy Now (To Read More)

Product details

Ebook Number: 37757
Author: Lobo, Francisco Rodrigues
Release Date: Oct 14, 2011
Format: eBook
Language: Portuguese

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