O presbyterio da montanha

O presbyterio da montanha

O presbyterio da montanha Title: O presbyterio da montanha Author: Antonio Feliciano de Castilho Release Date: February...
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Author: Castilho, Antonio Feliciano de,1800-1875
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Author: Castilho, Antonio Feliciano de,1800-1875
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O presbyterio da montanha

Title: O presbyterio da montanha Author: Antonio Feliciano de Castilho Release Date: February 19, 2009 [EBook #28127] Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) Nota de editor: Devido existncia de erros tipogrficos neste texto, foram tomadas vrias decises quanto verso final. Em caso de dvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrar a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Fev. 2009) O Presbyterio da Montanha: Volume I Volume II Obras completas de A. F. de Castilho XIX O Presbyterio da Montanha VOLUME I LISBOA EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL 95, Rua Augusta, 95 1905 OBRAS COMPLETAS DE ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO VOLUME 19. VOLUMES PUBLICADOS: I Amor e melancolia. II A chave do enigma. III Cartas de Ecco e Narciso. IV Felicidade pela agricultura (1. v.) V Felicidade pela agricultura (2. v.) VI A primavera (1. vol.) VII A primavera (2. vol.) VIII Vivos e mortosApreciaes moraes, litterarias, e artisticas. IX Vivos e mortos (2. vol.) X Vivos e mortos (3. vol.) XI Vivos e mortos (4. vol.) XII Vivos e mortos (5. vol.) XIII Vivos e mortos (6. vol.) XIV Vivos e mortos (7. vol.) XV Vivos e mortos (8. vol.) XVI Excavaes poeticas (1. vol.) XVII Excavaes poeticas (2. vol.) XVIII Excavaes poeticas (3. vol.) XIX O Presbyterio da montanha (1. v.) NO PRLO: XX O Presbyterio da montanha (2. v.) OBRAS COMPLETAS DE A. F. DE CASTILHO Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos XIX O Presbyterio da Montanha VOLUME I LISBOA Empreza da Historia de Portugal Sociedade Editora LIVRARIA MODERNA TYPOGRAPHIA Rua Augusta, 95 45, Rua Ivens, 47 1905 Advertencia dos Editores Em 1846 principiou Castilho a colligir, entre os seus manuscritos antigos, alguns dos que lhe tinham nascido na estudiosa solido de mais de sete annos de homisio na serra do Caramulo. A esses manuscritos, que ia publicar com o titulo de O Presbyterio da montanha, escreveu um prologo extenso, descriptivo, altamente pittoresco, onde, a dze annos de distancia, desafogou as lembranas d'aquelles logares, e as saudades de um irmo, o melhor dos irmos, o j ento fallecido Abbade de S. Mamede da Castanheira do Vouga, no Bispado de Aveiro. O prologo concluiu-se, imprimiu-se na sua maxima parte, mas no chegou a publicar-se. O natural desleixo do Poeta a respeito do que era seu, as vicissitudes da sua atormentada vida, a sahida para S. Miguel, e outras causas, fizeram com que as folhas impressas se sumissem, nem sabemos dizer como; e os pouquissimos exemplares que existem, e se apontam a dedo, so hoje considerados espe O natural desleixo do Poeta a respeito do que era seu, as vicissitudes da sua atormentada vida, a sahida para S. Miguel, e outras causas, fizeram com que as folhas impressas se sumissem, nem sabemos dizer como; e os pouquissimos exemplares que existem, e se apontam a dedo, so hoje considerados especies bibliographicas de primeira raridade. [6] Castilho possuia um, que vimos, e desappareceu; a Bibliotheca Nacional de Lisboa possue outro; o distinto colleccionador, bibligrapho, e escritor, o snr. Annibal Fernandes-Thomaz, outro; a fallecida snr. a D. Maria Peregrina de Sousa, poetisa portuense, possuia outro, que parece ter levado caminho; Innocencio no Tomo I do Supplemento do seu immortal Diccionario, no declara se era dono de algum; menciona a obra, apenas. Quanto parte poetica do livro projectado, essa, no impressa, desappareceu em parte. S algumas poucas peas encontrmos, umas inteiras outras incompletas; materiaes truncados da colleco. Salvando esses versos, cumprimos um dever moral, e outro literario. O prologo de Castilho pois o brilhante prtico de um edificio ainda em construco, e j em ruinas; inquestionavelmente uma das obras mais curiosas e instructivas que elle deixou. A chorographia, a fauna, a historia, a lenda, os costumes, a paizagem, as antigualhas, o folk-lore, d'aquella regio alpestre, to portugueza, mas to desconhecida, tudo isso tratado com amor, com o cuidadoso amor de um archeologo-poeta. Appareceu tambem uma Introduco em verso slto a certo poema intitulado O Sepulcro, historia de uma noite de S. Joo, projectado pelo nosso autor; poema original, muito vivido, muito phantastico, infelizmente por concluir. Entendemos no menos intercalar essa curiosa Introduco, no seu logar chronologico, por varios motivos: d-nos [7] Castilho sob uma feio poetica diversa da sua habitual, e pinta-nos o estado da sua alma aos trinta annos, quando absorvia soffregamente o ar, a vida, os usos populares da montanha. O Sepulcro pois optimo contribuinte d'este truncado banquete literario, e fra imperdoavel, apesar de incompleto, despresal-o aqui. Do borro original, que possuimos pela letra do amoravel secretario Augusto Frederico, para esta lico actual, ha leves divergencias, que foram pelo proprio autor ditadas em 1864. Alm do Sepulcro, outras peas, portuguezas e latinas, j impressas nas Excavaes, teriam logar aqui, pelo seu nascimento, pela sua data, pela sua indole; mas o autor preferiu collocal-as n'aquelle seu volume. Facil ao leitor intelligente o procural-as. MEMORIA DO EXEMPLAR DE IRMOS AUGUSTO FREDERICO DE CASTILHO PRIOR DE S. Mamede da Castanheira do Vouga Em testemunho publico e perenne DE AFFECTO E GRATIDO Offerece Antonio Feliciano de Castilho PREAMBULO I O livro que apresento, havia de ser difficil de classificar, se o classifical-o podesse por alguma via valer a pena. No historico, nem ficticio; no didactico, philosophico, nem descriptivo; no prosa, nem poema, nem ainda poemas; e, sem ser nada de tudo isso, de tudo isso participa. Nem sequer um livro; uma congrie de pequenas coisas, todas mais ou menos obscuras, e quasi todas desconnexas, e de pensamentos no procurados, se no tomados como elles quizeram vir, sem nenhum bem determinado fim moral, social, ou literario; em summa: um d'aquelles banquetes de aldeo, engenhados pressa do que ha em casa, ...dapibus mensas oneramus inemptis, [12] para hospedar a cortesos que lhe passaram pela porta. No procura enganal os: com mos limpas e corao lavado lhes pe diante o que s para si tinha tratado na sua horta, ceifado no seu cho, cevado no seu pateo, ou colhido do seu pomar. Porcelanas e pratarias, no as tem; algumas flores, j pode ser que as apresentar em vasos de barro; mas como vos assoalha com bom rosto quanto possue, no se vos alardeia de abastado, nem se compara com os visinhos de casas altas e balces envidraados. Como quer que vs d'elle o fiqueis, no ficar elle descontente de si mesmo despedida. * Foi o geral d'esta colleco, parte escrito de carreira, parte apenas esboado ou apontado, ha hoje doze, treze, quatorze, quinze, e dezasseis annos, sem pensar no Publico; para mero desenfadamento de horas abhorrecidas; para ajudar a correr mais depressa, em sitios tristes e ermos, uns tempos muito ermos, muito tristes, e para mim, que nunca bem atinei com o futuro, muito desconfortados de esperanas. Como todo o meu fim em fazer versos no era outro seno o fazel-os, de todo o modo me nasciam bem. No tinham de apparecer entre gente; no os educava; no os corrigia; no lhes punha galas e arrebiques. Assim sahiram, assim ficaram, e assim os esqueci. Revi-os depois de tornado ao mundo, aonde j cuidei que no tornasse; achei-os [13] os mesmos que os tinha deixado: sinceros, mas incultos e semi-silvestres, como nados e creados que eram por entre troncos e penedos, longe de olhos e de ouvidos, que fazem por fora o mesmo que por dentro faz a consciencia. Vieram-me tentaes de os enjeitar; mas... eram filhos; contavam j annos: recordavam-me tempo de saudades; eram me saudades elles proprios; reconheci-os; dei-lhes o meu nome; com elle os apresento. II Todos os autores, ainda os que mais intimos se nos figuram, cuido eu que se compem para o Publico; e, bem hajam elles!: no levam praa seno o que teem averiguado que por l se deseja e se procura; pem de parte, quanto podem, a sua pessoa, para servirem ao interesse ou gosto alheio. Nada d'isso tenho eu n'estas paginas. No sou eu que vou para os leitores; so os leitores que teem de vir para mim, se as quizerem ler. Ho-de deixar a sua cidade, pelo meu ermo; as suas occupaes, pelo meu ocio; a sua polidez, pela minha rudeza; os seus, pelos meus costumes; a historia ou o romance da sua vida, pelo recantinho domestico onde a minha correu, como uma fonte desconhecida e pura, que mana gotta a gotta n'uma cova, s vista de cima pelo ramo de tojo que a sombreia, ou pela nuvem, ou pela andorinha cujo ventre branco [14] ella retrata no seu vo. Pelo que, bem entendido deve ficar desde aqui (a fim de que no venham depois obrigar-me por divida que eu no contraio), que a unica deleitao que esta leitura pode dar, se pode dar alguma, ser a que naturalmente se tem, penetrando no interior da casa alheia, e nos segredos do visinho. o que faz com que, por mais futeis que paream as memorias, que alguns escrevem de suas vidas, e as correspondencias epistolares, quando por acaso vo dar ao prelo sem terem sido ordenadas para elle, commummente so lidas com interesse. o que faz, tambem, ser muitas vezes mais aprasivel que as achadas de antigos monumentos publicos, o desenterro fortuito de uma antiga vivenda particular ou casa rustica, onde os vasos e utenss do viver quotidiano veem logo suscitar na phantasia os costumes, o trato, e o ser intimo, da gente que ali houve. Os monumentos s dizem do povo; mas a pedra da lareira, ou o ladrilho do forno, o gancho da candeia, ou a aza da amphora vinaria dos banquetes, dizem da familia. Em de redor de cada coisa d'estas ressurgem tambem uns eccos de vozes enterradas ha muitos seculos; confusos, mas a todos intelligiveis e suaves, de donas, de donzellas, de velhos e meninos, dos animaes caseiros, dos passarinhos e viraes do ceo, do sussurro das plantas, dos sons, em summa, de tudo que n'esses tempos apartados foi, e feneceu, deixando de si menos v Os monumentos s dizem do povo; mas a pedra da lareira, ou o ladrilho do forno, o gancho da candeia, ou a aza da amphora vinaria dos banquetes, dizem da familia. Em de redor de cada coisa d'estas ressurgem tambem uns eccos de vozes enterradas ha muitos seculos; confusos, mas a todos intelligiveis e suaves, de donas, de donzellas, de velhos e meninos, dos animaes caseiros, dos passarinhos e viraes do ceo, do sussurro das plantas, dos sons, em summa, de tudo que n'esses tempos apartados foi, e feneceu, deixando de si menos vestigio, que a humilde talha do vinho, e a lampada que allumiou [15] calada os prazeres ou os somnos de seus senhores. Os monumentos so artificiaes, e artificiosos; so estudados, e emphaticos; a historia que elles resam fria. Mas c, o romance que engenhamos, ageitado s memorias e saudades do nosso mesmo passado, todo perfumado de Natureza; a mentir nos diz verdades. * As impresses de viagens esto sendo ao presente um genero de Literatura mixta mui usado e mui querido. No admira: para os autores facil; para os leitores, recreativo quando menos. Satisfaz-se o humor cosmopolita, que todos temos muito ou pouco; sem canasso nem ms poisadas por terra; sem enjo nem temporaes por aguas do mar; sem desabrimento de estaes; sem saudades do que l fica para traz; ou, havendo-as, com bom remedio para desandar, que repetir algumas paginas; e emfim, sem o aborrimento, que a pessoa a viajar em corpo e alma tantas vezes deve de sentir em chegando aonde ninguem a espera, nem festeja, nem conhece, e onde no ouve pelas ruas palavra nem som da sua creao. A viagem escrita, sem custo de nenhuma especie se faz por uns caminhos atmosphericos to suaves, que a todas as partes nos levam, com a nossa casa e familia, sem at nos demovermos do nosso quarto nem da nossa cama, se como Ovidio somos, que punha entre os regalos da vida o de ler deitado. [16] * Ora digo eu: se o attractivo commum de taes viagens o gosto de conhecer sitios, gentes, e costumes, que nos so extranhos, e no medir as distancias que nol os apartam, que esse, pelo contrario, o maior desconto do peregrinar, por que se apeteceriam mais as viagens Frana, Inglaterra, Suissa, Italia, s margens do Rheno, Russia, ao Egypto, China, ou ainda Lua, do que a um qualquer monte da nossa terra, s conhecido de seus moradores e visinhos? Que sabeis vs mais da serra do Caramulo, em cujas faldas est assentado S. Mamede da Castanheira do Vouga, como um neto no regao de sua av triste e taciturna, que do monte Ararat, em cujo cume parou e se abriu a arca depois do diluvio? Nem mais, nem por ventura tanto. Viris pois s raizes do Caramulo conversar montanhezes, agrestes porm bons; e to bons, que, d'entre os seus oiteiros mal sombreados e mal productivos, nos seus pauprrimos tugurios cobertos de loisa ou colmo, e pendurados laia de ninhos pela escarpa dos precipicios, entalados nos crregos, ou inclinados a scismar tristezas sobre algum rio fundo e triste, nunca se lembraram de vos invejar a vs outros as vossas cidades opulentas e festivas. Estes, com falarem portuguez, so para vs estrangeiros, ou quasi. Como taes, no vos despraza conhecel-os, despendendo algumas poucas horas com quem por entre elles demorou annos, e de boa-mente l iria [17] agora enterrar os restos canados da vida ao-p do sepulcro de um Pae, que lhe l ficou em quieto desterro para todo sempre. [1] III A 23 de Outubro de 1826, entrava por aquella serrana regio o novo Prior, meu sempre e em tudo irmo, e agora saudade minha continuada e sem remedio, Augusto Frederico de Castilho, com a sua pequena familia, de que era eu parte inseparavel. Coimbra, d'onde iamos, fra a terra dos nossos annos mais flordos; Lisboa, a do nosso bero e da nossa infancia. Uma e outra me chamariam pelos affectos em qualquer parte do mundo em que eu estivesse; e no houvera eu valdo a resistir-lhes. Mas para aquelle ermo, que ento cuidavamos nos durasse a vida toda, entranhavamo-nos elle e eu, por nos sentirmos um como o outro to encantados com o nosso futuro, j palpado e colhido s mos, que alegres, sobre resignados, esqueciamos todos os outros sitios por aquelle, renunciavamos quaesquer outras delicias, mais amenas ou mais vvidas, [18] por aquellas gentilezas incultas e mais poeticas de uma natureza quasi primitiva. * Passmos n'uma bateirinha remada por uma velha moleira da margem, o vioso rio de Bolfiar, a que deu nome, hoje corrupto, segundo a tradio, o bom fiar de certa moa mui santa, que junto d'elle vivia n'uma choupaninha pobre, e esmolando a todos os pobres com o trabalho da sua roca; se no quizerdes antes que dos Moiros lhe viesse o appellido, significando pepinal, ou rio das terras dos pepinos; pacifico rio, que ento ia grosso e desmandado por entre as suas duas ribas altas e verdejantes, em cujos cimos nenhum passageiro deixou nunca de se deter enlevado na amenidade de tal painel. Comeam a estender-se-nos diante, profusas e desmedidas para um e outro cabo, arripiadas gndaras de carqueja e urzes, s de longe a longe interruptas de um sovereiro torcido e mal posto, ou de um rebanho; terreno boleado e ondeado como um lago, que em meio de tempestades se houvesse petrificado por encanto. So j fronteiras do Caramulo. IV A freguezia de S. Mamede no se v em parte alguma; dispersa, e emboscada. A magreza da terra no d para grandes espessuras de povoao. O aspecto do paiz, para quem s o atravessa [19] de inhospedeiro. Mas que se detenham, e o tratem; acharo a hospitalidade espontanea e desinteressada, em todas as falas, em todas as mos, e em todos os coraes. porque a solido de si mais affectuosa, e a pobreza mais liberal e larga, que o rico povoado. Esta differena e vantagem que os moradores levam sua terra, experimentmol-as ns ainda antes de chegarmos egreja e residencia, sahindo a receber o seu Pastor novo no s os maioraes, se no quasi todo o Povo com os seus trajos de festa, e repicando por cima das cerejeiras e nogueiras do adro os tres sinos do campanario, d'onde quelle som se dispartiu pelos ares uma nuvem de pombas brancas. A egreja, alva, com o seu largo porto vermelho aberto para o seu adro muito verde, apresenta-se solitaria. Das povoaes em que a freguezia se divide, nenhuma lhe contigua nem visinha. O presbyterio, ou residencia parochial, o unico edificio que a acompanha, mas por de traz, como serva humilde e boa, e no descobrindo mais, por entre os pltanos, que o portal do seu pateo toucado e semi-velado das mais espssas, crespas, e lustrosas heras, onde jmais se esconderam e cantaram melros. Ambos os edificios ficam no meio do passal, antiga quinta das Limeiras, dos Condes da Feira, como o passal fica no meio do sinuoso deserto, por onde se disseminam as aldeias, povoas, e casaes, que ali teem o seu foco espiritual. Um grande silencio rodeia largamente a [20] casa da orao. O presbyterio no lh'o quebra. Baixo, de um s andar, e retirado para o fundo do seu pateo rustico mas espaoso, a olhar pelas quatro janellinhas da sua frontaria principal unicamente para o ceo, e para umas formosas e corpolentas laranjeiras, que dentro do mesmo recinto vegetam, como elle clausuradas, o modesto domicilio, proporcionado pelo que sempre dever ser o pastor de tal rebanho, no se retrahiu para mais longe, por traz da sombra do santuario, porque no poude: porque lh'o embargou a longa e cada vez mais precipitosa descida, que desde os seus calcanhares comea para alm a esconcear, descer, e afundir-se, at borda do estreito, rumoroso, e espumifero rio de S. Mamede. Uma ponte de madeira, arremessada e trmula nos ares a grande altura, por cima das aguas escuras e raro alcanadas do sol, communica esta com a ribanceira ulterior, no menos carrancuda, fragosa, arripiada, e a pique. Da residencia, cora de um dos dois alcantis, at ao moirisco logar de Falgozelhe, seu visinho na fronteira crista da penedia d'alem-rio, entremeia apenas distancia, que, pela calada das noites, deixa ouvir de parte a parte os ladridos dos ces de gado, as cantigas do sero, e os alertas dos gallos a deshoras. E comtudo, aquelle quasi-nada para os ouvidos e olhos, para os ps caminho dilatado, fadigoso, e no sem perigos. As duas veredas, que levam s duas extremidades da ponte, giram enleadas e perplexas, [21] torcendo-se e refugindo, ora para a direita ora para a esquerda, como espavoridas do abysmo l em baixo; descendo, tornando a subir, e redescendendo de novo por entre brutescos de penedia negra. Pouco matto ressequido, e alguns medronheiros silvestres, so os unicos entes vivos, que por ali se affoitam a tomar p. Os seus frutos vermelhos, quando o vento lh'os despega maduros, vo sumir-se entre as espumas arrebatadas. Aquella ponte, vacillante sobre tal pgo e entre taes escarpas, com poucas braas de ceo por cima, e por baixo de si o rugir de tantas aguas, d as sensaes de um bello horror. Muita vez me deleitei de as colher, debruado horas esquecidas para aquelle inferno liquido; e este pensamento algumas vezes ahi me veio por tardes de Junho, em quanto, calado e estendido sobre as tboas, gastadas e rtas da humidade, me gosava da virao transpirada pela corrente. Foi a simples providencia do acaso, ou uma inspirao de religiosa poesia no fundador, a que fez reunir n'um ermo, e em to pequeno espao, como tres cantos de um poema, esta corrente, esta casa, e esta egreja? Esta corrente, emblema da vida terrestre, to escura, to angustiada, to clamorosa, e com to pouco de azul por cima das suas ribanceiras inaccessiveis, d'onde insperado vem, cada dia, algum novo penedo ferir-lhe o seio! Aquella egreja, to serenamente alegre, to aberta, o dia inteiro, ao generoso sol dos campos, to gorgeada a ambas suas portas [22] de passarinhos, to garrida de espadanas sobre as campas do pavimento, e nos seus cinco altares to ridente de flores silvestres, symbolo da alma refugida das tormentas do mundo para o ineffavel asylo da F e das Esperanas! E entre o santuario e o rio, como intermedio e transio dos dois extremos, a casinha do Pastor, alva como a confiana, verdejante e florida como as promessas, recatada como a esmola, inexhaurivel no seu celleiro como a Providencia, tcita como a meditao, com as suas portadas bem abertas como a paz, com as costas para a torrente, o rosto para a arca santa, os olhos atravez das arvores de Deus para o firmamento..... O mesmo nome de S. Mamede, com que se appellidam o santuario, a torrente, e o albergue, uma nova harmonia. Mamede, ou Mamante, foi um humilde e obscuro pastor de gado na Capadcia, e do qual toda a Egreja do Oriente prega virtudes e milagres. Sendo ainda mancebinho, acabou martyr, por volta do anno 274 da nossa era. O logar santo, para o Santo; o medonho e vertiginoso, para o Martyr; o vigilante e benfico, para o Pastor; o tudo, e os silvestres e pacificos arredores, para o Menino, j moo na valentia, ou para o moo, ainda menino na innocencia. No poude ser o acaso, quem tantos acrtos concertou. [23] V Era a residencia, quando a ella chegmos, decrpita e caduca: apparencia de choa fabricada de pedra ensssa, escura e descommoda no interior; por fora negra, com alpendres a aluir-se para o pateo apoquentado de inuteis e desgraciosos compartimentos. A velhice do derradeiro possuidor a havia em parte feito, em parte deixado, chegar quelle estado. A transformao foi rapida e completa. Os alpendres desappareceram. Na casa remoada entrou por vidraas abundancia de luz. O pateo desafrontado foi revestido, como a frontaria do edificio, primeiro de cal bem candida, logo de roseiras e limeiras bem viosas. Um cedro n'elle plantado comeou de levantar-se animoso e gentil; e sei que n'esta hora, em quanto de seus dois plantadores um j no existe na terra, o outro declina para o occaso, elle, medrando ainda, j, como lh'o eu augurra nos meus versos, braso do presbyterio; tem no seu tronco cinco palmos de circumferencia, e perto de quarenta de altura. [2] O novo Prior, o Rev. do snr. Padre Antonio Jos Rodrigues de Campos, a quem Deus dilate a vida para felicidade do rebanho, varo de virtude, e espirito cultivado [24] por Letras, filho d'aquellas boas terras, e amigo nosso que sempre foi, como ainda hoje o do nosso nome, conserva e zla tudo aquillo com amor. para mim delicia o considerar, que sombra grande d'aquelle cedro, que eu regava todos os dias, quando um menino de tres annos o poderia ainda arrancar sem custo, ler talvez, depois do seu Breviario, este livrinho das minhas memorias, em que deposto o seu nome mollemente reclinado entre tantas outras saudades minhas. VI J os leitores conhecem, como quer que seja, o asylo que me escondeu sete annos, desde Outubro de 1826 at Fevereiro de 1834, o ninho em que nasceram, sem pensarem em abrir o vo que hoje abrem para o mundo, estas poesias montesinhas. Mas, como todo o seu assumpto se no limita ao que deixo esboado, peo-lhes ainda um pouco de indulgencia, para lhes dar a conhecer, por alto, os arredores. * O passal rodeia por todos os lados a egreja e a residencia, correndo por traz d'ellas at onde lh'o consente o pendor do terreno, a escoar-se cada vez mais rapido para o rio de S. Mamede. Por essas lombas inclinadas, fronteiras encosta alta e erma de Falgozelhe, se boleiam [25] melancolica mas graciosamente as suas hortas, os seus pomares, a sua fonte, as suas parreiras, e as fraldas das seras, que at ali chegam descendo pela direita e pela esquerda, depois de povoarem toda, com o seu oiro sussurrante, a larga esplanada horizontal, por onde, ao sahir da egreja, folga a vista de se espraiar, at ir bater, l ao longe, na capellinha e matta de S. Sebastio, que lhe servem de limite. Seras eram os atrios, que os Romanos pelas suas aldeias folgavam de avisinhar aos templos de Ceres, e mais divindades protectoras da Agricultura. Que mais proprio, para um povo agricola como este, do que achar a casa do Creador, e a do seu dispenseiro, no centro da abundancia das messes, e saudal a com a invocao de um Pastorinho santo? O caminho publico atravessa desde o sobreiral de S. Sebastio, por entre duas grinaldas de oliveiras e vinha, o meu passal at ao adro; costeia a egreja e a casa pela direita, e, em demanda da serra alta, l se vai mergulhando para a ponte, deixando n'uma de suas orlas a frescura sombria da fonte sobre as hortas, na outra os remanescentes da egreja antiga, um altar de pedra n'uma capella, meia de pedra meia de silvas, assoberbada com um S. Jorge de marmore, a cavallo, a brandir ainda um troo de lana enferrujado de musgo. [26] VII Detenhmo-nos poucos minutos, se vos apraz, ao-p d'este altar, onde j ninguem ajoelha, sobre sepulturas que hoje so tremoos, e recordemos a obscura historia d'este sitio. Por que razo s as grandes ruinas se ho-de haver por merecedoras de atteno? Todo o passado poetico; todo o evocar imagens humanas de sob a terra que pisamos, proveitoso para alguma coisa. Nas solides, mormente como esta, consola o saber que nem sempre a brenha foi brenha, e que onde hoje, por entre o rugir das folhas, s algum pipilar de ninho quebra a mudez da Natureza, houve outr'ora actividade, affectos bons, e at festas. Cabe pois saber, que, em tempos mui afastados, viveu na povoasinha da Talhada, logar emboscado, de pouco sol, pouca terra, e achegado pela margem de c s aguas do S. Joo do Monte, que logo a diante troca o nome no de S. Mamede, um moo por nome Jorge, humilde de gerao como tudo quanto por ali nasce e se cria, mas de corao alto e espiritos levantados. Namorra-se Jorge (me contou n'um sero do Natal uma velha, que o ouvira em pequenina a seus paes, que o tinham recebido no sabia de quem)... mas emfim, namorra-se, que o sabia ella, de certa moa de alem-rio, guardadora de cabras, mas filha de um Capito, e sobrinha em primeiro grau de um snr. Vigario. L de baixo, perto da [27] sua vivenda entre penedos, levava, os dias com os olhos sempre iados aos cabeos de Falgozelhe, na outra banda, caa da sua saia de serguilha, ou do seu sombreiro preto; e ainda no de todo malcontente, quando, por entre os penedos pardos e as urzes cr de fogo, a enxergava, pendurada borda do precipicio, e pascendo descanadamente uma das cabrinhas que obedeciam sua voz melodiosa. A voz da serrana era em verdade um dos seus dotes. Quando a esperdiava cantando n'aquellas solides, parecia-lhe a elle, que l de baixo lh'a estava captando com ambas as mos, escutar um Anjo de amor escondido entre as nuvens; e quereria mal at ao rouxinol que lh'a interrompesse, porque no sabia de coisa mais de molde para o seu corao. Vel-a sua vontade, no a via se no aos domingos na egreja; e nem ento, que para esses dias tinha ella umas roupinhas muito scias, meias muito alvas, e tamancos de galo de oiro, que o aterravam, mostrando-lhe que maiores obstaculos ainda haviam posto entre os seus affectos a fortuna e o nascimento, do que entre as suas vivendas a corrente das aguas. Fazem-se pontes para os rios; no se fazem que prestem para communicar dois estados to diversos. * Amor verdadeiro pode ser platonico algum tempo; mas poesia; e poesia no vida. Ousou, e declarou-se a medo sua formosa; no foi repellido. Affoitou-se a mais: [28] ao impossivel. Abriu-se com o tio Vigario em confisso. O que entre elles se passou, no se sabe; taboas de confessionario no so carvalhos dodnios que chocalhem tudo. O que se sabe, que a moa no tornou a apascentar para aquella banda, e que elle, pouco depois, deixou a terra, onde tinha me e irmos pequenos, sem dizer nada a ninguem, e no levando seno o fatinho que tinha no corpo, o seu cajado, o seu espirito, que segundo dizem, era grande, e o seu amor, que no era pequeno. Constou, ao cabo de annos, que se tinha ido embarcar em um navio d'el Rei, e que se abalra por esses mares de Christo, sabe Deus para onde, e para qu..... No meio de uma furiosa tormenta, correndo grande perigo de perdimento, assim a fazenda que andra moirejando, como a propria vida, apegou-se com o Santo do seu nome, e lhe prometteu que, se o levasse com tudo seu a terra de salvamento, lhe mandaria fundar, e lhe dotaria, uma capella da sua invocao com duas Missas por semana, defronte de Falgozelhe, onde vivia a noiva do seu corao, por cima da Talhada, onde tinha os irmos e a me, e pegada com a egreja onde o baptisaram a elle, e onde a avistava todos os domingos..... Mas de crer que n'essa imagem se no demoraria muito em semelhante lance, em que as ondas formavam, por instantes montanhas to altas e escarpadas, porm mais temerosas e feias que ess'outras, entre cujas quebradas, e por cujos visos, elle varira a sua infancia. [29] Acudiu-lhe o Santo; e Jorge cumpriu o promettido. Tornou Talhada, erigiu a capella, comprou fazendas em Angeja, que em boa e devida forma lhe adscreveu para o seu culto, e nunca mais tornou a aventurar-se sobre aguas do mar. Reliquias so pois da sua obra a Imagem e as pedras que ainda ali se divisam. O de mais, j desgastado do tempo, foi demolido, para ir servir como materiaes na edificao de parte da residencia, e da egreja nova, que j sabeis lhe esto visinhas. * Mas o fim de seus amores?me perguntareis vs. Memoria essa que eu tambem procurei, porm no consegui desencantal-a. O que s pude desenterrar da tradio, foi: que este mesmo Jorge viera a casar-se na freguezia; que tivera um filho nascido na pvoa da Talhada; que este se ordenra de Clrigo, fra a Roma, e arribra a Cardeal; em memoria do que, ainda na actual egreja se conserva, herdada da antiga, e mandada por elle de Roma para aquellas suas brenhas muito amadas, uma Cruz de quatro palmos de altura e um de largura, com braos em baixo e em cima, oleada de verde, doirada nas pontas, e n'ella pintados tres cravos, duas chagas, e uma cora de espinhos. V se, venera-se, e commenta-se, como o acabamos de dizer, pendente na parede do [30] arco cruzeiro da banda direita; e affirma-se, que na capella de S. Jorge permanecra com egual honra em quanto ella durou. Agora, se este em Roma purpurado, filho da rustica humildade de uma pvoa, em que o maior personagem que descobri foi um fuzeiro velho, e onde o que s fazia bulha no meu tempo era um pequeno moinho, rto por todos os lados aos ventos e chuvas, foi, ou no, nascido do consorcio a que o Padre Vigario e seu irmo se tinham opposto, eis ahi o que eu no alcancei; e no quero invental-o. Provavel me parece que sim, quando me lembro do que a minha velha me contava d'aquelles amores, e o combino com a ideia que formei da constancia no bem querer dos moradores da minha serra. A moa deveu de conservar-se donzella, e fiel. Quanto a Jorge, qualquer apostaria que o foi sempre. A fortuna entulhra com riqueza o abysmo que os separava; e S. Jorge, que no Santo para meias victorias, havia forosamente de pagar com bizarria o obsequio do seu devoto. Piamente podemos portanto acreditar, em que, diante d'aquella Imagem de pedra, muitas vezes o marinheiro e a sua formosa de esquecido nome ouviriam juntos a Missa; e talvez diante d'aquelle mesmo altar os recebesse o proprio Padre Vigario, indo depois jantar com elles, e beber sade da futura gerao algumas malgas de vinho verde na sua casa da Talhada, ao rouco murmurinho das aguas de S. Joo do Monte. [31] VIII A egreja velha, de que foi parte esta capellinha, fra o antigo oratorio dos Condes da Feira; e a residencia, j depois duas vezes transformada, albergue do feitor que elles ahi tinham para lhes receber os fros, e lhes tratar d'aquella sua quinta, chamada, como j tocmos, das Limeiras. Cederam tudo elles mesmos, concitados de sua piedade; por quanto, havendo sido a primeira freguesia d'estes povos no Guardo, do Bispado de Viseu, por de traz da serra da Alcoba, e a tres leguas de distancia da que ao presente , d'ali a haviam achegado para Alcafaz, pertencente agora freguezia de Agado, sitio ainda desfavoravel pelo estirado e descommodo dos caminhos; o que moveu os ditos fidalgos a darem ermida, casa, e quinta, com largas rend ......Buy Now (To Read More)

Product details

Ebook Number: 28127
Author: Castilho, Antonio Feliciano de
Release Date: Feb 19, 2009
Format: eBook
Language: Portuguese

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