A architectura religiosa na Edade Média

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Author: Fuschini, Augusto,1843-1911
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A architectura religiosa na Edade Média

Title: A architectura religiosa na Edade Mdia Author: Augusto Fuschini Release Date: August 8, 2010 [EBook #33377] Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) Nota de editor: Devido existncia de erros tipogrficos neste texto, foram tomadas vrias decises quanto verso final. Em caso de dvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrar a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Agosto 2010) A ARCHITECTURA RELIGIOSA NA EDADE-MDIA ENSAIOS DE HISTORIA DA ARTE A ARCHITECTURA RELIGIOSA NA EDADE-MDIA POR AUGUSTO FUSCHINI LISBOA IMPRENSA NACIONAL 1904 A Minha Filha Octavia Fuschini de Lima Mayer INTRODUCO As noes fundamentaes do nosso espirito so absolutamente indefiniveis. Sentem-se; nada mais. Se lhe procurarmos a definio, cahiremos em simples labyrintos de palavras, consistindo, quasi sempre, em verdadeiros circulos viciosos. Tomemos, para exemplo, o espao e o tempo, noes bem fundamentaes. O que o espao? o meio, sem limites, onde existem em continuo movimento todos os corpos; o que equivale a dizer que o espao o espao. O que o tempo? a serie indefinida de momentos, durante os quaes se realisa a successo dos factos physicos e moraes; o que equivale a dizer que o tempo o tempo. Assim, parece que as idas ou noes fundamentaes teem o singular caracter de ser facilmente comprehensiveis pela intelligencia humana, [VIII] sem que ella tenha palavras rigorosas ou phrases perfeitas, para as definir com sufficiente clareza. Dados o espao e o tempo, a materia e o espirito em perpetuo movimento produzem a totalidade dos factos e phenomenos physicos e moraes, constituindo o Universo, que sem as primeiras noes seria absolutamente impossivel e incomprehensivel. Pouco nos importa saber, n'este momento, se a materia e o espirito coexistem, ou se o espirito apenas um attributo da materia, organisada segundo leis desconhecidas. Os phenomenos passam-se como se fossem distinctos; deixemos, pois, a investigao d'este problema, que alis parece insoluvel, aos metaphysicos e aos theologos. O que podemos considerar quasi certo que a materia em movimento nos d as noes exactas do espao e do tempo; e o espirito em actividade nos d, tambem, as noes claras do bem, do bello e do justo, que so como as primeiras completamente indefiniveis na sua natureza absoluta. Quem aprecia o tempo e o espao? Os sentidos physicos. Quem aprecia o bem, o bello e o justo? Esse sentido especial e perfeitissimo, denominado consciencia, [IX] a faculdade de julgar que possue a intelligencia humana. As similhanas mostram-se ainda mais intimas. As noes do espao e do tempo so inseparaveis. A nossa intelligencia no pode conceber uma sem a outra. O bello, o bem e o justo manifestam a mesma qualidade. So noes correlativas. certo que a complexidade dos phenomenos animicos torna esta correlao menos evidente do que a primeira, mais simples e clara pela sua origem physica; mas, discutindo bem e com profundidade qualquer facto de ordem animica, chega-se a descobrir que uma d'estas noes do nosso espirito envolve, sempre, as outras duas em maior ou menor grau. Assim, pois, poderemos, sem grande receio de errar, estabelecer tres definies: A Arte a expresso do bello; A Moral a expresso do bem; O Direito a expresso da justia. Ora, como as noes do nosso espirito se manifestam subordinadas a leis geraes, temos tres sciencias, que estudam as manifestaes externas e visiveis da propria essencia do espirito humano. Eis-nos entrados no campo positivo e experimental. Um longo periodo historico prova j [X] que o nosso espirito successivamente perfectivel e evolutivo; no o sendo, de certo, nos principios fundamentaes, mas sim na applicao d'esses principios e na variedade infinita de combinaes, que se podem fazer com as idas, como se obtem com as notaes musicaes. Se nos fosse permittido, empregariamos a seguinte expresso: a perfectibilidade a lei fundamental do espirito humano, a evoluo o seu methodo. Convm, todavia, observar, como um facto historico e psychologico, que a alma humanadigamos a palavrano perfeitamente livre no pensamento e na aco. Deixemos a theoria do Livre Arbitio para ser definida em Concilio. Os astros, esses at, que esto sujeitos a leis immutaveis e mathematicas, soffrem perturbaes nas respectivas orbitas, por influencias ainda mysteriosas algumas, outras descobertas em certos casos. Ora, sobre as leis moraes as influencias so variadissimas; por isso, o astro espiritual, a Ida, caminha sempre em determinado sentido, s vezes, com enormes desvios. O raciocinio prev as causas d'essas grandes irregularidades e a experiencia demonstra a verdade d'essas previses. [XI] Em relao Arte, estas causas podem grupar-se em tres grandes categorias: 1. A influencia do meio natural, da atmosphera physica e cosmica; 2. A influencia do meio historico, isto , do conjuncto de circumstancias que em dado momento constituem a atmosphera social; 3. A influencia do meio particular de cada individuo, formado pelo proprio caracter e talento, pelas suas condies dentro da sociedade e da familia, ou pelo menos, dentro do pequeno grupo social, em que se executa o seu trabalho e se exerce a sua actividade. Teremos occasio de explicar mais tarde algumas applicaes d'estes principios; mas seja-nos permittido concretisal-os um pouco mais, principalmente o primeiro. Nas leis historicase a Arte tem historia e leisentre as influencias, actuando obscura e vigorosamente sobre o caracter dos povos e sobre os destinos das naes, a sciencia no conseguiu ainda definir bem a aco profunda dos elementos climatericos e geographicos sobre o espirito humano; todavia, essa influencia presente-se, ou melhor prova-se e deduz-se da diversidade das raas e dos caracteres moraes dos habitantes da terra. A forma humana, como incontestavel, soffre [XII] a influencia d'este meio externo e s modificaes d'essa forma correspondem modos de ser e intensidades differentes de intelligencia. Ora, se nas linhas geraes do nosso espirito se observa a aco dos agentes climatericos e geographicos, como a vida dos povos depende das proprias funces intellectuaes e, pelo menos, em forte proporo o bem e o mal proveem do exercicio da intelligencia humana, no vago presentimento mas verdade scientifica a existencia de leis, embora ainda no formuladas, que expliquem a correlao das idas e das instituies dos povos com a climatologia e a geographia da zona habitada. Na constituio de certas noes, esta influencia deve ser profunda. A noo de Deus, o melhor manancial da Arte, e o grupo de idas e de sentimentos, que em volta d'ella, como centro, constituem por assim dizer uma categoria do espirito humano, esto, sem duvida, n'estas condies. O exemplo excellente. Seja qual fr a origem da crena no sobrenatural, derive esta crena da intima essencia da alma, provenha da revelao divina, nasa da generalisao espiritual ou material das foras naturaes, funde-se na grandeza dos factos cosmicos, ou no receio dos phenomenos physicos, indiscutivel que a essencia e a evoluo [XIII] da ida de Deus e das formulas do culto externo offerecem caracteres mais ou menos harmonicos com as condies geographicas e climatericas, que lhes serviram de ambiente. O polytheismo guerreiro, honesto e nebuloso, dos povos septentrionaes da Europa e o polytheismo grego, livre e artistico, foram concebidos em meios differentes. As regies asperas e rudes do norte, onde os gelos e as tempestades, durante longo periodo do anno, difficultam a lucta pela existencia, no podiam ser habitadas pelas divindades do Olympo. O ceu puro da Grecia, a limpidez da atmosphera jmais escurecida por tempestades terriveis, a amenidade do clima, os contornos suaves dos montes, o murmurio poetico dos pequenos rios, as frescas florestas de platanos em valles abertos, o perfume de flores variadas, o sabor delicado dos fructos, em summa, as excellentes condies climatericas e geographicas da Grecia permittiram ao genio popular a creao de uma familia de divindades, em quem o amor sensual, o gso physico e a belleza das formas traduziram admiravelmente a doura das foras naturaes. As vagas enormes, revoltas e furiosas dos mares arcticos no podiam gerar a belleza do Eterno Feminino. Das ondas serenas do mar [XIV] Egeu, coroadas de espuma branca e transparente como finissima renda, que vinham quebrar-se com suavidade sobre a areia dourada das costas do Peloponeso, nasceu o formoso corpo de Venus, a expresso ideal da belleza da forma. E, todavia, germanos e gregos eram da mesma raa, d'esses aryas brancos e louros que dos confins da Bactriana, talvez por caminhos differentes, haviam emigrado, seguindo a trajectoria do Sol, que lhes indicava propheticamente a sua grande obra, a futura civilisao da Europa. Se fizermos tambem estudos sobre raas differentes, chegaremos aos mesmos resultados. A anthropomorphose da ida de Deus lei fundamental do espirito humano e at hoje o manancial mais rico de productos artisticos de todas as ordens. A representao physica e a definio moral da divindade derivam, sem a menor duvida, da idealisao e da generalisao das qualidades physicas e psychicas do homem. Pode haver duvida se, conforme o Genesis, o homem foi creado imagem e similhana de Deus; , porm, indiscutivel que na constituio d'este symbolo lhe demos muito da nossa forma e ainda mais do nosso espirito. Eram polytheistas as raas aryanas, segundo parece. A duvida pode nascer de que na Grecia [XV] o polytheismo pertencia s classes populares, emquanto os sabios criam na Unidade do Espirito. Assim, Anaxagoras, Socrates e a sua escola, em que floresceram os maiores sabios, philosophos, estadistas e artistas do grande seculo de Pericles, acreditavam na unidade de Deus; eram monotheistas. Seja como fr, facil de comparar a forma e o espirito de Jupiter, do Monte Olympo, com os de Jehovah, do Monte Sinai, isto , a concepo da divindade entre aryas polytheistas, os gregos, e semitas monotheistas, os hebreus. A figura sombria e magestosa de Jehovah no s era feita imagem e similhana do caracter hebreu; mas reflectia, tambem, a grandeza melancholica da cordilheira do Libano e das montanhas da Palestina. Esse Espirito, vivendo fra do cahos e creando a ordem entre os elementos, eternos como elle, pelo esforo da propria vontade omnisciente, ora energico e duro, ora manso e amoroso, pedindo a Abraho o cruel sacrificio do filho e contentando-se com a offerta no templo de algumas pombas brancas, era o reflexo d'esse clima da Palestina, onde, umas vezes, furiosas tempestades electricas rasgam as calliginosas nuvens e os raios fazem explodir os rochedos, ou o simoun, soprando dos areiaes ardentes da Arabia, [XVI] secca as plantas e prostra os homens; onde, outras vezes, os ventos frescos do Mediterraneo, fazendo voar no ceu azul bandos de nuvens brancas, levam a frescura e a vida flora tropical riquissima das campinas da antiga Juda. Se apreciarmos bem a natureza essencial dos factos mythologicos, que formam a biographia lendaria de Jupiter, encontraremos no o espirito ardente, sombrio e puro da divindidade hebraica, mas esse caracter leviano e sensual, que define a raa hellenica, pelo menos no ramo jonico. Foi ainda a aco do clima, que facetou os caracteres da raa; foram ainda estes caracteres, que se crystallisaram n'uma forma especial da ida de Deus. Emquanto influencia do meio social, que poderiamos escrever que no fossem paraphrases das idas e copias das leis positivas, que Taine expoz, com a maior lucidez de espirito e brilhantismo de estylo, na Philosophia da arte, depois applicada Grecia, Italia e aos Paizes Baixos? De facto, se o meio climaterico e geographico envolve e faceta o espirito humano, o meio social ou historico tem ainda mais profunda e directa influencia sobre o individuo. Assim, pode dizer-se, em rigor, que o homem [XVII] existe mergulhado n'uma atmosphera moral e intellectual, da qual recebe, se nos consentida a phrase, a alimentao animica. Ora, a aco d'esta atmosphera exerce-se tanto mais energica e activamente, quanto as manifestaes intellectuaes mais dependem do mundo exterior. A sciencia pode at certo ponto dispensar o applauso das multides; a arte, pelo contrario, exige-a, porque o seu principal fim consiste em corresponder a essa necessidade do bello, que parece ser qualidade fundamental da alma humana. Diz-se que Wronski descobriu leis mathematicas, que s podero ser bem comprehendidas em seculos futuros. Admittamos a hypothese. Affirmaremos pela nossa parte que artista algum ter a pretenso de crear primores para as geraes futuras, sob pena de no ter admiradores actuaes, o que lhe pede o proprio espirito, e compradores, o que em regra lhe exigiro as conveniencias particulares. A regra de boa philosophia que nos aconselha a sermos homens do nosso tempo, uma lei suprema para os artistas, imposta pela propria essencia da arte e pelas necessidades animicas e sociaes dos seus cultores. Assim, a influencia do meio social, que se exerce sobre todas as manifestaes do espirito [XVIII] humano, actua com maior intensidade nos de ordem esthetica. Convem, egualmente, attender influencia do caracter individual do artista, ao seu pequeno meio familiar, ao ambiente das amizades e dos odios que se forma em volta de ns sempre e mais actua sobre os grandes artistas, em regra, neurasthenicos e possessos da nevrose do genio e do talento. Taine tambem se refere a este ponto, um pouco ao de leve talvez. Sem a ousadia de o completar, citemos um exemplo curioso e caracteristico, um s para no avolumar esta modesta exposio. sabido que no seculo XVII Sevilha foi um riquissimo centro de Arte. Na casa de ouro reuniam-se, dia a dia, poetas, prosadores, pintores e esculptores, entre elles Cervantes, Quevedo, Murillo, Valdez Leal, Montaez, Herrera e muitos outros. N'esse seculo a escola hespanhola de pintura attingira o maior esplendor. Os chefes da escola sevilhana eram Murillo e Valdez Leal, que alis pouco conhecido fra da peninsula a no ser pelos eruditos. Murillo era um santo homem, modesto e simples no viver, um mystico absorto no amor de Deus e da familia, artista colossal, creado e feito pelo unico esforo do seu genio e pelo amigavel auxilio de Velasquez. Valdez Leal, pelo contrario, [XIX] era um genio atrabiliario, cheio de emulao ardente a roar quasi pela inveja, ambicioso e energico, bom catholico de certo porque era perigoso no o ser no seculo XVII, principalmente em Hespanha. Genio tinha-o, no tanto como Murillo; mas o genio transparece nos seus quadros, a nosso ver principalmente no formoso quadro do Bispo morto roido pelos vermes da morte, uma maravilha de perspectiva, de desenho, de cr e de effeitos de luz. O caracter d'estes grandes pintores traduz-se nas suas obras. O estylo vaporoso de Murillo, o seu estylo definitivo, offerece as qualidades do seu espirito. Colorido suavissimo, contornos um pouco vagos, expresses bondosas em assumptos mysticos, do uma impresso ideal aos seus quadros, dos quaes, se o nome se perdesse, se poderiam deduzir as qualidades do espirito do auctor. Valdez Leal tem qualidades extraordinarias, no duro como Joo de Castilho, mestre commum d'elle e de Murillo, nem violento como Herrera; mas sente-se na sua pintura a influencia da vontade e o azedume do caracter. Este exemplo parece-nos ser frisante e podia ser completado com outros, at entre ns e nos tempos modernos... Expostas estas doutrinas sobre a influencia [XX] do ambiente, que envolve a evoluo da Arte e actua sobre os artistas, convem observar que a aco do mundo exterior tende a diminuir com o desenrolar do progresso. , talvez, esta uma das causas da especie de anarchia, que hoje se observa na produco da Arte e nos estylos dos artistas. O excesso de individualismo d, sem duvida, liberdade e expanso aos genios; mas o genio a excepo e a regra o talento. Podemos, pois, acceitar como demonstrado, que a Arte evolutiva e as suas phases especiaes, os estylos, correspondem a estados do espirito humano, sob a influencia das condies particulares da natureza, da sociedade e at do proprio individuo. Appliquemos esta doutrina Architectura, porque os seus productos, pela propria grandeza e quantidade, se conservam melhor e se perdem menos, manifestando, assim, menores solues de continuidade. Limitaremos, por obvias razes, esta applicao Architectura religiosa nos tempos christos, o assumpto exclusivo d'este livro, fazendo, apenas, um breve schema. O Estylo Classico grego, modificando algumas qualidades e ganhando outras, produziu o Classico Romano. [XXI] O espirito do Christianismo, no Imperio do Occidente, obtendo a liberdade e a aco social, apoderou-se do classico romano, modificou-o, segundo as necessidades religiosas e do culto, gerando o Estylo Latino. Ao mesmo tempo quasi parallelamente, o Christianismo no Imperio do Oriente, fundando-se em outros elementos, creava o Estylo Byzantino. Sob a aco do elemento barbaro, os dois estylos, caminhando para o centro da Europa, se nos permittida a expresso, encontraram-se, harmonisaram-se, produzindo o Estylo Romanico. As modificaes profundas, occorridas nas sociedades dos seculos XI, XII e XIII, transformaram o Estylo Romanico, nascendo o Estylo Ogival, que atravessou tres seculos, para a seu turno se transformar, sob a aco poderosa da Renascena. Os estylos so, pois, los d'essa cadeia de phases architectonicas, que se estende atravez dos seculos, ligando a inspirao e o trabalho da Humanidade. Assim, a Arte a expresso do bello, e o Estylo a forma particular d'essa expresso, em determinado periodo historico. PARTE PRIMEIRA ORIGENS DA ARCHITECTURA CHRIST CAPITULO PRIMEIRO A LUCTA ENTRE O PAGANISMO E O CHRISTIANISMO O antigo espirito classico, que produzira as magnificas civilisaes da Grecia e de Roma, esmorecia, como esmagado sob o peso da sua propria e grandiosa obra, quando dois elementos novos, talvez regulados pela lei suprema da conservao e do perpetuo rejuvenescimento da Humanidade, se manifestaram com profundo vigor e intensidade no seio das velhas sociedades decadentes: o Christianismo e a invaso dos barbaros. Assim, os factos historicos, as idas e os sentimentos humanos, as instituies sociaes, a moral, a politica e a arte, se explicam pela aco reciproca e poderosa dos tres principios, o classico, o christo e o barbaro, que so as causas efficientes da edade-media e da civilisao moderna. J no tempo de Cesar e de Augusto, os primeiros Imperadores, cuja grandeza de genio incontestavel, a sociedade romana entrra em plena decadencia. Os [4] vicios da antiga Republica, que os bons cidados e os philosophos contemporaneos no haviam podido expungir, cavaram-lhe a ruina. O Imperio correspondia, sem duvida, s necessidades de corrigir ardentes ambies em continuas luctas, que produzem sempre a anarchia politica, e de imprimir aco energica e centralisadora enorme expanso das conquistas; mas o Imperio trazia na propria essencia dois vicios terriveis e inevitaveis: o despotismo, a extinco completa das ultimas liberdades publicas, e a constituio militar, como poder especial independente dos cidados, o militarismo segundo a expresso moderna. Na agonia da Republica, Cato de Utica previra o desastre. Luctara para o evitar, chegando at a apontar o homem, Julio Cesar, que devia destruir o quasi phantasma da antiga liberdade romana. O futuro Dictador, ainda muito novo, espreitava e preparava, entre os prazeres dos ricos e dos poderosos da Roma republicana, pelo amor das mulheres, pela elegancia, pelos costumes faceis e at pela lisonja, a origem da grandeza, que mais tarde encontrou no proconsulado das Gallias. Assim tambem, Napoleo, frequentando os sales politicos e litterarios do Directorio republicano, conseguiu ser nomeado general em chefe dos exercitos da Italia. Singular coincidencia entre dois homens de caracter to parecido, dois genios innegavelmente; um procura nas Gallias, a Frana, outro na Italia, a Republica Romana, as origens de futuros imperios! [5] Durante o Imperio, pelo menos nos primeiros tempos, as ambies foram enfreadas pela existencia do poder perpetuo da dictadura; mas, se algumas das antigas instituies conservaram os nomes, foram-lhes tiradas a pouco e pouco as ultimas funces. Os fracos lampejos da liberdade republicana em breve se extinguiram na escurido profunda do mais feroz despotismo, at hoje conhecido. O Cesar era dictador e pontifice-maximo, o soberano absoluto dos povos e o chefe espiritual das consciencias. Tambem certo que a energia da centralisao politica e administrativa do Imperio facilitou o espirito conquistador e a conservao das conquistas, mais do que o podia fazer a esphacelada Republica; mas, como consequencia logica, estas mesmas condies favoraveis prepararam o militarismo. Os exercitos nacionaes da Republica tornaram-se as legies cesarianas do Imperio, que lhes pagava e as dirigia, transformando-se a pouco e pouco em guardas do Imperador. Era natural e logica esta confuso entre o homem e o principio. A nao, o povo, a liberdade, os direitos dos cidados, tudo desapparecera encarnado na pessoa de um Cesar deificado. Os resultados eram fataes. Tiberio creou as guardas pretorianas para defeza da pessoa do Imperador. Sentindo a sua fora, os pretores imperiaes completaram depois logicamente a doutrina e as guardas pretorianas comearam a escolher os Cesares. O despotismo e a centralisao do Imperio accentuaram, assim, as causas da decadencia da sociedade [6] romana, dando-lhe, apenas, por algum tempo um falso aspecto de fora e de grandeza. Nos ultimos annos da Republica era j, na realidade, profunda a desmoralisao das classes superiores. O ouro das depredaes, feitas nas provincias conquistadas, os costumes luxuosos e dissolutos, importados com o ouro dos povos orientaes, os grandes latifundios, em que se dividia a Italia, possuidos por familias poderosas, haviam amollecido a antiga rigidez do caracter romano. So ainda hoje citadas e celebres as prodigalidades da magnificencia e do luxo de Lucullo, questor da Asia. As despezas excessivas de um estado de guerra constante em regies differentes e afastadas, a defeza de vastissimas fronteiras, j ento ameaadas em mais de um ponto, as estradas e as respectivas obras, pontes, castellos, campos entrincheirados, que constituiam a admiravel rede de communicaes militares romanas dentro e fra da Italia, as espoliaes dos grandes e pequenos funccionarios, exigiam o ardor do fisco, motivavam-lhe as violencias, exercendo-se, como sempre, sobre as classes populares. Estas pessimas sementes, lanadas no campo da democracia, ainda haviam sido contrariadas durante a Republica por instituies e franquias populares. O Imperio, nivelando a sociedade abaixo de um Cesar deificado de quem tudo e todos dependiam, extinguindo as ultimas liberdades, creando uma especie de crte de grandioso fausto, que no tempo de Elagabalo attingiu as loucuras orientaes nos costumes e no luxo, desenvolvendo [7] por necessidade o espirito e as foras militares, accentuou estas causas de decadencia. Nos comeos do Imperio, um philosopho epicurista, Petronio, deixou-nos uma face viva d'esse estado moral e social, n'uma satyra celebre e cheia de vigorosa ironia, o Satyricon. A religio polytheista perdera o prestigio e a fora. As classes superiores professavam um epicurismo devasso, elegante e atheu. O povo, sem crenas, debatia-se na miseria politica e economica. Os mythos do polytheismo podiam interessar imaginaes ardentes e poeticas; mas no consolavam desgraados, que sobre a terra sentiam apenas, sem uma esperana, a rudeza do trabalho, as crueldades da dr e o receio da morte. Os deuses tinham perdido o seu prestigio, porque no faziam milagres; esses deuses alegres e devassos, que acceitavam os Cesares por collegas e o deixavam, a elle, pobre povo, soffrer e morrer de fome, mais miseravel e esquecido do que as bestas das cavallarias imperiaes... A religio precisa de milagres, como a politica de grandes e espectaculosos factos, para se engrandecerem aos olhos dos simples. Esta necessidade do espirito humano mais vulgar comprehendeu-a Jesus Christo, o honesto e bom, o illuminado pela Justia Divina, elle, que tanto lhe repugnava fazel-os. A philosophia oppunha ainda impotentes esforos ao desabar da sociedade romana; mas bem na essencia era tambem epicurista. Alm d'isso, prgar a moral [8] pelo valor da propria moral, dizer aos simples de espirito que a virtude tem em si o proprio premio, exaltar a humildade e a pobreza aos pequenos, quando os soberbos e os ricos avassalam os bens e os prazeres do mundo, doutrina asss abstracta que s comprehendem os philosophos, embora s vezes no a pratiquem. Seneca, no principio do Imperio, ensinava esta doutrina ao povo romano, escrevia livros elogiando a pobreza; mas o philosopho esquecia-se, apenas, de que era feliz e riquissimo. A philosophia s uma grande fora, quando o exemplo acompanha a palavra. Por esse tempo, principio do Imperio, na provincia romana da Judea, manifestou-se o Christianismo. As causas efficientes d'este esplendido e profundo movimento do espirito humano no podem ser desenvolvidas e estudadas em trabalho d'esta natureza. A egualdade entre os homens de todas as raas e condies, o amor e a fraternidade humanas enunciadas como leis supremas, a f profunda na existencia de um Deus justo, feito imagem e similhana da bondade e da doura de Christo, a esperana n'uma vida eterna de felicidade e de goso, merecido premio das virtudes e boas obras sobre a terra, doce compensao dos soffrimentos d'este mundo, emfim, a essencia delicada do Christianismo desceu sobre os desgraados, os pobres, os enfermos, os escravos, essa enorme legio de miseraveis, affagou-os, levantou-lhes as almas, como a chuva fresca e crystallina levanta as cearas resequidas por longo sol ardente. [9] Falar aos escravos em liberdade, egualal-os aos senhores, reconhecer-lhes alma e direitos sobre a terra, embalal-os com a viso mystica de uma vida eterna, nunca o polytheismo tivera esta linguagem eloquente, nem os philosophos e os moralistas classicos haviam professado taes doutrinas. Devemos observar que a escravido no mundo classico era um facto legitimo, consequencia logica das organisaes sociaes. O cidado livre dirigia o Estado, o escravo trabalhava e produzia. As democracias gregas e a romana, como no Oriente, professavam a diviso das castas, embora mais adoadas. A cabea, os braos e os ps tinham funces hierarchicas differentes. A grandiosa estatua social repousava sobre o plintho da escravido: se o destruissem, o colosso ruiria em pedaos. Alem d'isso, o numero de escravos em Italia, principalmente na grande e populosa Roma dos Cesares, era enorme; prisioneiros de guerra uns, outros reduzidos escravido hereditaria ou por varias causas, mas em grande parte da mesma raa dos senhores, ou de raas equivalentes. A escravido moderna defendeu-se, por longo tempo, recrutando as victimas entre as raas negras ou indias da America, consideradas inferiores. O escravo do mundo antigo, recordando-se da passada liberdade, ou sentindo-se do mesmo sangue dos senhores, devia experimentar bem no fundo da alma o sentimento de revolta, que nenhuma miseria humana consegue suffocar. As grandes sublevaes servis, principalmente a ultima de Spartaco, [10] um seculo antes de Christo, confirmam estas observaes. A doutrina de Christo, cheia de amor, de esperana e de bondade, era tambem de molde para suggestionar a alma da mulher, incutindo-lhe a f e o ardor do proselytismo. O espirito feminino um instrumento perfeito e delicado. A natureza creou as mulheres para nossas amantes e mes, as duas expresses mais finas e elevadas dos sentimentos humanos; por isso, se no lhes concedeu outros em larga escala, as notas da alma feminina so n'estes de deliciosa finura, s vezes incomprehensivel para os homens vulgares. A mulher classica estava bem longe de ter subido ao logar elevado, que depois lhe deu o Christianismo no seio da familia. A grega vivia isolada no gyneceo, leve sombra do serralho dos povos orientaes. A romana subira um pouco; sendo, porem, ainda considerada sujeita ao marido, como os filhos ao patrio poder. O divorcio entre os antigos era um facto corrente e facil; ora, a mulher sente que o seu logar na familia. O adulterio, crime horrendo para as mulheres, soffria em geral penas infamantes ou a morte. A mulher classica era, em summa, uma serva, uma filha, uma forma de propriedade do marido. O Christianismo tornava-a companheira e egual ao homem. Christo dissera que o casamento na terra se mantinha no Ceu. Jesus defendera a adultera e, um dia, glorificou a loura mulher de Magdala, envolvendo a prostituta no doce manto do seu amor, glorificando-a perante os homens e salvando-a perante Deus. [11] O Christianismo tinha a linguagem, eloquente e expressiva, que entendem logo os simples e as mulheres. Assim, nos primeiros tempos, o florilegio christo riquissimo em martyres femininos. A mulher morre pela religio de Christo com a f e a resignao, diremos mais, com a vontade e a energia do homem. um facto singular d'este bello e grandioso movimento do espirito humano. O polytheismo era a religio da forma e da belleza, cheia de mythos absurdos e incomprehensiveis, religio de culto externo, secca philosophia encarnada em symbolos obscuros. O Christianismo era a religio do espirito, replecto de doces verdades e de sentimentos adoraveis, religio de culto interno, moral clara e divina que Jesus Christo expozera com phrases singelas no bello sermo da montanha. Os prophetas hebraicos haviam dito que seria espiritual a religio do futuro e constituiria o patrimonio da humanidade; que a piedade valia mais do que o sacrificio e o conhecimento de Deus mais do que os holocaustos. Ns vemos hoje realisada a grande obra de Christo. Os prophetas viram o futuro a quarenta seculos de distancia! Assim, se explica como o Christianismo teve uma expanso enorme, apenas comeou a ser evangelisado entre os povos classicos, sujeitos ao jugo do Imperio. O meio estava preparado, a doutrina era excellente. Os que soffriam os males de espirito, os Os que soffriam os males de espirito, os que padeciam as doenas da carne, os pobres, os enfermos, as victimas da sociedade classica, affluiam s catecheses, [12] bebendo com soffrega delicia o filtro espiritual do Verbo Eterno. A diffuso da religio christ em Roma, logo nos primeiros annos, constitue um facto assombroso na historia do proselytismo. J no anno 64 de Christo, o grande incendio, que devorou parte importante de Roma, pde ser attribuido malevolencia dos adeptos das novas idas, considerados conspiradores contra o Imperio e gente de costumes suspeitos e mysteriosos. Nero iniciou as perseguies, o que demonstra o espirito que reinava em Roma e o numero avultado de christos, que impelliam os poderes constituidos a extinguil-os pela fora e pela violencia. Os melhores imperadores romanos, assim considerados ainda hoje pelo genio politico e pelo caracter pessoal, foram os maiores perseguidores dos christos. Trajano, Marco Aurelio, Deocleciano alargaram as perseguies pelas vastas provincias do Imperio. O sangue correu em jorros, sem distinco de edade e sexo. A lucta foi terrivel e desegual entre as idas classicas, que ento representavam a ordem, e as idas christs, innovaes perigosas e immoraes, segundo a critica do tempo. Os primeiros tres seculos do Christianismo constituem o periodo brilhante dos martyres, cujo sangue cimentou a pedra, sobre a qual Jesus Christo fundra a sua Egreja. As perseguies no foram simples actos de crueldade, como o suppozeram os christos, que depois imfamaram os imperadores, fazendo a historia a seu modo. Eram actos politicos; ora, a politica de fora e [13] de violencia confunde-se com facilidade com a violencia de odios e de crimes. Eis o que explica a furia singular e ardente dos bons imper ......Buy Now (To Read More)

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Ebook Number: 33377
Author: Fuschini, Augusto
Release Date: Aug 8, 2010
Format: eBook
Language: Portuguese

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