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A Lenda da Meia-Noite
Title: A Lenda da Meia-Noite Author: Manuel Pinheiro Chagas Release Date: November 7, 2007 [EBook #23400] Language: Portuguese Original Publication: , Lisboa: Parceria A. M. Pereira--Livraria Editora Rua Augusta, 50, 52 E 54 Officinas Typographica E De Encadernao Movidas A Vapor Rua Dos Correeiros, 70 E 72, 1. 1906 Credits: Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net Nota de editor: Devido quantidade de erros tipogrficos existentes neste texto, foram tomadas vrias decises quanto verso final. Em caso de dvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrar a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Nov. 2007) COLLECO ANTONIO MARIA PEREIRA M. PINHEIRO CHAGAS A LENDA DA MEIA-NOITE 2. edio LISBOA Parceria A. M. PEREIRALivraria editora Rua Augusta, 50, 52 e 54 1906 LISBOA Officinas typographica e de encadernao movidas a vapor Rua dos Correeiros, 70 e 72, 1. 1906 A LENDA DA MEIA-NOITE N'um dos sitios mais pittorescos da Beira-Baixa, n'essa montanha vestida de verdura, onde se recosta Alpedrinha, e que domina o verdejante valle do Fundo, ergue-se uma casa ampla e antiga, de cuja varanda, extensa varanda de madeira, em cujos beiraes vem as andorinhas fazer os seus ninhos, se descortina a extensa paisagem, onde alvejam Val de Prazeres e outras villas e aldeias que matizam, com as suas casas brancas, o verde do arvoredo, e que tem como panno de fundo a imponente massa da serra da Estrella, coroada com as suas neves eternas. A casa no tem formosuras architectonicas, nem aspecto de palacio; apenas um edificio vasto, cercado de dependencias rusticas, tendo defronte do porto as cavallarias, casas de habitao dos criados, etc., que, desenrolando se em semi circulo, fecham um terreiro que d ao edificio campestre uma especie de pateo de [6]entrada. A parte mais caracteristica da residencia a extensa varanda de madeira, to usada na provincia, onde nas tardes de estio se respira a virao da serra, onde nas manhs de inverno se toma alegremente a restea do sol. Fica isolada a habitao que a largos traos descrevemos. Pegada com a fachada principal est o muro, onde se abre o porto da quinta. Esta assombreada pelo magnifico arvoredo, que via, com incrivel vigor, n'esse torro privilegiado conhecido na provincia pelo nome de cova da Beira. Para um lado a pouca distancia fica Alpedrinha, a pittoresca villa com as suas casas penduradas entre verduras da encosta da montanha, para outro lado a estrada desce at ao Fundo. Por toda a parte verdura, arvores, aguas, o ar purissimo das serras, os rumores mysteriosos das solides. encantadora a situao d'aquelle formoso eremiterio. No outono e no inverno a paisagem toma uns tons mais carregados e lugubres. A montanha assume um certo ar de grandeza. Nos soutos espessos dos castanheiros passa o furaco silvando com furia; a trovoada vae-se repercutindo de echo em echo pelas concavidades dos valles, e os relampagos illuminam, com a sua luz sinistra, o arvoredo que se estorce nos braos doidos do vendaval. Nos amplos sales d'esses edificios isolados ouvem-se rumores sinistros, e sons mysteriosos, e o vento, fazendo ranger os pilares da varanda, enta a musica triste das lendas populares. exactamente no outono que ns conduzimos o leitor casa da Fragosa, como por l se chama ao sitio em que ella fica. Os viscondes da Fragosa, que alli moram, tinham convidado alguns amigos seus para irem [7]caar nas suas terras, de frma que estavam reunidas bastantes pessoas no grande salo da residencia, junto da brazeira, no momento em que convidamos o leitor para entrar tambem e aproveitar o calor benefico do lume. j noite; a tarde estivera sobre-maneira ventosa e fria, de frma que os convidados, reunidos na varanda, para assistirem a um d'esses esplendidos occasos do sol, que so to frequentes no outono, tiveram que retirar e fechar-se em casa, deixando o vento gemer l fra, estorcendo os ramos do arvoredo. Accendeu-se a brazeira, e, esquecendo-se o frio e o vento, entrou-se n'uma palestra to animada, como se se estivesse n'uma sala de Lisboa, a dois passos do Theatro Italiano, e sentindo-se, a rodarem nas ruas, as carruagens da cidade. O salo era vasto e simples, mobilado antiga. Nas paredes alguns velhos quadros sombrios; pesadas cadeiras, de ps torneados, forradas de coiro lavrado, dispostas em circulo, em torno de uma mesa de pau santo, ornava apenas um canto da sala immensa. N'esse canto, onde se agrupavam a familia e os convidados, havia uma profusa illuminao. O resto da sala ficava perdido na sombra. De vez em quando surgiam d'esse fundo escuro os criados que vinham fazer algum servio. O toque da campainha no parecia que os chamava, parecia que os evocava. Saam de subito da penumbra, como se surgissem do cho. O aspecto da casa era, portanto, o mais legendario que podia imaginar-se. A conversao prolongra-se ainda depois do ch! Um medico, que residia em Alpedrinha, para onde viera, no exercer a clinica, mas tratar da sua propria saude, arruinada, em proveito da saude dos outros, homem [8]de espirito fino e amavel, fra quem sustentra principalmente a palestra, ajudado por um sr. Lucio Valena, escriptor de certa aura, e caador intrepido, e por uma filha dos viscondes, gentil menina, sympathica, alegre e desembaraada, que, apesar de ter vivido sempre em Castello-Branco, e de ter ido apenas uma ou duas vezes a Lisboa, no tinha nenhum dos acanhamentos tradicionaes das provincianas de romance. A pouco e pouco, porm, esmorecera a conversao: pausas cada vez mais amiudadas cortavam a palestra, e o medico j tirra o relogio para vr se no am sendo horas de retirada. Mas o visconde da Fragosa estava agarrado, com o commendador Madureira, e alguns visinhos de campo, a um impertinente boston, e em vista d'isso ninguem ousava ser o primeiro a tocar a recolher. N'estes silencios ouvia-se distinctamente o rugir do vento na serra, e os seus gemidos e silvos nos corredores da casa. Meu Deus! que tristeza de noite! disse de subito uma joven senhora, de notavel formosura, extraordinariamente pallida, mas com umas opulentas tranas negras, e uns olhos negros tambem, grandes, rasgados, que lhe illuminavam com estranho fulgor o rosto de alabastro. O vento geme com uns sons to lugubres, que nos parece ouvir as queixas dos phantasmas. uma noite de lenda allem! Para isso, acudiu o doutor Macedo, falta a chuva, a trovoada, a neve e muitos outros accessorios germanicos. O vento s no basta. V. ex.a gosta de lendas, sr.a D. Isaura? perguntou inclinando-se para ella um elegante moo do Fundo, [9]em quem pareciam ter produzido uma impresso profunda os olhos negros e a romantica pallidez da filha do commendador Madureira. Se gosto de lendas! respondeu a pallida menina. Ah! de certo, adoro-as, mas gosto de as lr em Lisboa, no meu gabinete e luz do sol. Sem mise-en-scene no prestam, observou com toda a gravidade o doutor Macedo. A que chama mise-en-scene, doutor? perguntou Isaura. O Lucio que lh'o explique, minha senhora; no quero invadir os seus dominios. Oh! meu Deus, acudiu o escriptor, no difficil de adivinhar. O doutor entende que as lendas devem ser lidas e apreciadas noite, no meio do silencio geral, quando se est ssinho, n'um velho castello de Anna Radcliffe, cheio de alapes e de subterraneos, quando o vento geme lugubremente nos corredores, e faz oscillar a luz da vela que illumina a nossa solitaria vigilia. Creio que o doutor, acudiu Lucio voltando-se rindo para elle, dispensa que a vela esteja n'um craneo, em vez de estar n'um castial, e que haja um cemiterio por baixo da janella. Dispenso... dispenso... acudiu o doutor com a mesma imperturbavel gravidade, quero dizer... no julgo indispensaveis esses accessorios, mas no posso negar que augmentavam de um modo notabilissimo o effeito phantastico da narrativa legendaria. Meu Deus! exclamou a pallida Isaura. Fazem-me morrer de susto com essas historias pavorosas. Hoje com toda a certeza no durmo. Que ida! necessario que no tenham a minima dse de sensibilidade para [10]assim estarem zombeteando a respeito de coisas, que me produziriam uma impresso tamanha, que os meus nervos de certo no resistiriam. Estou j toda tremula! Mas, minha senhora, exclamou o doutor Macedo, as lendas so como os ananazes. Ha os nascidos ao ar livre, na sua terra propria, e ha-os desabrochados artificialmente com o calor da estufa. N'um velho solar provinciano, ao som lugubre do vento nos corredores, n'uma noite de inverno sulcada de relampagos, nasce a lenda to naturalmente como o ananaz no Brazil. N'uma sala de Lisboa, forrada de espelhos, ornada de macios sophs, entre os rumores meridianos da rua, a luz clara e alegre do sol, a lenda no pde ter mais sabor do que um ananaz de estufa. Jesus, meu Deus, exclamou D. Isaura, percebo isso perfeitamente, e bem sei que o phantastico s pde produzir toda a impresso de que susceptivel no scenario que o doutor descreve: mas que levado a esse ponto, o phantastico produziria no meu espirito um funesto effeito. Matava-me ou enlouquecia-me! Ah! tornou ella, eu adoro o ideal, mas o ideal pde tambem partir as cordas da minha alma. Tomo o partido de Isaura, disse no sem alguma ironia a filha dos viscondes de Fragosa, linda menina de cabellos castanhos claros e olhos azues, de um azul to vivo que produziam s vezes a sensao de olhos negros, como se fossem aquelles reflexos azulados da aza negra do corvo; tomo o partido de Isaura. Os senhores esto fallando ahi como creaturas vulgares incapazes de sentirem profundamente as grandes commoes. Para as almas privilegiadas os grandes prazeres da imaginao muitas vezes so tambem o martyrio. [11]So as Ophelias, as Marias de Noronha, as creaturas ideaes cujos corpos so apenas, como o da irm do bispo Myriel nos Misrables, de Victor Hugo, pretextos para conservarem no mundo almas de anjos. E cuidas que no ha na terra esses entes, cujas expresses mais sublimes foram encontradas por tres grandes poetas que acabas de citar, Garrett, Shakespeare e Victor Hugo? acudiu vivamente o enthusiasta de Isaura, que sentira o leve epigramma, que o seu idolo no comprehendra. No cuido tal, Henrique. A prova de que os ha que Isaura um d'esses entes. Por quem s, Leonor... acudiu Isaura com uns certos ares de modestia, que ainda mais desesperaram o seu apaixonado. assim, tornou Leonor. Tu, Isaura, sentes que se partiriam as cordas da tua alma, se quizesses lr noite n'um quarto de uma velha casa provinciana uma historia de phantasmas. Morrias se te achasses ssinha noite n'uma sala de lugubre aspecto. Porque? Porque tens a imaginao exaltada, a sensibilidade nervosa das Ophelias e das Marias de Noronha! E no admirava, acudiu Henrique Osorio que assim se chamava o moo do Fundo, no admirava, sr.a D. Isaura, que v. ex.a tivesse medo de estar ssinha n'um castello de Anna Radcliffe. Nem todas podem ter a imaginao calma, o prosaico bom senso, a fria intrepidez de Leonor. A marqueza da Lusacia, de que falla Victor Hugo n'um dos seus poemas, preferia perder a soberania do seu marquezado a ir passar a noite ssinha, como o ordenava o costume tradicional, no castello de seus avs... [12] Logo encontrou quem a acompanhasse, interrompeu Leonor ironicamente. E no seria s ella. Isaura, ouviste? acudiu Leonor rindo com tal ou qual amargura, se quizeres passar alguma noite n'um castello legendario, como a marqueza da Lusacia, j tens trovador que te acompanhe, ao bater da meia-noite, e que te cante: Si tu veux, faisons un rve, Montons sur deux palefrois, Tu m'emmnes, je t'enlve. L'oiseau chante dans les bois. Isaura sorriu-se sem comprehender bem a lucta que em torno d'ella se travava; Henrique Osorio calou-se. Leonor, um pouco arrependida de ter mostrado um tal ou qual azedume, voltou-se para sua me que resonava recostada na sua poltrona, e, chamando-a, disse-lhe algumas palavras em voz baixa, convidando-a a que lembrasse a seu pae que eram horas de pr um termo ao boston. O doutor levra a mo aos labios para cumprimir um bocejo, e Lucio Valena, sorrindo-se, contemplava a esplendida formosura de Isaura, e sses olhos que Deus fizera to formosos, e que no reflectiam comtudo seno as preoccupaes pueris da mulher da moda, e da lisbonense frivola. No meio d'este silencio ouviu-se o vento bramir com mais fora, para depois gemer com mais tristeza, parecendo que se estabelecia um dialogo entre os espiritos atmosphericos, e que aos rugidos ameaadores de um demonio respondiam as queixas plangentes de um ente fraco e debil. [13] De subito ouviu-se ao longe, ao longe, vibrar uma badalada no sino de S. Martinho de Alpedrinha. O vento soprava d'aquelle lado, e trazia nas suas azas as lugubres vibraes do bronze. Ouviu-se em profundo silencio uma, duas, tres... doze badaladas. Meia-noite! disse naturalmente o doutor, quebrando o silencio em que todos estavam, porque todos tinham estado contando as horas. Mas a voz do doutor tambem tomra involuntariamente como que uma sinistra entoao. D. Isaura soltou um grito. Jesus! disse ella. Que tem, minha senhora? perguntou Henrique sollicito e afflicto. Meu Deus! exclamou Isaura, que me aterraram com as suas loucas historias, que me puzeram n'um estado incrivel de sobre-excitao nervosa. Meia-noite! v? Meia-noite a hora dos phantasmas, a hora das apparies! E esta sala to lugubre, e este silencio to agoireiro! Minha senhora, exclamou o doutor Macedo alegremente, v. ex.a suppe por acaso que ns sejamos phantasmas, e que estejamos quasi a dissipar-nos em fumo como quaesquer entes mal-creados do mundo sobrenatural? V. ex.a est no meio d'um batalho de gente viva capaz de affrontar dois subterraneos de Anna Radcliffe, tres conventos de Lewis, reforados ainda pelos mil e um phantasmas de Alexandre Dumas. Oh! tornou Isaura toda tremula, mas que a meia-noite soou de um modo to lugubre... E ns a esta hora ainda a p Oh! tornou Isaura toda tremula, mas que a meia-noite soou de um modo to lugubre... E ns a esta hora ainda a p... [14] V. ex.a deita-se mais cedo em Lisboa? perguntou o doutor. No, mas... Mas que a meia-noite s aterra os que lhe do mportancia. uma hora covarde e manhosa, que, se v a alegria do baile, as salas illuminadas, as danas caprichosas e revoluteadoras, entra pacatamente como outra hora qualquer, at com mais risos e mais alegrias, accendendo mais o fogo das walsas, cumprimentando para todos os lados amavelmente. Se v o estudioso debruado sobre os livros, indifferente e sereno, entra timidamente, nos bicos dos ps, e abafa at as suas proprias vibraes; se encontra n'um sero de familia a conversao alegre, o bule de ch em cima da mesa, as cartas do boston para um lado, um livro para outro, bate porta discretamente, e annuncia que tempo de se recolher cada qual para o seu leito. Ora agora, se encontra gente que espera com susto, que est prompta a desmaiar apenas ouvir a primeira badalada que a annuncia, ento eil-a que toma uns ares pavorosos, engrossa a voz, faz entrada solemne, espalha em torno de si o terror e o assombro. Fra com semelhante fanfarro! necessario darmos-lhe uma lio mestra! Peo a palavra para um requerimento. Hein? disse l da mesa do jogo o visconde da Fragosa, que aspirava deputao. Est concedida, visconde? disse o doutor, rindo. Mas que diz voc? tornou o visconde muito espantado dos risos com que os interlocutores do Macedo acolhiam a sua ida. Bem! Passo adiante. Requeiro que para todos os effeitos seja abolida a meia-noite. [15] Approvado por unanimidade e mais um que o visconde, tornou, rindo, Lucio Valena. Agora queira o sr. deputado apresentar uma proposta indicando o modo pratico de se levar a effeito essa medida importante. Proponho, tornou o doutor com gravidade comica, que de manh em diante affrontemos a meia-noite rosto a rosto, e lhe toramos o pescoo. Mas o meio? o meio? o meio pratico? bradaram Lucio e Leonor. O meio o seguinte: O mau tempo ameaa prolongar-se, e ns ou no podemos caar, ou no podemos prolongar a caa por todo o dia, sob pena de estoirarmos ahi de frio por essa serra. Portanto noite estamos frescos e descanados, e podemos protrahir o sero. Proponho que organisemos um Decameron para zombarmos da meia-noite, como os narradores de Bocaccio zombaram da peste de Florena. Cada um de ns, que se sentir para isso com foras, se compromette a compr uma historia phantastica, uma lenda, um conto maravilhoso que ser lido aqui ao bater da meia-noite. D'essa frma affrontamos face a face a terrivel inimiga do repouso da sr.a D. Isaura, e, se ella ainda ousar fazer uso dos seus sortilegios, comnosco se ha de haver! Apoiado! apoiado! bradaram todos menos D. Isaura, que soltou um grito, exclamando: Isso horrivel! No, minha senhora, uma receita, um remedio heroico, um banho russo. Vou-lhe combater os seus nervos. Mate-me, doutor! Qual historia, minha senhora! Mato a meia-noite! [16]Ver como depressa a moda acceita a minha ida. D'aqui a pouco tempo no se falla em Lisboa n'outra coisa, e a lenda da meia-noite ser o anti-espasmodico mais empregado. A ida de que effectivamente em Lisboa d'ahi a pouco tempo se no fallaria n'outra coisa foi o que decidiu D. Isaura. Ao mesmo tempo terminra a partida do voltarete, e um dos jogadores, homem j de cabellos grisalhos, vivo, espirituoso, illustrado, que no tempo do romantismo commettera alguns peccados litterarios, exclamou alegremente: Acceitam-me para companheiro! Eu ainda sirvo para uma montaria aos lobos, vamos a vr se tambem presto para uma montaria meia-noite. acceito com mil vontades, sr. Roberto Soares. Eu j o conheo como robusto campeo, e assento-lhe praa com enthusiasmo. Agora cabe-me designar o servio. Henrique Osorio, voc quem rompe o fogo. Henrique inclinou-se em silencio relanceando um ardente olhar pallida Isaura. Meia-noite e meia-hora! disse o doutor tirando o relogio. Saudemos, meus senhores, a ultima meia-noite que passa, e vamo-nos deitar. Todos se riram, e um borborinho alegre encheu d'ahi a pouco os corredores da habitao. Ainda por algum tempo se sentiu o rumor de portas que se abriam e fechavam, de passos que se perdiam ao longe, de vozes que se despediam. Depois caiu tudo em silencio, e s se pde ouvir o vento que continuou toda a noite a gemer lugubremente as suas monotonas queixas. [17] A previso do doutor realisou-se. O tempo continuou mau, e aggravou-se ainda com a chuva que principiava a cair em torrentes. A noite seguinte passou-se alegremente. Quando, porm, um relogio de parede, que fra posto na sala, indicou onze e meia, Isaura fez-se ainda mais pallida do que era, e houve no auditorio uns taes ou quaes signaes de commoo. A postos, meus senhores! exclamou o doutor alegremente. Firmeza, companheiros! Do alto d'aquelle relogio trinta minutos vos contemplam. Houve de novo entrain, risos e enthusiasmo. N'isto o sino de S. Martinho deu a primeira badalada da meia-noite. Soava ainda mais lugubremente do que na vespera. Solta no meio dos loucos rumores do vendaval, a vibrao do bronze parecia uma nota perdida de agonia e de desespero. Henrique! disse o doutor. Vamos! Ests um pouco pallido? a commoo do auctor e no a da meia-noite, juro-o aos deuses immortaes. V! inflexo lugubre, voz cavernosa, gesto sombrio! Henrique desenrolou um manuscripto, e, no meio da atteno geral, leu o seguinte: JULIETA CONTO PHANTASTICO I Eram onze horas da noite, e estava-se tomando ch em casa do meu amigo Frederico B * * *, em Bemfica. Havia uma roda d'intimos; a conversa estava animada e o meu amigo, a quem a alegria e o entrain dos convidados deixavam mais liberdade no cumprimento dos seus deveres de dono da casa, aproveitava-se d'isso para contemplar extasiado sua linda mulher, com quem casra havia pouco tempo, e que do seu lado lhe sorria tambem com a meiguice e ternura da mulher que ama devras. A conversa animra-se tanto, que se ia transformando em algazarra. Discutia-se acaloradamente a questo da existencia das almas do outro mundo, com grande desprazer d'um jornalista que por fora queria conduzir ao bom caminho [20]aquelles discutidores extraviados, propondo que se tratasse da bondade do ministerio, deixando de parte essas tolices, que no serviam para nada. Mas ninguem lhe prestava atteno, o que fez com que elle desesperado fosse lr pela centesima vez um artigo seu publicado n'um jornal que estava em cima de uma das mezas da sala. Essa produco do seu engenho, que o jornalista relia com tanto enthusiasmo merecia indubitavelmente to paterna sollicitude, porque elle e o revisor da imprensa tinham sido os seus unicos leitores. Mas o auctor tantas vezes o tinha lido, e tal admirao professava pelo seu proprio talento, que podra dizer, sem receio de ser taxado de mentirosoque o seu artigo tinha feito tal impresso, que lhe constava ter havido uma pessoa que o relia a miudo, e sempre com enthusiasmo crescente, honra de que se podiam gabar poucos artigos politicos da imprensa portugueza. Concluamos, bradava entretanto um medico materialista por dever de profisso, onde collocam os senhores esse agente mysterioso a que do o nome de espirito, teimando em appellidar assim pomposamente o mechanismo material, que a morte paralysa? Quando esse relojoeiro sombrio, que se chama tempo, quebra com mo despiedosa as rodas complicadas do nosso systema vital, onde se refugia esse ente inutil, esse ser impalpavel a que os senhores espiritualistas querem dar as redeas do governo d'este barro quebradio, que constitue o homem? E durante a vida quaes so os laos invisiveis, que prendem o escravo ao senhor, o corpo material e fragil alma etherea e immortal? Tremendo absurdo, utopia talvez respeitavel, sublime tolice pela qual se tem sacrificado innumeras geraes! Ah! mas [21]sobretudo, doido devras quem imagina que essa inveno impossivel, resultado das aspiraes da humanidade para a existencia eterna, possa vir aos cemiterios animar os restos putrefactos dos reis da creao; quem tal suppe, no sentiu nunca debaixo do escalpello anatomico o cadaver inerte e despresivel, nem pde avaliar com a vista infallivel da sciencia o nada immenso das vaidades humanas! Fra com o materialista, bradou um rapaz enthusiasta; sabes tu, meu caro doutor, que a primeira vaidade humana cujo nada immenso tu devias avaliar, a vaidade da sciencia? Que sabes tu, presumposo Hippocrates, que tens de recuar vencido perante o primeiro obstaculosinho, que a natureza caprichosa queira oppr vista infallivel, como tu dizes, do saber dos homens? E s tu que andas perdido no meio da confuso dos systemas medicos a procurar no labyrintho scientifico o fio conductor que te est sempre a escapar das mos, s tu que pretendes entrar com passo firme no insondavel labyrintho da eternidade?... Espera, continuou elle vendo entrar um mancebo muito pallido, que foi apertar a mo de Frederico, e comprimentar a dona da casa, queres-te convencer? Pois ahi tens tu um homem vivo, que teve relaes directas com um phantasma. Roberto, assenta-te ahi, e conta-nos immediatamente a historia do teu espectro, se v. ex.as no se oppem a isso ainda assim, continuou elle, voltando-se para as senhoras presentes, que tinham escutado a discusso metaphysica, com ligeiros signaes de aborrecimento. Propr a senhoras uma historia de phantasmas [22]despertar-lhes a atteno, fazer-lhes passar nas veias o estremecimento do enthusiasmo. No sei porque, esses entes frageis, pallidos ou rosados, de olhos negros ou azues, alegres ou melancolicos, esses entes femininos encantadores e timidos adoram tudo o que os faz tremer, e recreiam-se sobre tudo com essas historias terriveis, em que o leitor estupefacto encontra um punhal ao voltar de cada pagina, um ladro esquina de cada periodo, um phantasma pelo menos em cada capitulo. Por isso a parte feminina da assembla acolheu a proposta com enthusiasmo: e a mim e aos outros homens, que estavam presentes, no desagradou a ida de ouvir uma historia terrivel, em petit comit, no pino da meia noite, tendo de voltar depois para casa por aquelles caminhos desertos dos arredores de Lisboa; a mim sobretudo, que tinha de passar pelas casas arruinadas de Campolide, sorria a ida de ir com a imaginao povoada de phantasmas, que poderia distribuir vontade pelos recantos d'essa paisagem to magestosa, quando a lua envolve os paredes solitarios na branca mortalha da sua luz, em quanto ao longe se desenha sobranceiro entre os campos verdejantes o perfil grandioso do aqueducto sombrio. Roberto, devemos dizel-o para honra sua, no se fez rogado, comprimentou silenciosamente a assembla, e comeou pouco mais ou menos n'estes termo Roberto, devemos dizel-o para honra sua, no se fez rogado, comprimentou silenciosamente a assembla, e comeou pouco mais ou menos n'estes termos: [23] II Cantava-se em Lisboa pela segunda ou terceira vez o Baile de mascaras. Era uma noite de delirio no theatro de S. Carlos. Franschini, o cantor sublime, fazia tremer de enthusiasmo a plata inteira, e a voz portentosa de madame Lotti despenhava sobre o publico palpitante torrentes de melodia e de sentimento. O personagem de Amelia, interpretado como ento o foi, deixava de ser um typo creado pela imaginao do poeta para se transformar, animado pelo Prometheo do genio, n'um ente real, cujos sentimentos traduzidos em suspiros de harmonia, iam arrancar os soluos dos peitos dos espectadores. Era o poema da paixo, com todas as suas peripecias, mas da paixo verdadeira, da paixo que geme e rasga os seios da alma, da paixo que verte lagrimas, de cujas feridas brota o sangue, e no d'essa paixo ficticia, cuja expresso convencional anima s a mascara, que a artista desafivella apenas desce o panno. Eu, perdido n'um canto da plata, escutava, como escuto sempre quando vou ao theatro lyrico. N'isso devo confessar-lhes que tenho idas um pouco originaes. O panno, que sbe lentamente no principio da opera, descerra para os outros espectadores meia duzia de taboas rodeadas por bastidores de lona, onde uns poucos de artistas vo cantar umas poucas de arias para divertimento do publico. Para mim como que uma janella encantada que se abre por onde eu me arrojo para os espaos azues do ideal. Os outros analysam com toda a paciencia a instrumentao e o canto, investigam se foram[24] executadas as leis do contraponto, e depois de satisfeitos applaudem compassadamente para no rasgarem as luvas, voltam-se bocejando, e comprimentam a senhora condessa de * * *, ou a senhora baroneza de * * *, cuja chronica escandalosa vo contar immediatamente ao seu visinho da esquerda. Mas eu no. A minha alma, que illumina o fogo do enthusiasmo, no pde ficar na terra, quando sente passar no espao o sopro da harmonia, da casta filha do co. Desapparece o theatro, desapparecem os espectadores, desapparece a fico. Arrastada no manto de fogo do ideal, a minha alma sente, enleva-se, palpita, geme, pranteia, solua com Macbeth o grito do remorso, suspira com Desdmona a cano da saudade, gorgeia com Helena o hymno da desposada, escuta com Rosina a meiga serenata, slta com Lucrecia o rugido da envenenadora, e volta depois terra, deixando-me ficar pallido, extasiado, porque entrevi em sonhos a deslumbrante claridade de um mundo desconhecido. Tinha comeado o segundo acto, e eu seguia cheia de um vago terror a scena lugubre do principio. As notas da aria de Amelia soavam-me aos ouvidos como dobres de finados, e quando a Lotti soltou aquelle grito de pavor, que vibrava sonoro e plangente pelo theatro, fazendo estremecer os espectadores, eu levantei-me pallido, convulso, e senti correr-me pela raiz dos cabellos o halito de fogo de uma mysteriosa commoo. O meu visinho olhou para mim espantado; sentei-me, deixei cahir a cabea entre as mos, e scismei. ideal, dizia eu, quando poderei finalmente sorver a longos tragos o teu nectar precioso na cinzelada taa da phantasia? [25] virgem dos meus sonhos, anjo das azas de ouro, quando poder a minha alma, abraando-se comtigo nas regies celestes, aspirar a plenos pulmes a balsamica aragem da poesia?... O que s tu, ente mysterioso, que assim bafejas o espirito dos grandes poetas, e lhes vaes murmurar, em noites de inspirao, os segredos sublimes que o vulgo profano admira, mas no comprehende? Oh! quaes sero as vises d'estes homens portentosos, e nas suas noites de febre, de delirio e de insomnia, em que mysticos amores te enlaas tu com elles, ideal sublime, ideal inspirador? E emtanto ns, os desherdados, bebemos com um riso alvar a agua insipida e lodosa dos prazeres do mundo, e caminhamos n'esta planicie monotona da vida, olhando com terror para o Sinai chammejante, onde campeiam, cercados da divina aureola, os harmoniosos prophetas, os validos da inspirao! No posso; falta-me o ar no recinto estreito da vida social; a prosa d'este mundo opprime-me o corao. A minha alma est sequiosa de amor, e este apparece-me sempre escoltado pelas conveniencias, trazendo sobre o rosto formoso a mascara ridicula dos interesses materiaes, ou a mascara odiosa do capricho sensual. Amor! amor! mas um amor como o teu, casta e pura Amelia, como o teu, Julieta, noiva gentil de Romeu e da sepultura, quero um d'esses amores sublimes, e, se elle no se encontra na terra, surge dos tumulos, pallida virgem por quem eu anhelo, e mostra-me ao menos n'um relampago as mysteriosas alegrias da eternidade! N'isto levantei a cabea, e os meus olhos involuntariamente [26]fixaram-se n'um camarote, que ficava pouco distante do logar que eu occupava na plata. Uma senhora de belleza maravilhosa estava ssinha n'esse camarote, e encarava-me com uma atteno extraordinaria. No sei porque gelou-se-me o sangue nas veias, e fiquei extatico a contemplar aquella esplendida formosura. Raras vezes tenho encontrado um rosto assim! A correco das linhas, a pureza dos contornos, a magestade do perfil deixavam na sombra os mais perfeitos modelos da antiga estatuaria. Praxteles quebraria desesperado as estatuas e o cinzel, se lhe fosse dado contemplar as inflexes suaves, a perfeio das frmas d'aquella viva esculptura. Se algum defeito se lhe poderia notar, era a rigidez marmorea da physionomia. Via-se que nem tristezas nem alegrias seriam capazes de alterar a regularidade do semblante, que s parecia ter vida nos olhos, que eram lindos a mais no ser, e d'onde emanavam raios magneticos e deslumbrantes, que enlouqueciam quem se atrevesse a encaral-os. Aquelle rosto assemelhava-se a uma urna de marmore, em cima da qual se tivesse collocado uma lampada de luz fascinadora. Era um fragmento de glo dourado levemente pelos reflexos de um vulco, mas essa physionomia tinha um no sei que de mysterioso e sombrio, que me impressionou profundamente. Olhei para o relogio. Os ponteiros marcavam no mostrador meia-noite em ponto. No theatro os conjurados cantavam o cro das gargalhadas, e repetiam rindo o estribilho: Ah! ch baccano-sul caso strano Andr dimani per la citt! [27] III Sem poder explicar a mim mesmo a fascinao irresistivel, que me impellia to imperiosamente contemplao d'aquelle formoso semblante, nunca mais desviei a vista do camarote. E ella, oh! ella olhava-me com uma meiguice de enlouquecer. Estava toda vestida de negro, e isso ainda mais contribuia para fazer realar a alvura da sua tez. Trajava elegantissimamente, mas com uma singeleza, que me encantou, a mim, que procuro quasi sempre o bom gosto na simplicidade. S ella occupava o camarote! Ssinha! Quem poderia ser? To nova, to formosa, e s! Oh! meu Deus! seria ella uma d'essas mulheres sem pudor, que arrastam por toda a parte o manto de seda da ignominia, que foram apanhar da lama, onde deixaram em troca o candido vo da innocencia? Impossivel! O seu porte modesto, a simplicidade do seu trajo eram um protesto vivo contra o descaro, e orgulhoso cynismo d'essas Messalinas venaes. Mas s! Quem sabe? Talvez a pessoa que a acompanhava, estivesse escondida na sombra do camarote; talvez tivesse sado. Tudo podia ser, mas a suspeita que no podia manchar nem por momentos a luz serena d'aquelle rosto angelical. E eu olhava-a deslumbrado; e uma transformao estranha se operava em mim. Parecia-me que as luzes do theatro iam esmorecendo a pouco e pouco ......Buy Now (To Read More)
Ebook Number: 23400
Author: Chagas, Manuel Pinheiro
Release Date: Nov 7, 2007
Format: eBook
Language: Portuguese
Publisher: Parceria A. M. Pereira--Livraria Editora
Rua Augusta, 50, 52 E 54
Officinas Typographica E De Encadernação Movidas A Vapor
Rua Dos Correeiros, 70 E 72
Publication Date: 1906
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