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A Illustre Casa de Ramires
Title: A Illustre Casa de Ramires Author: Ea de Queirs Release Date: October 22, 2007 [EBook #23145] Language: Portuguese Original Publication: , Porto: Livraria Chardron De Lello & Irmo, editores 1900 Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) Ea de Queiroz A Illustre Casa de Ramires PORTO LIVRARIA CHARDRON De Lello & Irmo, editores 1900 Pertence no Brazil o direito de propriedade d'esta obra ao cidado Francisco Alves, livreiro editor no Rio de Janeiro, que, para a garantia que lhe offerece a lei n. 496 de 1 d'Agosto de 1898, fez o competente deposito na Bibliotheca nacional, segundo a determinao do art. 13. da mesma Lei. PortoImprensa Moderna A ILLUSTRE CASA DE RAMIRES Obras do mesmo auctor: Revista de Portugal. 4 grossos volumes 12$000 As Minas de Salomo, 1 volume 600 Os Maias. 2 grossos volumes 2$000 O Crime do Padre Amaro. Terceira edio inteiramente refundida, recomposta, e differente na frma e na aco da edio primitiva, 1 grosso volume 600 O Primo Bazilio. Terceira edio, 1 grosso volume. 1$000 A Reliquia, 1 grosso volume 1$000 O Mandarim. Quarta edio, 1 volume 500 Correspondencia de Fradique Mendes, 1 volume 600 No prelo: A Cidade e as Serras. A ILLUSTRE CASA DE RAMIRES I Desde as quatro horas da tarde, no calor e silencio do domingo de Junho, o Fidalgo da Torre, em chinellos, com uma quinzena de linho envergada sobre a camisa de chita cr de rosa, trabalhava. Gonalo Mendes Ramires (que n'aquella sua velha alda de Santa Ireneia, e na villa visinha, a aceada e vistosa Villa-Clara, e mesmo na cidade, em Oliveira, todos conheciam pelo Fidalgo da Torre) trabalhava n'uma Novella Historica, A Torre de D. Ramires, destinada ao primeiro numero dos Annaes de Litteratura e de Historia, Revista nova, fundada por Jos Lucio Castanheiro, seu antigo camarada de Coimbra, nos tempos do Cenaculo Patriotico, em casa das Severinas. [2] A livraria, clara e larga, escaiolada d'azul, com pesadas estantes de pau preto onde repousavam, no p e na gravidade das lombadas de carneira, grossos folios de convento e de fro, respirava para o pomar por duas janellas, uma de peitoril e poiaes de pedra almofadados de velludo, outra mais rasgada, de varanda, frescamente perfumada pela madresilva que se enroscava nas grades. Deante d'essa varanda, na claridade forte, pousava a mesamesa immensa de ps torneados, coberta com uma colcha desbotada de damasco vermelho, e atravancada n'essa tarde pelos rijos volumes da Historia Genealogica, todo o Vocabulario de Bluteau, tomos soltos do Panorama, e ao canto, em pilha, as obras de Walter Scott sustentando um copo cheio de cravos amarellos. E d'ahi, da sua cadeira de couro, Gonalo Mendes Ramires, pensativo deante das tiras de papel almao, roando pela testa a rama da penna de pato, avistava sempre a inspiradora da sua Novella,a Torre, a antiquissima Torre, quadrada e negra sobre os limoeiros do pomar que em redor crescera, com uma pouca d'hera no cunhal rachado, as fundas frestas gradeadas de ferro, as ameias e a miradoira bem cortadas no azul de Junho, robusta sobrevivencia do Pao acastellado, da fallada Honra de Santa Ireneia, solar dos Mendes Ramires desde os meiados do seculo X. Gonalo Mendes Ramires (como confessava esse [3] severo genealogista, o morgado de Cidadelhe) era certamente o mais genuino e antigo fidalgo de Portugal. Raras familias, mesmo coevas, poderiam traar a sua ascendencia, por linha varonil e sempre pura, at aos vagos Senhores que entre Douro e Minho mantinham castello e terra murada quando os bares francos desceram, com pendo e caldeira, na hoste do Borguinho. E os Ramires entroncavam limpidamente a sua casa, por linha pura e sempre varonil, no filho do Conde Nuno Mendes, aquelle agigantado Ordonho Mendes, senhor de Treixedo e de Santa Ireneia, que casou em 967 com Dona Elduara, Condessa de Carrion, filha de Bermudo o Gottoso, Rei de Leo. Mais antigo na Hespanha que o Condado Portucalense, rijamente, como elle, crescera e se afamra o Solar de Santa Ireneiaresistente como elle s fortunas e aos tempos. E depois, em cada lance forte da Historia de Portugal, sempre um Mendes Ramires avultou grandiosamente pelo heroismo, pela lealdade, pelos nobres espiritos. Um dos mais esforados da linhagem, Loureno, por alcunha o Cortador, collao de Affonso Henriques (com quem na mesma noite, para receber a pranchada de cavalleiro, vellra as armas na S de Zamora), apparece logo na batalha d'Ourique, onde tambem avista Jesus-Christo sobre finas nuvens d'ouro, pregado n'uma cruz de dez covados. [4] No cerco de Tavira, Martim Ramires, freire de San-Thiago, arromba a golpes de acha um postigo da Couraa, rompe por entre as cimitarras que lhe decepam as duas mos, e surde na quadrella da torre albarran, com os dous pulsos a esguichar sangue, bradando alegremente ao Mestre:D. Payo Peres, Tavira nossa! Real, Real por Portugal! O velho Egas Ramires, fechado na sua Torre, com a levadia erguida, as barbacans erriadas de frecheiros, nega acolhida a El-Rei D. Fernando e Leonor Telles que corriam o Norte em folgares e caadaspara que a presena da adultera no macule a pureza extreme do seu solar! Em Aljubarrota, Diogo Ramires o Trovador desbarata um troo de bsteiros, mata o Adiantado-mr de Galliza, e por elle, no por outro, cahe derribado o pendo real de Castella, em que ao fim da lide seu irmo d'armas, D. Anto d'Almada, se embrulhou para o levar, danando e cantando, ao Mestre d'Aviz. Sob os muros d'Arzilla combatem magnificamente dois Ramires, o edoso Sueiro e seu neto Ferno, e deante do cadaver do velho, trespassado por quatro virotes, estirado no pateo da Alcaova ao lado do corpo do Conde de MarialvaAffonso V arma juntamente cavalleiros o Principe seu filho e Ferno Ramires, murmurando entre lagrimas: Deus vos queira to bons como esses que ahi jazem!... Mas eis que Portugal se faz aos mares! E [5] raras so ento as armadas e os combates de Oriente em que se no esforce um Ramiresficando na lenda tragico-maritima aquelle nobre capito do Golpho Persico, Balthazar Ramires, que, no naufragio da Santa Barbara, reveste a sua pesada armadura, e no castello de pra, hirto, se afunda em silencio com a nu que se afunda, encostado sua grande espada. Em Alcacer-Kebir, onde dous Ramires sempre ao lado d'El-Rei encontram morte soberba, o mais novo, Paulo Ramires, pagem do Guio, nem lezo nem ferido, mas no querendo mais vida pois que El-Rei no vivia, colhe um ginete solto, apanha uma acha d'armas, e gritando:Vai-te, alma, que j tardas, servir a de teu senhor!entra na chusma mourisca e para sempre desapparece. Sob os Philippes, os Ramires, amuados, bebem e caam nas suas terras. Reapparecendo com os Braganas, um Ramires, Vicente, Governador das Armas d'Entre-Douro e Minho por D. Joo IV, mette a Castella, destroa os Hespanhoes do Conde, de Venavente, e toma Fuente-Guial, a cujo furioso saque preside da varanda d'um Convento de Franciscanos, em mangas de camisa, comendo talhadas de melancia. J, porm, como a nao, degenera a nobre raa... Alvaro Ramires, valido de D. Pedro II, brigo faanhudo, atorda Lisboa com arruaas, furta a mulher d'um Vdor da Fazenda que mandra matar a pauladas [6] por pretos, incendeia em Sevilha depois de perder cem dobres uma casa de tavolagem, e termina por commandar uma urca de piratas na frota de Murad o Maltrapilho. No reinado do Sr. D. Joo V Nuno Ramires brilha na Crte, ferra as suas mulas de prata, e arruina a casa celebrando sumptuosas festes de Egreja, em que canta no cro vestido com o habito de Irmo Terceiro de S. Francisco. Outro Ramires, Christovam, Presidente da Mesa de Consciencia e Ordem, alcovita os amores d'el-rei D. Jos I com a filha do prior de Sacavem. Pedro Ramires, Provedor e Feitor-mr das Alfandegas, ganha fama em todo o Reino pela sua obesidade, a sua chalaa, as suas proezas de gluto no Pao da Bemposta com o arcebispo de Thessalonica. Ignacio Ramires acompanha D. Joo VI ao Brazil como Reposteiro-Mr, negoceia em negros, volta com um bah carregado de peas d'ouro que lhe rouba um administrador, antigo frade capuchinho, e morre no seu solar da cornada de um boi. O av de Gonalo, Damio, doutor liberal dado s Musas, desembarca com D. Pedro no Mindello, compe as empoladas proclamaes do Partido, funda um jornal, o Anti-Frade, e depois das Guerras Civis arrasta uma existencia rheumatica em Santa Ireneia, embrulhado no seu capoto de briche, traduzindo para vernaculo, com um lexicon e um pacote de simonte, as obras de Valerius [7] Flaccus. O pae de Gonalo, ora Regenerador, ora Historico, vivia em Lisboa no Hotel Universal, gastando as solas pelas escadarias do Banco Hypothecario e pelo lagedo da Arcada, at que um Ministro do Reino, cuja concubina, corista de S. Carlos, elle fascinra, o nomeou, (para o afastar da Capital) Governador Civil de Oliveira. Gonalo, esse, era bacharel formado com um R no terceiro anno. E n'esse anno justamente se estreou nas Lettras Gonalo Mendes Ramires. Um seu companheiro de casa, Jos Lucio Castanheiro, algarvio muito magro, muito macilento, de enormes oculos azues, a quem Simo Craveiro chamava o Castanheiro Patriotinheiro, fundra um Semanario, a Patriacom o alevantado intento (affirmava sonoramente o Prospecto) de despertar, no s na mocidade Academica, mas em todo o paiz, do cabo Silleiro ao cabo de Santa Maria, o amor to arrefecido das bellezas, das grandezas e das glorias de Portugal! Devorado por essa ida, a sua Ida, sentindo n'ella uma carreira, quasi uma misso, Castanheiro incessantemente, com ardor teimoso de Apostolo, clamava pelos botequins da Sophia, pelos claustros da Universidade, pelos quartos dos amigos entre a fumaa dos cigarros,a necessidade, caramba, de reatar a tradio! de desatulhar, caramba, Portugal da alluvio do estrangeirismo!Como o Semanario appareceu [8] regularmente durante tres Domingos, e publicou realmente estudos recheiados de griphos e citaes sobre as Capellas da Batalha, a Tomada d'Ormuz, a Embaixada de Tristo da Cunha, comeou logo a ser considerado uma aurora, ainda pallida mas segura, de Renascimento Nacional. E alguns bons espiritos da Academia, sobretudo os companheiros de casa do Castanheiro, os tres que se occupavam das cousas do saber e da intelligencia (porque dos tres restantes um era homem de cacete e foras, o outro guitarrista, e o outro premiado), passaram, aquecidos por aquella chamma patriotica, a esquadrinhar na Bibliotheca, nos grossos tomos nunca d'antes visitados de Fernam Lopes, de Ruy de Pina, d'Azurara, proezas e lendass portuguezas, s nossas (como supplicava o Castanheiro), que refizessem nao abatida uma consciencia da sua heroicidade! Assim crescia o Cenaculo Patriotico da casa das Severinas. E foi ento que Gonalo Mendes Ramires, moo muito affavel, esvelto e loiro, d'uma brancura s de porcelana, com uns finos e risonhos olhos que facilmente se enterneciam, sempre elegante e apurado na batina e no verniz dos sapatosapresentou ao Castanheiro, n'um domingo depois do almoo, onze tiras de papel intituladas D. Guiomar. N'ellas se contava a velhissima historia da castell, que, emquanto longe nas guerras do Ultra-mar o castello barbudo [9] e cingido de ferro atira a acha-d'armas s portas de Jerusalem, recebe ella na sua camara, com os braos ns, por noite de Maio e de lua, o pagem de annellados cabellos... Depois ruge o inverno, o castello volta, mais barbudo, com um bordo de romeiro. Pelo villico do Castello, homem espreitador e de amargos sorrisos, conhece a traio, a macula no seu nome to puro, honrado em todas as Hespanhas! E ai do pagem! ai da dama! Logo os sinos tangem a finados. J no patim da Alcaova o verdugo, de capuz escarlate, espera, encostado ao machado, entre dous cepos cobertos de pannos de d... E no final choroso da D. Guiomar, como em todas essas historias do Romanceiro d'Amor, tambem brotavam rente s duas sepulturas, escavadas no rmo, duas roseiras brancas a que o vento enlaava os aromas e as rosas. De sorte que (como notou Jos Lucio Castanheiro, coando pensativamente o queixo) no resaltava n'esta D. Guiomar nada que fosse s portuguez, s nosso, abrolhando do slo e da raa! Mas esses amores lamentosos passavam n'um solar de Riba-Ca: os nomes dos cavalleiros, Remarigues, Ordonho, Froylas, Gutierres, tinham um delicioso sabor godo: em cada tira resoavam bravamente os genuinos: Bof!... Mentes pela gorja!... Pagem, o meu murzello!...: e atravs de toda esta vernaculidade circulava uma sufficiente turba de cavallarios com saios alvadios, beguinos [10] sumidos na sombra das cugulas, ovenaes sopezando fartas bolsas de couro, uches espostejando nedios lombos de crdo... A Novella portanto marcava um salutar retrocesso ao sentimento nacional. E depois (accrescentava o Castanheiro) este velhaco do Gonalinho surde com um estylo terso, masculo, de boa cr archaica... D'optima cr archaica! Lembra at o Bobo, o Monge de Cister!... A Guiomar, realmente, uma castell vaga, da Bretanha ou da Aquitania. Mas no villico, mesmo no castello, j transparecem portuguezes, bons portuguezes de fibra e d'alma, d'entre Douro e Cavado... Sim senhor! Quando o Gonalinho se enfronhar dentro do nosso passado, das nossas chronicas, temos emfim nas Lettras um homem que sente bem o torro, sente bem a raa! D. Guiomar encheu tres paginas da Patria. N'esse Domingo, para celebrar a sua entrada na Litteratura, Gonalo Mendes Ramires pagou aos camaradas do Cenaculo e a outros amigos uma ceiaonde foi acclamado, logo depois do frango com ervilhas, quando os moos do Camolino, esbaforidos, renovavam as garrafas de Collares, como o nosso Walter Scott! Elle, de resto, annuncira j com simplicidade um Romance em dois volumes, fundado nos annaes da sua Casa, n'um rude feito de sublime orgulho de Tructesindo Mendes Ramires, o amigo e [11] Alferes-mr de D. Sancho I. Por temperamento, por aquelle saber especial de trajes e alfaias que revelra na D. Guiomar, at pela antiguidade da sua linhagem, Gonalinho parecia gloriosamente votado a restaurar em Portugal o Romance Historico. Possuia uma missoe comeou logo a passear pela Calada, pensativo, com o gorro sobre os olhos, como quem anda reconstruindo um mundo. No acto d'esse anno levou o R. Quando regressou das ferias para o Quarto-Anno j no refervia na rua da Mathematica o Cenaculo ardente dos Patriotas. O Castanheiro, formado, vegetava em Villa Real de Santo Antonio: com elle desapparecera a Patria: e os moos zelosos que na Bibliotheca esquadrinhavam as Chronicas de Fernam Lopes e de Azurara, desamparados por aquelle Apostolo que os levantava, recahiram nos romances de Georges Ohnet e retomaram noite o taco nos bilhares da Sophia. Gonalo voltava tambem mudado, de luto pelo pae que morrera em Agosto, com a barba crescida, sempre affavel e suave, porm mais grave, averso a ceias e a noites errantes. Tomou um quarto no Hotel Mondego, onde o servia, de gravata branca, um velho creado de Santa Ireneia, o Bento:e os seus companheiros preferidos foram tres ou quatro rapazes que se preparavam para a Politica, folheavam attentamente o Diario das Camaras, conheciam [12] alguns enredos da Crte, proclamavam a necessidade d'uma Orientao positiva e d'um largo fomento rural, consideravam como leviandade reles e jacobina a irreverencia da Academia pelos Dogmas, e, mesmo passeando ao luar no Choupal ou no Penedo da Saudade, discorriam com ardor sobre os dous Chefes de Partidoo Braz Victorino, o homem novo dos Regeneradores, e o velho Baro de S. Fulgencio, chefe classico dos Historicos. Inclinado para os Regeneradores, por que a Regenerao lhe representava tradicionalmente idas de conservantismo, de elegancia culta e de generosidade, Gonalo frequentou ento o Centro Regenerador da Couraa, onde aconselhava noite, tomando ch preto, o fortalecimento da auctoridade da Cora, e uma forte expanso colonial! Depois, logo na Primavera, desmanchou alegremente esta gravidade politica: e ainda tresnoitou, na taberna do Camolino, em bacalhoadas festivas, entre o estridor das guitarras. Mas no alludio mais ao seu grande Romance em dous volumes: e ou recura ou se esquecera da sua misso d'Arte Historica. Realmente s na Paschoa do Quinto-Anno retomou a pennapara lanar, na Gazeta do Porto, contra um seu patricio, o Dr. Andr Cavalleiro, que o Ministerio do S. Fulgencio nomera Governador civil de Oliveira, duas correspondencias muito acerbas, d'um rancor intenso e pessoal, (a ponto de chasquear a feroz [13] bigodeira negra de S. Ex.a). Assignara Juvenal, como outr'ora o pae, quando publicava communicados politicos d'Oliveira n'essa mesma Gazeta do Porto, jornal amigo, onde um Villar Mendes, seu remoto parente, redigia a Revista Estrangeira. Mas lra aos amigos no Centroos dous botes decisivos que atirariam o Sr. Cavalleiro abaixo do seu Cavallo! E um d'esses moos serios, sobrinho do Bispo de Oliveira, no disfarou o seu assombro: Oh Gonalo, eu sempre pensei que voc e o Cavalleiro eram intimos! Se bem me lembro quando voc chegou a Coimbra, para os Preparatorios, viveu na casa do Cavalleiro, na rua de S. Joo... Pois no ha uma amizade tradicional, quasi historica, entre Ramires e Cavalleiros?... Eu pouco conheo Oliveira, nunca andei para os vossos sitios; mas at creio que Corinde, a quinta do Cavalleiro, pega com Santa Ireneia! E Gonalo enrugou a face, a sua risonha e lisa face, para declarar seccamente que Corinde no pegava com Santa Ireneia: que entre as duas terras corria muito justificadamente a ribeira do Coice: e que o Sr. Andr Cavalleiro, e sobre tudo Cavallo, era um animal detestavel que pastava na outra margem!O sobrinho do Bispo saudou e exclamou: Sim senhor, boa piada! Um anno depois da Formatura, Gonalo foi a [14] Lisboa por causa da hypotheca da sua quinta de Praga, junto a Lamego, que certo fro annual de dez ris e meia gallinha, devido ao Abbade de Praga, andava empecendo terrivelmente nos Conselhos do Banco Hypothecario;e tambem para conhecer mais estreitamente o seu Chefe, o Braz Victorino, mostrar lealdade e submisso partidaria, colher algum fino conselho de conducta Politica. Ora uma noite, voltando de jantar em casa da velha Marqueza de Louredo, a tia Louredo, que morava a Santa Clara, esbarrou no Rocio com Jos Lucio Castanheiro; ento empregado no Ministerio da Fazenda, na repartio dos Proprios Nacionaes. Mais defecado, mais macilento, com uns oculos mais largos e mais tenebrosos, o Castanheiro ardia todo, como em Coimbra, na chamma da sua Idaa resurreio do sentimento portuguez! E agora, alargando a propores condignas da Capital o plano da Patria, labutava devoradoramente na creao d'uma Revista quinzenal de setenta paginas, com capa azul, os Annaes de Litteratura e de Historia. Era uma noite de Maio, macia e quente. E, passeando ambos em torno das fontes seccas do Rocio, Castanheiro, que sobraava um rolo de papel e um gordo folio encadernado em bezerro, depois de recordar as cavaqueiras geniaes da rua da Misericordia, de maldizer a falta de intellectualidade de Villa Real de Santo Antoniovoltou [15] soffregamente sua Ida, e supplicou a Gonalo Mendes Ramires que lhe cedesse para os Annaes esse Romance que elle annuncira em Coimbra, sobre o seu avoengo Tructesindo Ramires, Alferes-mr de Sancho I. Gonalo, rindo, confessou que ainda no comera essa grande obra! Ah! murmurou o Castanheiro, estacando, com os negros oculos sobre elle, duros e desconsolados. Ento voc no persistio?... No permaneceu fiel Ida?... Encolheu os hombros, resignadamente, j acostumado, atravez da sua misso, a estes desfallecimentos do Patriotismo. Nem consentio que Gonalo, humilhado perante aquella F que se mantivera to pura e servidraalludisse, como desculpa, ao inventario laborioso da Casa, depois da morte do pap... Bem, bem! Acabou! Proscratinare luzitanum est. Trabalha agora no vero... Para Portuguezes, menino, o vero o tempo das bellas fortunas e dos rijos feitos. No vero nasce Nun'Alvares no Bomjardim! No vero se vence em Aljubarrota! No vero chega o Gama India!... E no vero vae o nosso Gonalo escrever uma novellasinha sublime!... De resto os Annaes s apparecem em Dezembro, caracteristicamente no Primeiro de Dezembro. E voc em tres mezes resuscita um mundo. Serio, Gonalo Mendes!... [16] um dever, um santo dever, sobretudo para os novos, collaborar nos Annaes. Portugal, menino, morre por falta de sentimento nacional! Ns estamos immundamente morrendo do mal de no ser Portuguezes! Parouondeou o brao magro, como a correia d'um latego, n'um gesto que aoutava o Rocio, a Cidade, toda a Nao. Sabia o amigo Gonalinho o segredo d'esta borracheira sinistra? que, dos Portuguezes, os peores despresavam a Patriae os melhores ignoravam a Patria. O remedio?... Revelar Portugal, vulgarisar Portugal. Sim, amiguinho! Organizar, com estrondo, o reclamo de Portugal, de modo que todos o conheamao menos como se conhece o Xarope Peitoral de James, hein? E que todos o adoptemao menos como se adoptou o sabo do Congo, hein? E conhecido, adoptado, que todos o amem emfim, nos seus heres, nos seus feitos, mesmo nos seus defeitos, em todos os seus padres, e at nas veras pedrinhas das suas caladas! Para esse fim, o maior a emprehender n'este apagado seculo da nossa Historia, fundava elle os Annaes. Para berrar! Para atroar Portugal, aos bramidos sobre os telhados, com a noticia inesperada da sua grandeza! E aos descendentes dos que outr'ora fizeram o Reino incumbia, mais que aos outros, o cuidado piedoso de o refazer... Como? Reatando a tradio, caramba! [17]Assim, vocs! Por essa historia de Portugal fra, vocs so uma enfiada de Ramires de toda a belleza. Mesmo o desembargador, o que comeu n'uma ceia de Natal dois leites!... apenas uma barriga. Mas que barriga! Ha n'ella uma pujana heroica que prova raa, a raa mais forte do que promette a fora humana, como diz Cames. Dois leites, caramba! At enternece!... E os outros Ramires, o de Silves, o de Aljubarrota, os de Arzilla, os da India! E os cinco valentes, de quem voc talvez nem saiba, que morreram no Salado! Pois bem, resuscitar estes vares, e mostrar n'elles a alma faanhuda, o querer sublime que nada verga, uma soberba lio aos novos... Tonifica, caramba! Pela consciencia que renova de termos sido to grandes sacode este chocho consentimento nosso em permanecermos pequenos! o que eu chamo reatar a tradio... E depois feito por voc proprio, Ramires, que chic! Caramba, que chic! um fidalgo, o maior fidalgo de Portugal, que, para mostrar a heroicidade da Patria, abre simplesmente, sem sahir do seu solar, os archivos da sua Casa, velha de mais de mil annos. de rachar!... E voc no precisa fazer um grosso romance... Nem um romance muito desenvolvido est na indole militante da Revista. Basta um conto, de vinte ou trinta paginas... Est claro, os Annaes por ora no podem pagar. Tambem, voc no precisa! [18] E que diabo! no se trata de pecunia, mas d'uma grande renovao social... E depois, menino, a litteratura leva a tudo em Portugal. Eu sei que o Gonalo em Coimbra, ultimamente, frequentava o Centro Regenerador. Pois, amigo, de folhetim em folhetim, se chega a S. Bento! A penna agora, como a espada outr'ora, edifica reinos... Pense voc n'isto! E adeus! que ainda hoje tenho de copiar, para lettra christ, este estudo do Henriques sobre Ceylo... Voc no conhece o Henriques?... No conhece. Ninguem conhece. Pois quando na Europa, n'essas grandes Academias da Europa, ha uma duvida sobre a Historia ou a Litteratura cingaleza, gritam para c, para o Henriques! Abalou, agarrado ao seu rolo e ao seu tomoe Gonalo ainda o avistou, na porta e claridade da tabacaria Nunes, agitando o brao esguio d'Apostolo deante d'um sujeito obeso, de vasto collete branco, que recuava, com espanto, assim perturbado no quieto gozo do seu grosso charuto e da doce noite de Maio. O Fidalgo da Torre recolheu para o Bragana, impressionado, ruminando a ida do Patriota. Tudo n'ella o seduziae lhe convinha: a sua collaborao n'uma Revista consideravel, de setenta paginas, em companhia de Escriptores doutos, lentes das Escolas, antigos Ministros, at Conselheiros d'Estado: [19] a antiguidade da sua raa, mais antiga que o Reino, popularisada por uma historia d'heroica belleza, em que com tanto fulgor resaltavam a bravura e a soberba d'alma dos Ramires; e emfim a seriedade academica do seu espirito, o seu nobre gosto pelas investigaes eruditas, apparecendo no momento em que tentava a carreira do Parlamento e da Politica!... E o trabalho, a composio moral dos vetustos Ramires, a resurreio archeologica do viver Affonsino, as cem tiras de almao a atulhar de prosa forteno o assustavam... No! porque felizmente j possuia a sua obrae cortada em bom panno, alinhavada com linha habil. Seu tio Duarte, irmo de sua me (uma senhora de Guimares, da casa das Balsas), nos seus annos de ociosidade e imaginao, de 1845 a 1850, entre a sua carta de Bacharel e o seu Alvar de Delegado, fra poetae publicra no Bardo, semanario de Guimares, um Poemeto em verso solto, o Castello de Santa Ireneia, que assignra com duas iniciaes D.B. esse castello era o seu, o Pao antiquissimo de que restava a negra torre entre os limoeiros da horta. E o Poemeto cantava, com romantico garbo, um lance de altivez feudal em que se sublimra Tructesindo Ramires, Alferes-mr de Sancho I, durante as contendas de Affonso II e das senhoras Infantas. Esse volume do Bardo, encadernado em marroquim, com o brazo dos Ramires, o aor negro [20] em campo escarlate, ficra no Archivo da Casa como um trecho da Chronica heroica dos Ramires. E muitas vezes em pequeno Goncalo recitra, ensinados pela mam, os primeiros versos do Poema, de to harmoniosa melancolia: Na pallidez da tarde, entre a folhagem Que o outomno amarellece... Era com esse sombrio feito do seu vago avoengo que Gonalo Mendes Ramires decidira em Coimbra, quando os camaradas da Patria e das ceias o acclamavam o nosso Walter Scott, compr um Romance moderno, d'um realismo pico, em dous robustos volumes, formando um estudo ricamente colorido da Meia-Edade Portugueza... E agora lhe servia, e com deliciosa facilidade, para essa Novella curta e sobria, de trinta paginas, que convinha aos Annaes. No seu quarto do Bragana abrio a varanda. E debruado, acabando o charuto, na dormente suavidade da noite de Maio, ante a magestade silenciosa do rio e da lua, pensava regaladamente que nem teria a canceira d'esmiuar as chronicas e os folios massudos... Com effeito! toda a reconstrucco Historica a realisra, e solidamente, com um saber destro, o tio Duarte. O Pao acastellado de Santa Ireneia, com as fundas carcovas, a torre albarran, [21] a alcaova, a masmorra, o pharol e o balso: o velho Tructesindo, enorme, e os seus flocos de cabellos e barbas ancestraes derramados sobre a loriga de malha; os servos mouriscos, de surres de couro, cavando os regueiros da horta; os oblatos resmungando lareira as Vidas dos Santos; os pagens jogando no campo do tavoladotudo resurgia, com veridico realce, no Poemeto do tio Duarte! Ainda recordava mesmo certos lances: o truo aoutado; o festim e os uches que arrombavam as cubas de cerveja; a jornada de Violante Ramires para o Mosteiro de Lorvo... Junto fonte mourisca, entre os ulmeiros, A cavalgada pra... O enrdo todo com a sua paixo de grandeza barbara, os recontros bravios em que se saciam a punhal os rancores de raa, o heroico fallar despedido de labios de ferrol estavam nos versos do titi, sonoros e bem balanados... Monge, escuta! O solar de D. Ramires Por si, e pedra a pedra se aluira, Se jmais um bastardo lhe pisasse, Com sapato aviltado, as lages puras! [22] Na realidade s lhe restava transpr as formas fluidas do Romantismo de1846 para a sua prosa tersa e mascula (como confessava o Castanheiro), de optima cr archaica, lembrando o Bobo. E era um plagio? No! A quem, com mais seguro direito do que a elle, Ramires, pertencia a memoria dos Ramires historicos? A resurreio do velho Portugal, to bella no Castello de Santa Ireneia, no era obra individual do tio Duartemas dos Herculanos, dos Rebellos, das Academias, da erudio esparsa. E, de resto, quem conhecia hoje esse Poemeto, e mesmo o Bardo, delgado semanario que perpassra, durante cinco mezes, ha cincoenta annos, n'uma villa de Provincia?...! No hesitou mais, seduzido. E em quanto se despia, depois de beber aos goles um copo d'agua com bicarbonato de soda, j martellava a primeira linha do conto, maneira lapidaria da Salammb:Era nos Paos de Santa Ireneia, por uma noite d'inverno, na sala alta da Alcaova... Ao outro dia, procurou Jos Lucio Castanheiro na repartio dos Proprios Nacionaes, pressa,por que, depois d'uma conferencia no Banco Hypothecario, ainda promettera acompanhar as primas Chellas a uma Exposio de Bordados na livraria Gomes. E annunciou ao Patriota que, positivamente, lhe assegurava para o primeiro numero dos Annaes a Novella, [23] a que j decidira o tituloa Torre de D. Ramires: Que lhe parece? Deslumbrado, Jos Castanheiro atirou os magrissimos braos, resguardados pelas mangas d'alpaca, at abobada do esguio corredor em que o recebera: Sublime!... A Torre de D. Ramires!... O grande feito de Tructesindo Mendes Ramires contado por Gonalo Mendes Ramires!... E tudo na mesma Torre! Na Torre o velho Tructesindo pratica o feito; e setecentos annos depois, na mesma Torre, o nosso Gonalo conta o feito! Caramba, menino, carambissima! isso que reatar a tradio! Duas semanas depois, de volta a Santa Ireneia, Gonalo mandou um creado da quinta, com uma carroa, a Oliveira, a casa de seu cunhado Jos Barrlo, casado com Gracinha Ramires, para lhe trazer da rica livraria classica que o Barrlo herdra do tio Deo da S todos os volumes da Historia Genealogicae (accrescentava n'uma carta) todos os cartapacios que por l encontrares com o titulo de Chronicas do Rei Fulano... Depois, do p das suas estantes, desenterrou as obras de Walter Scott, volumes desirmanados do Panorama, a Historia de Herculano, o Bobo, o Monge de Cistr. E assim [24] abastecido, com uma farta rsma de tiras d'almao sobre a banca, comeou a repassar o Poemeto do tio Duarte, inclinado ainda a transpr para a aspereza d'uma manh de Dezembro, como mais congenere com a rudeza feudal dos seus avs, aquella lusida cavalgada de donas, monges e homens d'armas que o tio Duarte estendera, atravez d'uma suave melancolia outomnal, pelas veigas do Mondgo... Na pallidez da tarde, entre a folhagem Que o outomno amarellece... Mas, como era ento Junho e a lua crescia, Gonalo determinou por fim aproveitar as sensaes de calor, luar e arvoredos, que lhe fornecia a aldeiapara levantar, logo entrada da sua Novella, o negro e immenso Pao de Santa Ireneia, no silencio d'uma noite d'Agosto, sob o resplendor da lua cheia. E j enchera desembaraadamente, ajudado pelo Bardo, duas tiras, quando uma desavena com o seu caseiro, o Manoel Relho, que amanhava a quinta por oitocentos mil reis de renda, veio perturbar, na fresca e novia inspirao do seu trabalho, o Fidalgo da Torre. Desde o Natal o Relho, que durante annos de compostura e ordem se emborrachava sempre aos domingos com alegria e com pachorra, comera a tomar, tres e quatro vezes por semana, bebedeiras [25] desabridas, escandalosas, em que espancava a mulher, atroava a quinta de berros, e saltava para a estrada, esguedelhado, de varapu, desafiando a quieta aldeia. Por fim, uma noite em que Gonalo, banca, depois do ch, laboriosamente escavava os fossos do Pao de Santa Ireneiade repente a Rosa cozinheira rompeu a gritar Aqui d'El-rei contra o Relho! E, atravez dos seus brados e dos latidos dos ces, uma pedra, depois outra, bateram na varanda veneravel da livraria! Enfiado, Gonalo Mendes Ramires pensou no revlver... Mas justamente n'essa tarde o creado, o Bento, descra aquella sua velha e unica arma cozinha para a desenferrujar e arear! Ento, atarantado, correu ao quarto, que fechou chave, empurrando contra a porta a commoda com to desesperada anciedade que frascos de crystal, um cofre de tartaruga, at um crucifixo, tombaram e se partiram. Depois gritos e latidos findaram no pateomas Gonalo no se arredou n'essa noite d'a ......Buy Now (To Read More)
Ebook Number: 23145
Author: Queirós, Eça de
Release Date: Oct 22, 2007
Format: eBook
Language: Portuguese
Publisher: Livraria Chardron
De Lello & Irmão
Publication Date: 1900
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