No País dos Yankees

No Paiz dos Yankees Title: No Paiz dos Yankees Author: Adolfo Ferreira Caminha Release Date: January 7,...
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Author: Caminha, Adolfo Ferreira,1867-1897
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Author: Caminha, Adolfo Ferreira,1867-1897
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Language: Portuguese

No Paiz dos Yankees

Title: No Paiz dos Yankees Author: Adolfo Ferreira Caminha Release Date: January 7, 2008 [EBook #24190] Language: Portuguese Original Publication: , Rio de Janeiro: Domingos de Magalhes--Editor 54 Rua do Ouvidor 54 Livraria Moderna 1894 Credits: Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by The Internet Archive) Nota de editor: Devido quantidade de erros tipogrficos existentes neste texto, foram tomadas vrias decises quanto verso final. Em caso de dvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrar a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Jan. 2008) ADOLPHO CAMINHA NO PAIZ DOS YANKEES DOMINGOS DE MAGALHESEDITOR 54 RUA DO OUVIDOR 54 LIVRARIA MODERNA RIO DE JANEIRO 1894 NO PAIZ DOS YANKEES cruzador "almirante barroso" ADOLPHO CAMINHA NO PAIZ DOS YANKEES RIO DE JANEIRO Domingos de Magalheseditor 54 rua do ouvidor 54 LIVRARIA MODERNA 1894 Do mesmo autor: A NORMALISTA I vol. broc. 3$. cnc. 5000 Em preparao: BOMCRIOULO Typ. da Empreza Democratica EditoraRua do Hospicio n. 11 Taine, o glorioso Taine, o querido philosopho, cuja obra admiravel tem sido uma especie de bussola para os que se iniciam na complicada arte da palavra; Taine, o mestre, aconselhava sabiamente, com aquella profundeza de vista e com aquelle raro e superior criterio de artista e pensador:Que chacun dise ce qu'il a vu, et seulement ce qu'il a vu; les observations, pourvu qu'elles soient personnelles et faites de bonne foi, sont toujours utiles. [6] Devo a estas palavras a lembrana de escrever as multiplas impresses, os successivos transportes de admirao, de jubilo e tristeza por que passou meu espirito durante alguns mezes de viagem nos Estados-Undos. A principio afigurou-se-me obra de alevantado alcance e de extrema coragem traar, ainda que ligeiramente, o plano de um livro sobre a grande nao americana, to singular em seus costumes, em sua vida [7] agitada e tumultuosa, em seus variadissimos aspectos... E de facto, esse trabalho, essa difficil tarefa demandaria, incontestavelmente, muito mais que uma somma de notas mais ou menos verdadeiras e algum estylo. Era preciso, antes de tudo, um elevado criterio historico e scientifico, grande cpia de conhecimentos e profundo espirito analytico. No se escreve a historia de um paiz,a vida inteira de um povosem [8] demorar-se em largo e paciente estudo sobre as suas origens, seus habitantes primitivos, sua evoluo politica e social, suas luctas intestinas e sobre os elementos que mais directamente influram para sua independencia. A elles, os historiadores e analystas da sciencia, to arriscada empreza. Os poucos mezes que passei nos Estados-Unidos apenas me proporcionaram ensejo de admirar, atravz de um prisma todo pessoal, o progresso [9]assombroso d'esse extraordinario paz. Comprehendem-se, pois, os meus intuitos: nada mais que reproduzir, com a possvel exactido, o que vi, somente o que vi nessa interessante viagem ao paiz dos yankees. Procurei ser espontaneo e simples, natural e logico, evitando exageros de observao e o estylo rebuscado e palavroso dos que, fina fora, pretendem transformar a litteratura n'uma simples arte mecanica [10]de construir phrases cas e coloridas. Escriptas em 1890, as paginas que se vo ler podem no ter a importancia de um estudo completo, mas de algum modo tm seu valor intrinseco. Rio, 1 de Agosto de 1893. Ad. Caminha NO PAIZ DOS YANKEES I ...Tinha cessado a faina geral de suspender ancora. Os marinheiros estavam todos em seus postos, alerta primeira voz, silenciosos, enfileirados a bombordo e borste, alguns convenientemente distribuidos na ppa, na pra e nas cobertas do cruzador. Noite escura e chuvosa, cheia de nevoeiro e tristeza, fria, sem estrellas, cortada de clares longinquos. To escura que se no distinguia um palmo diante do nariz, to feia que os bicos de gaz da cidade, soturna e quieta, bruxoleavam pallidamente com a sua luz tremula e vacillante... [12] E comtudo estavamos a 19 de Fevereiro, em plena estao calmosa, no rigor do vero. Chuvera todo o dia. O co conservava-se coberto de nuvens bojudas e cr de chumbo, velando uns restos de lua. Um grande silencio de alto mar alastrava-se por toda a bahia do Rio de Janeiro. Smente ao longe, para os lados da cidade, badalava o sino d'uma egreja, compassado e lugubre. De vez em quando passava rente com a ppa do Barrozo o vulto sombrio e largo de uma barca Ferry, com o seu pharl de cr, dezerta, indistincta, e que desapparecia logo na escurido. Seria meia noite quando o navio comeou a mover-se lentamente, caminho da barra, cheio da silenciosa melancolia dos que partiam, e uma hora depois a cidade, as praias, e as montanhas sumiam-se na distancia, como si o mar as fosse engolindo com a voracidade de um monstro. Restava apenas um ponto luminoso, uma viso microscopica da terra fluminense; era o [13] pharol da ilha Rasa tremeluzindo, como palpebra somnolenta, atravz da noite. E todos a bordo, todos silenciosamente, egoistas na sua dr concentrada e incommunicavel, mandaram ainda umadeusprofundamente saudoso vida alegre e ruidosa do Rio. Dizem que o homem do mar insensivel aquelles que nunca viram esta realidade: a lagryma da saudade brilhar na face de um marinheiro. L fomos mar afra... Pernambuco foi o primeiro porto da nossa escala. Viagem monotona, sem accidentes notaveis, essa do Rio ao Recife. As horas succediam-se n'uma uniformidade tediosa e imperturbavel. Sempre o mar, sempre o co, ora sombrios, ora azues... Durante o dia 21 avistmos, e isso nos consolou, uma vela que bordejava, muito branca, triste gara erradia no horisonte luminoso. Para quem viaja no mar uma vela que se avista sempre motivo de innocente alegria [14] O marinheiro com especialidade gosta de seguil-a com o olhar nostalgico at perdel-a completamente. como ao avistar-se terra depois de longa travessia: sente-se a mesma impresso ba e indefinivel. Na manh de 26lste-oeste com o pharol de S. Agostinho, e s onze horas recebiamos o pratico. Impossivel entrar nesse dia, por falta de mar: passmos a noite fra, no Lamaro, aos solavancos, vendo, por um oculo, a cidade do Recife, illuminada e bella, hombro a hombro com a legendaria Olinda dos hollandezes e dos banhos de mar. Na falta de outro assumpto falou se de historia patria. Pela manh de 27 o Barrozo sulcava as aguas do Lamaro, lento e magestoso, crivado de olhares. O povo saudava-o do ces da Lingueta. Espalhou-se logo que o principe D. Augusto, neto do imperador, vinha a bordo, e toda a gente correu a recebel-o com essa avidez instinctiva das massas populares. O povo pernambucano, tradicionalmente [15]inimigo dos imperadores, lembrava-se do tempo em que o Sr. D. Pedro de Alcantara dava-se ao luxo de visitar o norte. Mais tarde, ao desembarcar a turma de guardas-marinha, de que fazia parte o principe, subiu de ponto a curiosidade publica. Oh! o principe!Que d'elle? um ruivo? aquelle barbado? O pobre moo viu-se em apuros, e mudava de cres, e fazia-se escarlate, e vociferava contra a plebe, occultando-se entre os collegas, desapontado. Um preto velho teve a lembrana de ajoelhar-se aos ps de S. A. e supplicar-lhe uma esmola. Aconteceu, porm, que errou o alvo e foi direito a um outro rapaz, louro e rubro, como o principe, que se apressou em desfazer o engano. O imperial senhor achava-se ridiculo no meio de toda aquella multido servil e anonyma que o acompanhava, como si visse n'elle um animal selvagem... assim o povoingenuo, pueril. Visitmos, em romaria, os principaes edificios [16]publicos: a Penitenciaria, a Assembla Provincial, o Gymnasio, o Theatro. A nova Penitenciaria do Recife um bello edificio no genero. Impressiona tristemente esse casaro sombrio com escadarias de ferro, onde mal penetra a claridade meridiana. Ha criminosos de toda a especie, em cujos semblantes retratam-se delictos tenebrosos. Nada, porm, nos commoveu tanto como a historia do preso Gustavo Adolpho, que, ha quasi vinte annos, cumpria a terrivel sentena a que fra condemnado. Era um d'esses sentenciados sympathicos que inspiram compaixo a quem os observa de perto. Um dos nossos companheiros desejou saber a historia do seu crime e pediu ao infeliz que lh'a contasse elle proprio. No queira, disse o condemnado, no queira obrigar-me a fazer minha propria autopsia moral... Narral-a, essa historia, seria um supplicio muito maior do que estar eu aqui, n'este carcere, ha vinte annos... Gustavo Adolpho parecia-nos um regenedo, [17] tal o aspecto humilde de sua physionomia e o tom commovente de sua voz. O isolamento transformara-lhe a alma. A dr tem isto de bompurifica o espirito, como um crysol. Esse infame, esse assassino, Gustavo Adolpho, era um martyr. Aquelle semblante abatido pelas insomnias, aquelle rosto descarnado, aquelles olhos cansados de chorar, aquelles labios lividos de defunto, cansados de repetir a palavraperdo, lembravam a figura resignada de um moribundo que nada mais espera seno a eterna liberdadea morte... Vimol-o na casa dos condemnados, entre as quatro paredes de um miseravel cubiculo, vestido de preto, barba crescida, macilento, arrependido e s. Poucos iam incommodal-o ali, n'aquella pavorosa solido, e no emtanto elle no odiava ninguem e desejava falar a todos. Tinha dezenove annos quando a fatalidade o arremessou a Fernando de Noronha. A justia humana o havia condemnado a esta pena infamantegals perpetuas. Perdoar a um arrependido nas condies [18] de Gustavo Adolpho, me parece a mais nobre aco de um rei. Todavia elle continuava, mendigo de liberdade, a pedir, a pedir... Por diversas vezes a academia de direito, pelo orgo de seus representantes, exorara a piedade imperial, mas o imperador nunca estendeu o seu magnanimo olhar at aos carceres seno em certos dias de gala natalicia para indultar os escolhidos da politica dominante. Console-se, disse eu ao desventurado moo. E citei Lamartine:Vivre c'est attendre... Retirmo-nos commentando aquella catastrophe desastrada. A historia tragica d'esse preso foi-nos contada por um empregado do estabelecimento. Eu podia resumil-a em duas palavras:cherchez la femme, si no fosse o prurido de registrar, ainda que brevemente, um caso curioso de processo crime. Cada um tire as illaes que lhe aprouverem. Gustavo Adolpho nasceu no Par onde iniciou seus estudos como seminarista. [19] Muito cedo seu espirito mostrou-se refractario educao ecclesiastica, e desviou-se dos livros sagrados para outro genero de leituras e estudos mais concentaneos com as suas aspiraes. Os paes do nubil seminarista desgostaram-se com o procedimento do filho revolucionario e ardente apologista de Martinho Luthero, que no occultava-lhes suas tendencias anti-catholicas. Elle, porm, o apostata, o hereje, sentia-se instinctivamente arrebatado pelas idas do seculo e tratou de trocar a sotaina de novio pelo frak ultima moda. Ninguem pe peias fatalidade. No contente com ir de encontro vontade de seus paes e preceptores, o ex-seminarista tomou o primeiro vapor, e, subito, vio-se na capital do Brazil, sem um amigo que o guiasse n'esse labyrintho de ruas suspeitas onde o vicio assentou praa. A rua do Ouvidor e os theatros sempre eram mais agradaveis que o claustro e as impertinencias do reitor,muito mais... Pobre Gustavo Adolpho! Salvara-se de um abysmo para precipitar-se imprudentemente, [20]como creana inexperta, n'outro abysmo talvez mais perigoso. Sem amigos, sem proteco, longe de sua terra e de seus paes,que podia esperar o joven desconhecido n'aquelle turbilho de vis interesses? Imbert-Galloix, um italiano, tambem adolescente e cheio de esperanas, intelligente e trabalhador, morreu de miseria n'uma rua de Pariz, por ter trocado sua patria natal por um paiz que s conhecia de nome. Fra em busca de glorias e encontrou a miseria, o frio, a fome, e a morte por fim. Esses sonhadores como Imbert-Galloix so sempre victimas da propria imaginao. A sorte de Gustavo Adolpho foi mais cruel. Custa a crr que um insignificante par de brincos leve um homem cadeia e depois ao exilio perpetuo! Uma vez sem meios de subsistencia, luctando com a m vontade de uns e a indifferena de outros, Gustavo Adolpho, que tinha certa dse de espirito, d'esse espirito [21] fino que caracterisa o homem de talento, fez-se bohemio, isto , indifferente vida, nomade a quem tanto faz dormir sobre flacido colxo, como ao relento e sobre a lage das caladas. Ora, os bohemios so umas creaturas sympathicas. Quando um bohemio tem espirito acha sempre quem lhe estenda a mo. Gustavo Adolpho preferiu a mo leve, alva e setinosa, de uma cortez pela qual apaixonou-se devras. A mulher, sempre essa creatura profundamente seductora e mysteriosa! E, parece incrivel! quando na primeira noite, aps as ineffaveis caricias do amor, a misera Manon, adormecida ao lado do amante, sonhava, talvez, n'algum banquete sumptuoso, sombra d'alamos frondosos, talvez n'alguma de suas passadas orgias, luz de candelabros deslumbrantes, elle, o malaventurado moo, cujo olhar fitava na meia sombra da alcova o rosto sereno de sua amante, antepensava um crime e um crime excepcional, monstruoso, inqualificavel. Estes brincos, estes brincos... pensava [22] elle fitando as joias, duas grandes lagrimas de diamante pendentes das orelhas da rapariga. Seu espirito oscillava como um pendulo na duvida terrivel, aguado por um desejo louco. Eil-o que se levanta de um impeto, pisando devagar, surrateiramente, to de leve que dir-se-ia uma sombra; eil-o que se encaminha para a porta da rua, tacteando, encostando-se as paredes, p ante p, sem respirar, olhando sempre para traz, para o leito da amante (lembra-me a scena da Cymbelina de Shakspeare). Meia noite... Eil-o ainda que volta e se approxima do leito onde ha pouco boiara em mar de volupia. Traz na mo um objecto reluzente, uma cousa disforme... uma machadinha. Que ir elle fazer?!... Approxima-se mais, rastejando quasi, mansamente, subtilmente. De repente sa uma pancada surda, e um grito estrangulado:Soc...corro! Sa outra pancada surda, outra, outra, muitas pancadas, [23] e sobre os brancos lenes d'aquelle malfadado leito palpitam as carnes sangrentas, moribundas, de um corpo de mulher que ainda ha pouco sentia e pensava... Obseccado pela ida do roubo, o assassino arranca brutalmente as joias do cadaver, e, luz do combustor de crystal, reconhece que so falsas! Foge rua fra, como um possesso, enfia num becco, sae por outra rua, e desapparece na escurido da noite. No dia seguinte seu nome l estava estampado em letras garrafaes no livro dos ros: Gustavo Adolpho... preso pelo duplo crime de assassinato e roubo. Mais tarde, annos depois, o joven criminoso tentou fugir de Fernando de Noronha onde fra recolhido. Prenderam-no em flagrante. E ha poucos mezes, no anno passado, a princeza Isabel, ento regente do Brazil, abriu-lhe as portas da priso. Gustavo Adolpho publicou, no degredo, um livro de versos intitulado Risos e Lagrimas, uma colleco de poesias sentimentaes [24] e amorosos que pouco valem pela frma e onde se acham crystalisadas as dres do infeliz poeta, cuja imaginao cantava entre lagrimas. Penalisou-nos a sorte d'esse rapaz sympathico e intelligente. Havia, alem de Gustavo Adolpho, outro preso no menos interessante e que nos excitou a curiosidade. Indigitado autor de no sei que roubo, fra condemnado igualmente a gals perpetuas. Interrogado, disse-nos contar oitenta (!) annos de idade e possuir familia numerosa:mulher e 30 filhos! Qual foi o seu crime? perguntmos. O velhinho todo tremulo, a cabea muito branca; uma nevoa humida no olhar, sem foras quasi para dar um passo, murmurou tristemente: Nenhum, meus caros senhores... Supponho que houve engano da justia... E si lhe dessem liberdade agora?... De que me servia? Mal me tenho em p e j no sei de minha mulher e de meus filhos, [25] Estou muito velho, preciso morrer descansado aqui mesmo na priso. O edificio da Penitenciaria tem, logo entrada, a seguinte inscripo em marmore: No dia 23 de abril de 1885 sendo presidente da provincia o Illm. Sr. Conselheiro Dr. Jos Bento da C. Figueiredo foram removidos os presos para este edificio organisado sob a direco do engenheiro Jos Mamede Alves Pereira. Contava, portanto, trinta e cinco annos. Foi a mais interessante de todas as nossas visitas em Pernambuco. II No dia 27 deixmos o Recife em direco s Antilhas. Como at ahi, a viagem continuou a vapor,uma verdadeira viagem de recreio si no fosse a exiguidade dos commodos a bordo do cruzador. O commandante levava ordem para chegar a Nova Orleans em tempo de assistirmos a abertura da exposio internacional americana, onde o Almirante Barroso devia figurar como legitimo e admiravel producto da industria naval brazileira to pouco conhecida no extrangeiro. Adoptavamos, sempre que o vento permittia, a navegao mixta, e deste modo, vela [28] e a vapor, arrastados pelas correntes maritimas que puxam para o norte, alcanmos, a 2 de Maro, a linha equatorial, onde apanhmos alguns chuviscos debaixo d'uma athmosphera ardentissima. Reinava calmaria pdre. Ferraram-se as velas mingua da mais leve aragem, armaram-se os toldos para que podessemos supportar o calor na tlda, e os banhos salgados de ducha foram recebidos com especialissimo agrado. Suava-se a valer. Imagine-se: embaixo, no poro, as fornalhas accesas, e em cima o sol ardente, o medonho sol do equador, cahindo como um caustico sobre o navio. tardinha incendiavam-se os horisontes de um colorido rubro, ensanguentado, de magica, reflectindo-se no espelho do mar tranquillo como num grande lago de crystal... Demos graas a Deus quando nos vimos fra de to desagradaveis regies. No dia 11 avistmos terra de Barbados, uma das mais prosperas colonias inglezas das Antilhas. Era o primeiro porto extrangeiro do intinerario. [29] O Capito do Porto foi o primeiro personagem que pisou a bordo: um inglez de aspecto duro como em geral o de todo inglez, olhando atravz de uns grandes oculos azues e ostentando fleugmaticamente um par de soias ruivas. Trajava dolman branco, muito justo ao corpo, calas de panno preto e chapo de cortia branco, de grandes abas, tombado para a nuca. Fez a visita sacramental e poz-se ao fresco em menos de dois minutos, depois de um fortissimo shake-hand. A ilha de Barbados vista de bordo de uma nudez quasi completa: nenhuma vegetao cobre as vastas planicies que primeiro ferem a retina do observador. Ao approximar-se-lhe, porm, novas paisagens de effeitos cambiantes vo-se desenrolando maneira de cosmorama. Moinhos rodam ao sopro do vento que ordinariamente fresco ahi, casas de campo confortaveis, arvores, chamins fumegantes, tudo isso vai apparecendo medida que nos approximamos, at que, com verdadeira surpresa, surge-nos toda a cidade [30] de Bridgetown e ento basta um golpe de vista largo para abrangel-a. distancia Bridgetown semelha uma pobre cidade deshabitada, sem indicio de civilisao. A surpreza que experimenta o viajante completa depois. Alguem que ahi esteve annos antes admirou-se da enorme quantidade de embarcaes inglezas surtas no porto. Entre estas contavam-se quatro encouraados, bonitos vasos que honram a Inglaterra affirmando o grande poder maritimo desse paiz, cuja esquadra ainda hoje no tem rival no mundo. Um dia e meioeis todo o tempo de nossa demora em Barbados, tempo sufficiente para conhecermos a ilha a vol d'oiseau. A populao, na maior parte negra, composta de gente de baixa classe e geralmente intratavel. Abundam os ciceroni, especie curiosissima de especuladores, que perseguem os viajantes de uma maneira barbara. Querem, fina fora, ensinar-lhes as ruas, os hoteis, e no os largam emquanto no satisfazem a sua [31] ambio, cobrando, no fim de contas, certo numero de shillings. Falam um patois detestavel; ninguem os entende com facilidade. Imagine-se um pobre diabo acompanhado d'uma multido que grita e fala idioma desconhecido a repetir-lhe alto aos ouvidos:Came hear! came hear! discutindo, altercando-se de cacete em punho. O misero julga-se por um momento transportado, como por encanto, s costas d'Africa, fecha ouvidos grita dos importunos ciceroni, brada mil vezes no, no, no..., e no tem remedio seno deitar a correr como um possesso, perseguido sempre pela turba multa de vadios, at que, depois de uma lucta incrivel, esguedelhado, offegante, pallido, embarafusta pela porta d'um hotel escorrendo suor, esfalfado, morto de cansao! E ainda por cima vocifra a legio faminta dos negros! Nao exagro. Parece realmente um paiz semi-barbaro aquelle, e ai! de ns si no fossem os policemen, a, activos e energicos guardas da vigilancia publica, que a um simples [32] franzir de sobr'olhos fazem desapparecer a medonha horda de capadocios, ou que melhor nome tenham esses turbulentos demonios. espantosa a ambio do povo por dinheiro. Ao tilintar do money surgem de repente vinte, trinta cabeas negras, cada qual mais negra, disputando a posse do precioso metal. Basta dizer que ainda no tinhamos fundeado e j grande numero de pequenas embarcaes vela e a remos,fly boats,approximavam-se do navio, cortando-lhe a pra com risco de serem espedaadas. Ouvia-se, ento, de todos os lados vozes que gritavam:I am pilot! I am pilot! Embalde procuravamos persuadir quelles esfaimados de dinheiro que no precisavamos de pratico, pois a bahia de Bridgetown bastante espaosa e offerece entrada franca. Davamos com o leno, mandando-os embraque no! mas os gritos repetiam-se:I am pilot! I am pilot! Todos queriam, a troco de dinheiro, conduzir [33]o navio extrangeiro ao ancoradouro e para isso exigiam um preo fabuloso. Formidaveis importunos os taes negros de Barbados! A edificao de Bridgetown, puramente ingleza, curiosa, pittoresca mesmo, si bem que uniforme. As casas, baixas quasi todas, geometricamente dispostas, alpendradas na frente, simples e elegantes na sua architectura, so confortaveis e convidam ao far-niente. As ruas, porm, estreitas e mal caladas, so, por assim dizer, intransitaveis, em consequencia do poeiral que sobe, como fumaa, ao rosto dos transeuntes. No que respeita a estabelecimentos importantes, vimos aSt. Leonard's School e uma igreja-cemiterio. A estatua de Nelson, o heroe de Trafalgar, ergue-se, em bronze massio, n'uma das melhores praas do logarNelson's square, si me no engano. Os poucos hoteis que existem na ilha so vastos e offerecem o necessario conforto ao [34] viajante: boa mesa, bons petiscos, magnifico vinho, deliciosos sorvetesice-creame, finalmente, boas camas e muito aceio. O brazileiro que viaja, com raras excepes, tem necessidade imprescindivel de duas cousas que elle julga essenciaes ao seu bem estar: caf e cigarros. Spleen e charutosso cousas inseparaveis de um inglez da Inglaterra; caf e cigarroseis o que um brazileiro no dispensa. Infelizmente para ns, o caf, tal qual se prepara em Barbados, um licor detestavel composto de muito p e pouca agua, que os naturaes mixturam guisa de chocolate, mas de um sabor desagradavel, repugnante. Duas linhas de bonds percorrem a capital d'um extremo a outro. A ilha circumdada por uma via-ferrea. De resto, admiravel seno assombroso o progresso d'essa colonia, relativamente pequena e to longe da metropole. E, note-se, de vez em quando atravessam aquellas regies terriveis cyclones produzindo estragos incalculaveis em toda a extenso da [35] ilha. Innumeras embarcaes, algumas de grande porte, tm sido arrojadas costa por esses formidaveis meteros. O ultimo cahiu em 1851 e figura nos annaes da navegao como um dos grandes desastres maritimos do Atlantico. III Na manh do dia 13 suspendemos ancora em direco ilha da Jamaica, fundeando no mesmo dia na bahia de Port-Royal. Denso nevoeiro envolvia, como uma gaze alvissima, as altas montanhas que orlam magestosamente a antiga colonia hespanhola. Ao approximarmo-nos da pequena e elegante cidade de Port-Royal, pedimos pratico o qual nos levou Kingston. O brazileiro que, depois de longa ausencia do Brazil, chega Jamaica sente logo um prazer especial, um fremito de patriotismo, ao contemplar as soberbas montanhas da ilha, tanto ellas lembram a natureza do nosso paiz. A bahia, salpicada de interessantes ilhotas de [38] verduras, verdadeiras ilhas fluctuantes, em cujas aguas immoveis bandos de aves ribeirinhas ostentam sua plumagem garrda e multicolor, voando d'uma margem outra n'uma contradansa animada, offerece aspectos lindissimos. Jamaica parece um pedao do Brazil transplantado para as Antilhas, tal a opulencia da sua natureza. a maior e a mais florescente das colonias inglezas da America depois de Barbados. Mede approximadamente quarenta leguas de comprimento. Kingston no uma cidade como Bridgetown, onde a cada passo depara-se com uma prova de adiantamento material. , por assim dizer, uma capital morta, quasi sem commercio, mas, em compensao, muito mais pittoresca que a capital de Barbados. Os habitantes so morigerados, e uma paz religiosa parece reinar no seio de cada familia. Ha mais pobresa, certo, mas incomparavelmente o povo mais educado, mais pronunciado o instincto de civilisao. Muitas estatuas. Vimos as de Lewis Quier [39] Bower Bonk, nascido em 1815, Edward Jordon, um dos principaes fundadores daJamaica Mutual Life Assurance Society, Sir Charles Theophilus Metcaf, governador em 1845todas ao redor de um parque. Isso prova quanto respeito infunde ao inglez o nome de um compatriota celebre. Um brazileiro estabelecido em Kingston disse-nos ser o Almirante Barroso o primeiro navio brazileiro que ahi aportava desde 1871. Nossa demora em Jamaica foi rapida como em Barbados. Telegrammas officiaes do Rio apressavam-nos cada vez mais. J se havia inaugurado a Exposio de Nova Orleans; era-nos foroso assistir ao menos o encerramento. Estavamos convictos de que o cruzador brazileiro ia figurar com brilho no importante certamen americano. Tanto em Bridgetown como em Kingston no lhe faltaram elogios de pessoas competentes. Todos anceavamos pela chegada ao paiz maravilhoso dos yankees, ao bero da electricidade, todos queriamos conhecer de visu o celebrado paiz das descobertas engenhosas. [40] Desde logo entrmos, de combinao, em serios estudos do idioma inglez praticando uns com os outros, compulsando manuaes de conversao, decorando significados, preparando-nos, emfim, da melhor forma, para retribuir gentilezas, captar amizades, responder a todas as perguntas que nos fossem feitas queima roupa. Sim, porque tudo quanto haviamos aprendido theorica e praticamente na Escola, no era bastante. Faltava-nos a facilidade, o traquejo da palavra extrangeira, que haviamos de adquirir fora de vontade e applicao assidua. Alguns officiaes, entre os quaes o commandante, riam-se do nosso apuro, e, de vez em quando, atiravam-nos de surpreza uma pergunta em inglez. Quanto disparate, quanta tolice a principio! O certo que depois, com o tempo, j nos entendiamos soffrivelmente. Noblesse oblige... IV A hospitaleira sociedade de Jamaica havia-nos conquistado a sympathia. Todos sentimos deixar to cedo aquella encantadora ilha, cujos habitantes nos tinham prodigalisado to generoso acolhimento. Lenos ascenavam para bordo ao deixarmos o ancoradouro s 5 horas da tarde de 21, despedindo-nos talvez para sempre d'essa boa gente. Durante os dias 22 e 23, mar e vento rebellaram-se contra o navio. Navegavamos bolina, sempre vela e a vapor, amurados por bombordo. Grandes rajadas frias sopravam do norte, cantando nos cabos da mastreao, sacudindo-os com violencia. [42] O thermometro baixara sensivelmente, e a columna barometrica punha-nos calefrios... O mar quebrava-se de encontro s bochechas do cruzador desafiando-lhe a resistencia colossal. Sabiamos que a latitude em que navegavamos, nas Antilhas, era muito frequentada pelos cyclones, esses terriveis inimigos dos navegantes, que arrastam em sua cauda milhares de vidas. Receiavamos esses phenomenos tanto mais porque os seus effeitos fazem-se sentir a grandes distancias. Os symptomas visiveis, si no eram evidentes, approximavam-se das descripes de navegantes experimentados. O co estendia-se limpo, como um largo pallio azul esbranquiado; apenas no horisonte fluctuavam pequenos stratus em frma de rabo de gallo e algumas estrias avermelhadas, escarlates, despertavam-nos a atteno. Ao meio-dia o sol tinha uma cr baa, com um disco azulado ao redor. E crescia o mar em vagalhes medonhos e esfusiava o vento no cordame. [43] O navio caturrava e arfava morosamente; ouvia-se o barulho do helice trabalhando fra d'agua. Pela madrugada de 24 lobrigmos por borste o pharol da ilha de Cuba, de luz muito branca, e no dia seguinte sulcavamos o golfo do Mexico. Poucos dias restavam para alcanarmos Nova-Orleans. E nada do supposto cyclone! Por via de duvidas, como o tempo continuasse borrascoso, ferrmos a maior parte do panno, conservando apenas as gaveas risadas nos terceiros e a mezena de capa. Capemos tres dias consecutivos, sem que apparecesse o medonho visitante. No quinto dia o vento amainou rondando para nordeste e o mar, por fora das circumstancias, tambem acalmou-se. Ferrmos o resto do panno, navegando s a vapor. A ida da chegada preoccupava todos os espiritos. Os Estados-Unidos eram o assumpto de todas as conversaes. Cedo tratou-se da limpeza do navio. [44] Cada qual tratou de si, de sua roupa, de seus objectos que o mar sacudira de um lado a outro dos camarotes. Os alojamentos apresentavam o curioso aspecto de um campo de batalha; malas confundiam-se umas sobre outras formando empilhamentos, a roupa branca usada andava de mixtura com os fatos novos de panno; livros, papeistudo quanto era de uso quotidiano estava espalhado no convz, como si andasse por ali alguma creana traquinas. Guerra ao mfo! Roupas ao sol! Ninguem se fez esperar. Comearam as arrumaes, uma faina aodada, durante a qual soaram boas gargalhadas filhas de inalteravel bom humor. Os guardas-marinha alojavam-se ppa n'um acanhadissimo compartimento que mal os comportava. Ahi tinham suas camas, suas malas, seus livros. Quantos prejuizos! Quantas decepes! E todos acocorados, arrumando e desarrumando, n'uma confuso burlesca, maldiziam o mar e apostrophavam o vento. Neptuno e Eolo nunca receberam tantas manifestaes [45] desairosas. Pois no! Ninguem tem suas cousas para vel-as de um dia para outro arruinadas, inutilisadas pelos caprichos incoerciveis do mar e do vento. Finalmente, como nada ha melhor que um dia depois de outro, veio o dia 29 de Maro em que dos vos do joanete de pra o gageiro annunciouterra! Continuava, entretanto, incessantemente, a asfama. A guarnio da bateria occupava-se da limpeza das peas, collocando-as em posio, abrindo e fechando culatras, lixando-as, lubrificando-as emquanto o fiel ia distribuindo o cartuxame. Havia uma alegria geral a bordo e sentia-se um vago odor de tintas, como ao entrar-se n'uma casa nova, pintada de fresco. J era tempo de repousarmos das fadigas da viagem. V Ninguem pde imaginar o que a chegada de um navio de guerra a porto extrangeiro depois de uma tempestade ou mesmo depois d'uma ameaa de temporal. A faina tor-na-se geral e o ruido inevitavel. de ver-se a promptido, a rapidez com que se executam as ordens. Como que ha mais vontade para o trabalho, desenvolve-se logo um contagioso bem estar, ninguem foge ao servio. Tezar cabos de laborar, baldear o convez a ficar alvo e polido, como uma sala de visitas, limpar, areiar os metaes amarellos at ficarem relusentes como ouro de lei, ferrar o panno a capricho, cuidadosamente, de modo a confundil-o com as vergas e os mastros, preparar os [48] escalerestudo isso cousa d'um abrir e fechar d'olhos. A guarnio do Almirante Barroso, disciplinada e obediente como todas as que serviam sob as ordens do commandante Saldanha, primava pelo aceio, pela ordem, pela destreza e pela actividade. No se lhe pd ......Buy Now (To Read More)

Product details

Ebook Number: 24190
Author: Caminha, Adolfo Ferreira
Release Date: Jan 7, 2008
Format: eBook
Language: Portuguese
Publication Date: 1894
Publisher Country: Rio de Janeiro:

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