Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 06

Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 06 Title: Opsculos por Alexandre Herculano - Tomo 06 Author: Alexandre...
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Author: Herculano, Alexandre,1810-1877
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Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 06

Title: Opsculos por Alexandre Herculano - Tomo 06 Author: Alexandre Herculano Release Date: December 30, 2009 [EBook #30801] Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) Nota de editor: Devido existncia de erros tipogrficos neste texto, foram tomadas vrias decises quanto verso final. Em caso de dvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrar a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Dez. 2009) OPUSCULOS OPUSCULOS POR A. HERCULANO SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA SOCIO CORRESPONDENTE DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID DO INSTITUTO DE FRANA (ACADEMIA DAS INSCRIPES) DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE TURIM DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC. TOMO VI CONTROVERSIAS E ESTUDOS HISTORICOS TOMO III LISBOA LISBOAVIUVA BERTRAND & C.a SUCCESSORES CARVALHO & C.a 73, Chiado, 75 M DCCC LXXXIV COIMBRAimprensa da universidade UMA VILLA-NOVA ANTIGA 1843 Se passardes pelos olhos uma carta topographica de Portugal, em cada provincia, em cada comarca, talvez em cada pequeno districto, achareis escripto, ao lado de alguns d'esses signaes que marcam as povoaes, a palavra Villa-nova: Villa-nova de Rei, de S. Cruz, de Gaya, de Cerveira;... que sei eu?Villas-novas de todos os sobrenomes, e at villas-novas de ninguem e de nada; villas-novas espurias. Villa-nova o dom municipal, o dom villo; porque, por extravagante antiphrase, villa-nova quasi sempre indica um antigo burgo com suas rugas de velhice, com seu castello desmoronado, com seus vestigios de templo ou de palacio da meia-edade. Villa-nova moderna, sem pedras amarellas, tombadas, ogivaes, cousa descommunal, [4] milagrosa, e ao rz do impossivel. que o passado, remoto, remotissimo, como o imaginardes, j foi presente, e ento a villa que se alevantava ou no desvio, at ahi inculto e intractavel, ou sobre os vestigios de povoao deshabitada e destruida, era realmente nova; mas os seus edificadores esqueciam-se, ao dar o nome obra das proprias mos, que elles passariam bem depressa e com elles a mocidade da sua filha querida; esqueciam-se de que o correr dos annos brevemente havia de converter em palavra sem sentido essa denominao que lhes parecra to clara e precisa. Aos primeiros respiros de paz e segurana, depois das guerras barbaras de religio e de raa que devastaram outr'ora este solo portuguez, o espirito municipal ia semeando os concelhos ao passo que debaixo dos marcos das fronteiras christs se embebia o territorio mussulmano, e ento acontecia que o burgo, recentemente plantado em terra at ahi erma e sfara, ou sobre as ruinas carcomidas de municipio romano ou godo, sentindo-se cheio de vida e de esperanas, folgava de contar ao mundo no proprio nome a sua juventude, e tomava para si o titulo to querido, to popular, to casquilhode Villa-nova. [5] E s vezes as villas-novas vinham encostar-se aos muros carrancudos e robustos das cidades reaes ou episcopaes. Eram como uma criana rosada, risonha, travessa, que se atira ao collo da velha rebarbativa, e se lhe pendura ao pescoo, e desata a rira bom rir. Acontecia tambem que uma ou outra ia assentar-se beira de um rio, defronte de povoao orgulhosa, e similhante a trasgo inquieto zumbia-lhe insolentemente aos ouvidos, e desangrava-a roubando-lhe o seu commercio: mettia-se at em bandos politicos para lhe fazer perraria; e inimiga d'ao p da porta no havia casta de incommodo que lhe no causasse. Que outra cousa fez Villa-nova de Gaya ao burgo episcopal do Porto, burgo to grave, to serio, to devotamente enroscado em volta da sua cathedral, aos ps dos seus sanctos bispos? Quem, seno Villa-nova de Gaya, assoprou provavelmente entre os honrados burguezes da cidade do Douro aquelle espirito de irmandade e revolta que tanto veio depois a incommodar os successores do veneravel D. Hugo? Lisboaguerreira e depois mercadoratambem teve, no uma, mas duas villas-novas abraadas sua cinta de muralhas: a primeira ao sul, a segunda ao poente. Chamava-se aquella [6] Villa-nova de Gibraltar: esta Villa-nova d'Andrade. A segunda, nascida no seculo XV, viveu dois dias apenas, porque Lisboa, essa villa[1] limitada nos fins do seculo XII a 15:000 habitantes, em quanto a mourisca Silves contava 25:000, cresceu com tal rapidez na epocha dos descobrimentos que, rompendo ou, antes, galgando por cima dos lanos occidentaes dos seus muros, a devorou ainda no bero, ou para melhor dizer partiu-a em fragmentos, e aos seus membros despedaados chamou Bairro-alto, Chagas, Sancta Catharina. Villa nova d'Andrade foi uma cousa fugitiva, sem gloria, sem individualidade. D'ella poderia dizer-se o que o psalmista dizia do impiovi-a exaltada como o cedro do Libano: passei, e no existia; busquei-a, no lhe achei rasto. Deixemol-a, pois, na paz do esquecimento e do nada. No assim Villa-nova de Gibraltar. Fallae-me de Villa-nova de Gibraltar! Esta sim, que viveu. A sua origem perde-se nas trevas dos tempos chamados barbaros, entronca-se no bero da monarchia. Assentada beira do Tejo, fra do lano [7] de sul e sueste da muralha arabe, ou talvez goda (quem poder hoje dizel-o?!), que cercava Lisboa antes do seculo XIV, saudavam-na os primeiros raios do sol oriental, aqueciam-na todos os do alto dia, douravam-na os derradeiros que vinham do poente roando pela superficie das aguas. A cidade l estava sombria entre as torres e altos muros da sua cerca; agachada nas faldas do seu castello soberbo e malcreado; prostrada em volta da sua cathedral ampla e triste. Mas que importava isso a Villa-nova de Gibraltar? Ahi no havia nem muros, nem torres, nem castellos, nem campanarios. Ella mirava-se no rio, e achava-se bella; bella por si e pelo luxo dos seus atavios; porque Villa-nova de Gibraltar era a atravessadora de quasi toda a mercancia; a patria dos rendeiros e sacadores das rendas e direitos reaes: era rica e potente; e ao sobrecenho altivo da velha Lisboa, confiada na sua epiderme de marmore, respondia ella mostrando a sua armadura d'ouro, e depois punha-se a rir, porque bem sabia j, como ns hoje sabemos, que o ouro mais forte que o marmore. D. Fernando I, que foi para com Lisboa como um amante selvagem, ora querendo aniquilal-a porque lhe preferia em amores o alfaiate Ferno [8] Vasques, ora lanando-lhe no regao riquezas, privilegios, tudo, quiz n'um accesso de ciume escondel-a aos olhos d'estranhos. J ella, a namoradeira, sahindo da Porta do Ferro, pelo terreiro da cathedral, corrra para o valle de Valverde e se reclinra por ahi abaixo indo espreitar a barra c da margem do rio; j comeava at a galgar pela encosta fronteira para o lado do gothico mosteiro de S. Francisco e para a ermida dos Martyres, e pela Pedreira do Almirante para o convento dos sanctos frades da Redempo. Alto l! disse o bom do rei D. Fernando, e, chamando os villes sujeitos ada por todas as villas e logares d'arredor, lanou cintura da doudinha uma nova faixa de muros, para que no passasse alem. Ficou-se, verdade, espairecendo Lisboa pelo valle e pela encosta, mas ao menos, atraz das novas torres e quadrellas, j no podia fazer gatimanhos de presumida aos que vinham visitar em som de paz ou de guerra os campos das suas cercanias, ou as aguas da sua enseada. E que era nesse tempo feito de Villa-nova de Gibraltar? L estava senhoril e desdenhosa, beira do Tejo, indifferente aos arrufos de Lisboa e aos ciumes de D. Fernando. Pacifica e fiel no [9] se entremettia em negocios alheios, no tumultuava, no se namorava d'estranhos. Assim a muralha real que bojava para poente, passou p ante p por entre ella e a cathedral para no a affligir: encorporou-se ahi com os antigos muros para a deixar, como at ento, exposta sua to querida restea de sol. Novas portas, todavia, a uniram com a antiga cidade, que to rapidamente crescra e se fizera garrida. Foi por ahi que lenta e traioeiramente Lisboa pde chegar a submettel-a e devoral-a. E quereis saber por qual razo, e como? Dir-vol-o-hei. Era que na fronte de Villa-nova de Gibraltar, abaixo do seu diadema rutilante de princeza, estava escripta uma lenda fatal e maldicta; uma lenda que por muito tempo foi apenas ignominiosa; mas que nos fins do seculo XV se converteu em sentena de morte, em signal estampado pela mo do archanjo do exterminio. Esta lenda encerrava apenas duas palavras, mas palavras blasphemas, que s podiam ser apagadas destruindo-se a existencia individual da povoao que se atrevia a apresental-as deante da luz do cu. Villa-nova de Gibraltar era a Communa dos Judeus! [10] A edade-media, essa epocha altamente poetica, porque tinha crenas, e profundamente symbolica, porque era poetica, havia feito de Lisboa um symbolo da historia religiosa e politica. O municipio christo, partindo do alto alcaar ou castello, dilatava-se at s raizes do monte, em cujo topo campeava, a cavalleiro de todos os cabeos dos arredores, a torre de menagema guarida do alcaide-mrcomo representante do senhorio real e da aristocracia: sombra do alcaar, e a mais de meia encosta, a cathedral alava os seus dois campanarios altivos, quadrangulares, massios: entre essas duas expresses materiaes da monarchia, da nobreza, e da egreja, a casa da camaraos paos plebeus do concelho, proximos do campanario septentrional da s, chos e humildesrepresentava o povo que em silencio se preparava para ir estender os braos endurecidos pelo trabalho, e subjugar algum dia, direita o alcaar, esquerda a egreja. Na configurao da cidade resumia-se a historia social do passado e a prophecia do futuro. Como tantas cousas da edade-media, Lisboa era um verdadeiro symbolo. No o era s, todavia, do pensamento politico: tambem o era da ida religiosa. No amago da [11] povoao, no logar eminente, estava o christianismo; ao norte, em profundo valle e apinhado em volta de mesquita apenas tolerada, ficava o bairro dos mouros, a Mouraria; e ao sueste, quasi ao oriente, lanada ao p da Esnoga, a Judearia:uma crena verdadeira, mas temporaria, do lado donde o sol surgia na sua ascenso para as alturas; a religio do Christo, complemento divino d'aquella, assoberbando-a do monte sobranceiro; o islamismo, transformao impia e tenebrosa d'ambas, como escondido ao norte na penumbra da cruz triumphante; e ao longe as vastas solides do oceano, atravez das quaes os filhos do evangelho o deviam levar algum dia s regies ainda incognitas de novos mundos. O velho Portugal tinha feito da cidade do Tejo um symbolo e uma prophecia sublimes! A monarchia, vencedora da edade-media, esqueceu a poesia d'ella; porque nos seus velhos habitos de organisar, de legislar, de livellar, perdra inteiramente o senso esthetico. A poesia estava principalmente nas idas, no sentir, nas formulas das classes aristocraticas: o povo era infeliz e selvagem, e a monarchia positiva, calculadora, e egoista. Com a victoria final d'esta desappareceu tudo o que representava o ideal. [12] Belem a agonia da arte; o estrebuchar descomposto da architectura christan que morria; e o cancioneiro de Resende o ultimo concerto dos trovadores em que j se misturam os sons discordes da poesia romana. Neste crepusculo da vida nacional, nesta passagem da originalidade para a copia, as ruinas tombavam sobre outras ruinas: a nova sociedade sobrepunha as suas obras incertas, frias, ou estupidas, aos restos ainda palpitantes do cadaver do passado; cirzia-as ridiculamente com remendos e fragmentos das obras e factos que destruira; fazia, emfim, por um pensamento de ordem e de organisao exaggerado, o que ns muitas vezes fazemos hoje por um amor de liberdade indiscreto e excessivo. curioso o vr como a edificao do celebre mosteiro Jeronimitano de Belem se liga com a destruio da communa judaica de Villa-nova de Gibraltar; como esse monumento de transio da architectura, esse cahos de todos os systemas que luctavam no principio do XVI seculo, reunidos, e por assim dizer petrificados de subito n'um edificio s, traz forosamente lembrana a ruina d'um facto da ordem moral que existira inconcusso entre ns por quatrocentos annosa [13] tolerancia da edade-media. De feito a tolerancia religiosa expirava ao passo que a architectura christan morria, e as bullas da inquisio vinham-nos talvez pelo mesmo correio que trazia aos nossos architectos os desenhos puros e materialmente formosos, mas pagos e peregrinos, de Bramante ou de Raphael. Um phenomeno por certo singular nos apresenta a historia antiga de Portugal. Na larga serie de leis, de artigos de crtes, de factos publicos at os fins do seculo XV, a crena viva de nossos avs se limita sempre dentro dos termos d'aquella intolerancia legitima que a verdade no pde deixar de ter para com o erro. O christianismo proclama-se ahi franca e energicamente a unica religio verdadeira: o christo julga-se um homem de condio superior ao judeu. O povo vigia, at, com ciume que o israelita conserve sempre no trajo um distinctivo da sua raa reproba, das suas doutrinas erradas. Mas a intolerancia acaba neste ponto: no se imagina ainda que o desterro, os tractos do potro, e o cheiro de carne humana queimada subindo da fogueira expiatoria, sejam sacrificios agradaveis a Deus. Na gente judaica havia mais, por assim dizer, um caracter de triste fatalidade [14] pesando sobre uma raa condemnada pelo seu peccado original do Deicidio, que o de uma raa maldicta por crimes proprios. Os judeus, como testemunhas da morte de Jesu-Christo, devem ser defendidos s porque so homens: estas palavras de D. Affonso II resumem o pensamento da edade-media cerca d'elles. o pensamento de que Lisboa com Villa-nova de Gibraltar foram a imagem sensivel. No alto da s a cruz, abrigada sombra do castello christo, via a seus ps a synagogaa humilhada Esnogaque testemunhava alli a morte do Christo, a victoria do Evangelho, e a redempo dos homens: e o que orava na cathedral sentia s desprezo, e por ventura compaixo, por aquelle que orava na synagoga. Se o odio se misturava s vezes com esses sentimentos, motivos no religiosos, mas puramente materiaes o geravam: geravam-no as riquezas dolosamente accumuladas pela gente hebrea, os vexames que practicavam como exactores da fazenda publica, as suas usuras como possuidores de capitaes, e mil outros motivos humanos em que nada tinha que vr a opposio das crenas. E o seculo XVI, que era erudito; que traduzia Cicero e Ovidio, e imitava Horacio: o seculo da [15] civilisao, das conquistas, de todas as grandezas, cuspia nas faces da edade-media, que jazia morta a seus ps, o epitheto de barbara! E D. Manuel, o culto e venturoso monarcha do oceano, esquecia-se do que no esquecera a seu rude e obscuro av D. Affonso II: esquecia-se de que os isralitas estavam condemnados pelo Rei da Eternidade a vaguearem perpetuamente na terra como testemunhas da morte de Jesu-Christo. Portugal devia ser exceptuado d'esse decreto de cima, e a converso violenta dos judeus foi um dos factos mais estrondosos d'aquelle to estrondoso reinado. Da communa hebraica, da risonha e opulenta Villa-nova de Gibraltar, apenas nos resta a sua synagogamelhor diriamos o sitio d'ellaconvertido em templo christo. uma collegiada da ordem de Christo: a Conceio Velha; velha porque j as cousas d'essa epocha manuelina, to fastosa, to transformadora, to destructiva de tudo o que quer que fosse, bom ou mau, das eras poeticas, j hoje caruncho e podrido: os seus monumentos j se confundem com os que ella desprezava como barbaros. Fallae no portal rendilhado da Conceio Velha a um vereador, a um politico, a um pascasio de melenas, emfim [16] a qualquer inimigo nato das cousas mais poeticas e sanctas da patriaos monumentose responder-vos-ha torcendo o nariz e com um ademan parvo de superioridade: Poh diabo! isso gothico! Gothico! Ouves, seculo dezeseis, seculo romanista, seculo brilhante, seculo peralvilho? Ouves l debaixo da tua campa, pesada como todos os crimes que commetteste no oriente, confundirem-te hoje com os seculos rudes e pobres da nobreza d'alma na fidalguia e da energia popular? Mudaste a indole da nao; tornaste-a de guerreira em mercadora; de municipal em cortezan; de austera em voluptuaria. Acceita de mos como aquellas a paga da tua boa obra. A historia da esnoga e do mosteiro de Restello simples: tl-a-heis lido em dez livros copiados uns dos outros com grande augmento e gloria das lettras patrias. Onde hoje este edificio, amplo como o poderio de D. Manuel, simula aos olhos do vulgo, na vermelhido dourada das suas pedras, uma edade mais provecta que a verdadeira, existia um conventinho de freires de Christo. D. Manuel vasou-os na synagoga de Villa-nova, desentulhou o cho da ermida de Sancta Maria de Belem, que assim se chamava [17] ella, alevantou a machina que ahi vdes, chantou-lhe dentro no sei quantas duzias de frades jeronimos de Penhalonga, e morreu deixando a sua obra imperfeita. Tractou de continual-a D. Joo III nos intervallos em que lh'o consentiam as suas incansaveis diligencias para obter a sancta inquisio, contra a qual reluctou muito tempo a curia romana, que nem sempre to boa como alguns a fazem, nem to m como outros o affirmam. Na regencia de D. Catharina parece ter-se acabado a igreja como actualmente existe. E a esnoga de Villa-nova? A esnoga estava reformada, rendilhada, baptisada, christan e contrita como.... como os judeus allumiados subitamente pelo Espirito-Sancto no mesmo dia e mesma hora, por um decreto real, redigido provavelmente pelo secretario Antonio Carneiro. Apsto que no sabeis quem era Antonio Carneiro? Era para D. Manuel o que fra Anto de Faria, que tambem provavelmente no conheceis, para D. Joo II: um substituto da cadeira monarchica, um marquez de Pombal de ha trezentos e quarenta annos, de que ninguem se lembra hoje, como d'aqui a outros trezentos annos ninguem se lembrar do marquez de Pombal. Sic transit gloria mundi. [18] Pois no o merecia Antonio Carneiro!Foi ministro de peso e volume. Os papeis da sua secretaria, ou antes do Estado, eram em portuguez! Quem me dera um Antonio Carneiro! Antonio Carneiro foi at homem agudo e engraado: prova d'isso o preambulo do regimento dado collegiada da convertida synagoga, em 29 de janeiro de 1504. Evidentemente o ritual rabinico j no tinha applicao. N'esse preambulo conta o bom do secretario a historia da transformao. Eis as suas palavras: Como entendemos ( el-rei quem fala segundo estylo e direito) na conuerso dos judeus de nosos reynos pera nosa santa fee serem ajuntados, he no conhecimento he obras della se saluarem, com muyta deuao nos oferecemos he deliberamos da casa da esnoga dos judeos que estavam na judiaria grande desta cidade, asi como ella era a mays principal em que o nome de noso senhor era blasfemado, he as coussas de nosa santa fee catolica reprovadas e emmingoadas, fazermos huma solene igreja e casa da enuocao de nosa senhora da conseio, na qual com muy grande solenidade e deuao os officios deuinos fossem celebrados, he ali, onde a noso senhor por tanto espao de annos e tempos fora feyto tanto deseruio, [19] he o seu nome he as suas coussas blasfemadas, perpetuamente he em toda a perfeyo seus louuores se fizessem, he o culto deuino fosse continuamente he com grande solenidade exalado.Basta. No me digaes nada do estylo d'Antonio Carneiro: era o do seu tempo. Confessai antes que no esperaveis que a transformao da synagoga em igreja fosse uma antithese religiosa, um trocadilho ao divino. Essa perseguio similhante dos tyrannos de Roma contra os primeiros martyres do christianismo, alevantada contra os judeus portuguezes, nos fins do seculo XV, foi apenas uma figura de rhetorica feita por D. Manuel. elegante, immortal Antonio Carneiro! Tu ajudavas teu senhor a acabar a obra de D. Joo II, a anniquilar toda a poesia da edade-media; mas tu eras mais poeta do que ella. Creanas despedaadas por seus pais para no serem entregues aos beleguins missionados; homens, havia pouco opulentos, reduzidos miseria e ao desterro, ou obrigados a acceitarem um baptismo sacrilego, porque era recebido por violencia: tudo quanto ha negro e infame n'aquelle procedimento, em que at no faltou a covardia de se respeitar o direito das gentes para com os mouros (tambem expulsos [20] n'essa occasio) porque tinham quem podesse vingal-os: tudo isto, excellente Antonio Carneiro, no passou de uma frmula de Quintiliano, applicada theoria do culto! Quem poder duvidar de que os admiradores do grande seculo, do seculo XVI, teem prodigiosamente desenvolvidas as proeminencias do bom e do bello? Da esnoga, reconstruida em templo por Antonio Carneiro e por D. Manuel, apenas resta a portada. Tambem era a cousa unica formosa e alegre em toda essa negra e maldicta historia. Se quereis estudar como artistas os seus delicados lavores, ide contemplal-a rua da Ribeira Velha, antes que o progresso passe por l e a derribe. O progresso gordo e ancho: no cabe onde quer que esteja um monumento. COGITAES SOLTAS DE UM HOMEM OBSCURO 1846 O modo como os fragmentos que vamos publicar nos vieram s mos cousa que no importa aos leitores: o que lhe pode importar se haver n'elles idas que os levem a reflectir sobre o estado da sociedade no meio das questes de organizao que se agitam entre ns. So estas folhas avulsas como uma serie de apontamentos para um livro que talvez fosse de algum valor se chegasse a escrever-se. Incapazes litterariamente de preencher as lacunas e de coordenar as idas, que as mais das vezes apenas esto indicadas n'estas notas, imprimimol-as como nos foram transmittidas pela derradeira vontade de um homem que j no existe, e que tinha mais habito de pensar que de escrever, o que, seja dicto sem offensa de ninguem, no demasiado [24] vulgar. Cremos que todos os partidos reconhecero que estes pensamentos se movem n'uma esphera differente d'aquella em que giram as opinies ou as paixes por cuja causa combatem uns com outros e mutuamente se detestam, e que por isso nenhum d'elles os considerar como adversos ou favoraveis aos seus interesses momentaneos, e, digamol-o, s vezes bem pouco graves. Da altura dos systemas os publicistas olharo para estas cogitaes como para um sonho de homem acordado, no raro em flagrante contradico com as doutrinas das escholas. provavel que tenham razo. Mas como elles ainda no poderam intender-se entre si, nem sequer cerca dos principios fundamentaes da sciencia politica, deixem passar o pobre sonhador, e perdem-lhe a ignorancia em atteno ao seu amor de patria e nova luz a que nos parece ter visto um certo numero de factos sociaes importantes. Notas, cujo destino era o serem conservadas na pasta do auctor, at se completarem e receberem a conveniente ordem, estas ponderaes no teem ainda as frmas modestas com que deveram apresentar-se; ns, porm, no nos atrevemos a revestil-as d'essas frmas com receio de diminuir-lhes a energia. [25] Mais como duvidas sobre as causas e remedios da febre que agita as sociedades modernas, que como pretenes de fundar uma eschola politica, esperamos sejam consideradas as Cogitaes de um homem obscuro por aquelles que se applicam a reformar as instituies dos povos. So idas informes, incompletas, e rudes: mas bem grosseira a silex, e d'ella que sahe a fala com que accendemos o facho que nos guia nas trevas de noite profunda. Possam os devaneios d'aquelle que passou desconhecido ao mundo no serem inteiramente inuteis para o progresso humano, e sobre tudo para a liberdade e bem-estar futuro da terra sacrosancta da Patria! I Fraco, pequeno, e pobre na origem, Portugal teve de luctar desde o bero com a sua fraqueza original. Apertado entre o vulto gigante da nao de que se desmembrara e as solides do mar, o instincto da vida politica o ensinou a constituir-se fortemente. Quando se lanam os olhos para uma carta da Europa e se v esta estreita faixa de terra lanada ao occidente da Peninsula e se considera que ahi habita uma nao independente ha sete seculos, necessariamente occorre a curiosidade de indagar o segredo d'essa existencia improvavel. A anatomia e physiologia d'este corpo, que apparentemente debil resistiu assim morte e dissoluo, deve ter sido admiravel. Que feito das republicas da Italia to brilhantes e poderosas durante a edade-media? Onde existem Genova, Pisa, Veneza? Na historia: unicamente na historia. l onde smente vivem o imperio germanico e o do Oriente, a Escossia, [27] a Noruega, a Hungria, a Polonia, e na nossa propria Hespanha a Navarra e o Arago. Fundidas n'outros Estados mais poderosos ou retalhadas pelas conveniencias politicas, estas nacionalidades exteriormente fortes e energicas dissolveram-se e annullaram-se, e Portugal, nascido apenas quando essas sociedades j eram robustas, vive ainda, posto que em velhice abhorrida e decrepita. Ha n'isto sem duvida, se no um mysterio, ao menos um phenomeno apparentemente inexplicavel. Estar a razo da nossa individualidade tenaz na configurao physica do solo? Somos ns como os suissos um povo montanhez? Separam-nos serranias intransitaveis do resto da Peninsula? Nada d'isso. As nossas fronteiras indicam-nas commummente no meio de planicies alguns marcos de pedra, ou designam-nas alguns rios s no inverno invadiaveis. Quem impediu a Hespanha, esse enorme colosso, de devorar-nos? Poder-se-ha dizer que desde o seculo XVII a rivalidade das grandes naes da Europa que nos tem salvado. Talvez. Mas antes d'isso era por certo uma fora interior que nos alimentava, e que ainda actuou em ns no meio da decadencia a que chegmos no seculo XVI, decadencia [28] que virtualmente nos veio a subjeitar ao dominio castelhano. Mas durante esse mesmo dominio o instincto da vida politica, o aferro individualidade, existia se no nas classes elevadas ao menos entre a plebe, porque a plebe a ultima que perde as tradies antigas, e o amor da sua aldeia e do seu campanario. A lucta do vulgachoexclusivamente do vulgachoa favor de D. Antonio prior do Crato contra a corrupo de tudo quanto havia nobre e rico em Portugal, e contra o poder de Philippe II, um reflexo pallido e impotente da epocha de D. Joo I; mas um facto de grande significao historica. Completam-n'o as diligencias feitas nas crtes de Thomar para que a linguagem official do paiz se no trocasse pela dos conquistadores. Este facto comparado com ess'outro obriga a meditar. Philippe II foi um grande homemastuto, activo, dotado de um character ferreo; foi o representante mais notavel da unidade politica absoluta, e no pde ou no soube delir e incorporar este pequeno povo na vasta sociedade hespanhola, sobre a qual seu pae e elle haviam passado uma terrivel rasoira que lhe destruira [29] todas as asperezas e desegualdades. E todavia Philippe II tinha geralmente por alliados entre os vencidos os homens mais eminentes por illustrao, por linhagem, por faculdades pecuniarias. que as multides obscuras eram ainda portuguezas no amago, posto que corrompidas no exterior pela corrupo das classes privilegiadas. Todas as outras explicaes so insufficientes ou falsas. II Tambem os tempos que precederam immediatamente o dominio hespanhol offerecem um complexo de factos que fazem pensar. Na segunda metade do seculo XV resolveu-se Affonso V a conquistar Arzilla. Aprestou trinta mil combatentes e uma frota de perto de quinhentas velas. Os esforos de Portugal para supprir uma to poderosa expedio parece no terem sido excessivos. Aquelles de quem o principe estava descontente eram ameaados por todo castigo de no se lhes consentir o participarem dos riscos da empreza. Para emenda de muitos bastava o incentivo de se lhes recusar o affrontarem os combates e a morte. Na segunda metade do seculo XVI tractava-se de ajunctar doze mil homens para a infeliz jornada de Alcacer-quibir. As violencias que se practicaram para arrancar do paiz as victimas d'aquelle grande holocausto foram inauditas, e esgotaram-se os recursos da nao para satisfazer [31] o custo de uma tentativa, de cujo resultado a consciencia da propria fraqueza e degenerao fazia com que o povo augurasse mal. Entre estas duas epochas necessario suppr um periodo de decadencia profunda, moral e material, e esse periodo deve ser longo. Uma nao no decahe de um dia para outro dia. A virtude e os recursos de Portugal deviam ter-se consumido lentamente. Mas o que esse periodo intermedio? o do estabelecimento da monarchia absoluta sobre as ruinas da monarchia liberal da edade-media. a epocha dos descobrimentos e conquistas. Entre as idas de engrandecimento e poderio da epocha anterior a D. Joo II, e as da epocha posterior a elle, ha um abysmo que nunca deixar confundil-as. A politica da edade-media era em tudo religiosamente historica: a do renascimento era em tudo hypocritamente revolucionaria. Expliquemo'-nos. Portugal surgira no meio de uma reaco de crena e de raa. A Africa e o islamismo tinham subjugado a Hispanha e o christianismo. A raa goda e christan repellia a conquista. Durante o progresso da reaco, Portugal nascra e d'ella [32] se tinha alimentado como os outros Estados da Peninsula. Era este o grande facto da sua existencia: o mais era accessorio e secundario. A conquista mussulmana fra uma vaga dos grandes stos humanos que, galgando por cima do Estreito, viera tombar e espraiar-se sobre o solo que habitava a familia romano-gothica. Para obedecer natureza das cousas, para a reaco ser verdadeira e completa, a vaga romano-gothica tambem devia transpor o Estreito e, estourando sobre a Mauritania, dar-lhe a provar o amargor do dominio extrangeiro. O futuro pertencia a Deus; mas as probabilidades do final triumpho cabiam quelle dos dous contendores que viesse a ter por si a superioridade da civilisao, e o decurso dos tempos mostrou que esta superioridade recahiu, no na Africa, mas sim na Peninsula. Assim as tentativas dos nossos antigos reis para se apoderarem dos territorios africanos eram logicas historicamente, e alm d'isso eram justas. O islamismo fra quem lanra a luva raa christan: no podia queixar-se da prorogao do combate. E, descendo da ida essencial da politica da edade-media s circumstancias secundarias que [33] podiam servir como meios de a realizar, v-se entre ellas e essa ida me uma admiravel harmonia. As conquistas d'Africa deviam sorrir ao povo: estribavam-se nas tradies e nos odios de uma guerra de seculos, guerra ao mesmo tempo de religio e de liberdade; no habito da victoria, que desde a batalha das Navas de Tolosa os proprios mussulmanos consideravam como devendo, mais tarde ou mais cedo, pertencer definitivamente aos christos. Accrescia a vizinhana das costas da Berberia e, portanto, a facilidade de conduzir d'aquem mar tropas, viveres, munies; o serem os sarracenos adversarios antigos, e por isso avaliados com exaco os seus recursos, o seu valor, os seus ardiz e usanas militares; o existirem necessariamente ligaes entre os mouros, livres em Portugal debaixo do dominio christo, e os sarracenos africanos, o que por muitos modos facilitava a conquista. Tudo isto conspirava em tornar nacional e plausivel o systema d'engrandecimento da nossa edade-media; systema claro, consequente, legitimo, e do qual j se devisavam os symptomas, como era natural, pouco depois da conquista do Algarve por Affonso III, isto , no reinado de seu neto Affonso IV. [34] Esta politica mudou na conjunctura em que a monarchia primitiva se caracterisava definitivamente em monarchia absoluta. A causa final de todas as tentativas de engrandecimento colloca-se desde essa epocha na pessoa do rei, e no no paiz: a tradio historica perde-se. As expedies maritimas abandonam o rumo da Africa septentrional e vo correndo ao longo das costas meridionaes. Os descobrimentos alm do Bojador, que at ahi eram accessorios da intentada conquista do Maghreb, convertem-se em objecto principal das ambies de poderio. Affonso V tomra o titulo de rei de Portugal e dos Algarves, d'aquem e d'alem mar: fra esta a derradeira expresso do pensamento antigo. D. Joo II accrescentou a esse titulo o de senhor de Guin: era a primeira palavra do symbolo moderno. As conquistas de Affons ......Buy Now (To Read More)

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Ebook Number: 30801
Author: Herculano, Alexandre
Release Date: Dec 30, 2009
Format: eBook
Language: Portuguese

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