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Cinco minutos Title: Cinco minutos Author: Jos Martiniano de Alencar Release Date: December 29, 2013 [EBook #44540]...
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Author: Alencar, José Martiniano de,1829-1877
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Author: Alencar, José Martiniano de,1829-1877
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Title: Cinco minutos Author: Jos Martiniano de Alencar Release Date: December 29, 2013 [EBook #44540] Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha, Alberto Manuel Brando Simes and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by Brasiliana Digital.) Nota de editor: Devido existncia de erros tipogrficos neste texto, foram tomadas vrias decises quanto verso final. Em caso de dvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrar a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Dezembro 2013) CINCO MINUTOS J. DE ALENCAR CINCO MINUTOS EDIO ESPECIAL RIO DE JANEIRO Typ. Mont'AlverneRua do Ouvidor 82 1894 A D*** I uma historia curiosa a que lhe vou contar, minha prima. Mas uma historia, e no um romance. Ha mais de dous annos, seriam seis horas da tarde, dirigi-me ao Rocio para tomar o omnibus de Andarahy. Sabe que sou o homem o menos pontual que ha n'este mundo: entre os os meus immensos defeitos e as minhas poucas qualidades, no conto a pontualidade [6] essa virtude dos reis, e esse mo costume dos Inglezes. Enthusiasta da liberdade, no posso admittir de modo algum que o homem se escravise ao seu relogio e regule as suas aces pelo movimento de uma pendula. Tudo isto quer dizer que, chegando ao Rocio, no vi mais omnibus algum; o empregado quem dirigi-me respondeu: Partio ha cinco minutos. Resignei-me, e esperei pelo omnibus de sete horas. Anoiteceu. Fazia uma noite de inverno fresca e humida: o co estava calmo, mas sem estrellas. hora marcada chegou o omnibus, e apressei-me ir a tomar o meu lugar. Procurei, como costumo, o fundo do carro, afim de ficar livre das conversas monotonas dos recebedores, que [7] de ordinario tm sempre uma anecdota insipida contar, ou uma queixa fazer sobre o mo estado dos caminhos. O canto j estava occupado por um monte de sedas, que deixou escapar-se um ligeiro farfalhar, conchegando-se para dar-me lugar. Sentei-me; prefiro sempre o contacto da seda vizinhana da casimira ou do panno. O meu primeiro cuidado foi ver si conseguia descobrir o rosto e as frmas que se escondiam n'essas nuvens de seda e de rendas. Era impossivel. Alm de estar escura a noite, um maldito vo cahido de um chapozinho de palha no me deixava a menor esperana. Resignei-me, e assentei que o melhor era cuidar de outra cousa. J o meu pensamento tinha-se lanado galope pelo mundo da fantasia, quando de repente foi obrigado voltar [8] por uma circumstancia bem simples. Senti no meu brao o contacto suave de um outro brao, que me parecia macio e avelludado como uma folha de rosa. Quiz recuar, mas no tive animo; deixei-me ficar na mesma posio, e scismei que estava sentado perto de uma mulher que me amava e que se apoiava sobre mim. Pouco e pouco fui cedendo quella attraco irresistivel e reclinando-me insensivelmente: a presso tornou-se mais forte; senti o seu hombro tocar de leve o meu; e por acaso encontrei uma mozinha delicada e mimosa que deixou-se apertar medo. Assim, fascinado ao mesmo tempo pela minha illuso e por este contacto voluptuoso, esqueci-me, ponto que, sem tino do que fazia, e, favorecido pela obscurido, passei-lhe a mo pela cintura e cerrei seu talhe delicado. [9] Ella soltou um grito, que foi tomado naturalmente como susto causado pelos solavancos do omnibus, e refugiou-se no canto. Meio arrependido do que tinha feito, voltei-me como para olhar pela portinhola do carro, e, approximando-me d'ella, disse-lhe quasi ao ouvido: Perdo! No respondeu; conchegou-se ainda mais ao canto. Tomei uma resoluo heroica. Vou descer; no a incommodarei mais. Ditas estas palavras rapidamente, de modo que s ella ouvisse, inclinei-me para mandar parar. Mas sent outra vez a sua mosinha, que apertava docemente a minha, para impedir-me de sahir. Est entendido que no resisti, e que deixei-me ficar; ella conservava-se sempre longe de mim, mas tinha-m [10] abandonado a mo, que apertava respeitosamente. De repente veio-me uma ida. Si fosse feia! si fosse velha! si fosse uma e outra cousa! Fiquei frio, e comecei reflectir. Esta mulher, que sem me conhecer me permittia o que s se permitte ao homem que se ama, no podia deixar com effeito de ser feia e muito feia. No lhe sendo facil achar um namorado de dia, ao menos agarrava-se este, que de noite e s cegas lhe proporcionra o acaso. verdade que essa mo delicada, essa espadua avelludada... Illuso! Era a disposio em que eu estava! A imaginao capaz de maiores esforos ainda. N'esta marcha, o meu espirito em alguns instantes tinha chegado uma convico inabalavel sobre a fealdade de minha vizinha. Para adquirir a certeza renovei o [11] exame que tentra principio aproveitando-me da luz furtiva de algum raro lampio acceso: porm ainda d'esta vez foi baldado; estava to bem envolvida no seu mantelete e no seu vo, que nem um trao do rosto trahia seu incognito. Mais uma prova! Uma mulher bonita deixa-se admirar, e no se esconde como uma perola dentro da sua ostra. Decididamente era feia, enormemente feia! N'isto ella fez um movimento entreabrindo o seu mantelete, e um bafejo suave de aroma de sandalo exhalou-se. Aspirei voluptuosamente essa onda de perfume, que se infiltrou em minha alma como um effluvio celeste. No se admire, minha prima, tenho uma theoria respeito dos perfumes. A mulher uma flr que se estuda, como a flr do campo, pelas suas cres, pelas suas folhas e sobretudo pelo seu perfume. [12] Dada a cr predilecta de uma mulher desconhecida, o seu modo de trajar e o seu perfume favorito, vou descobrir, com a mesma exactido de um problema algebrico, si ella bonita ou feia. De todos estes indicios, porm, o mais seguro o perfume; e isto por um segredo da natureza, por uma lei mysteriosa da creao, que no sei explicar. Porque que Deos deu o aroma mais delicado rosa, ao heliotropo, violeta, ao jasmim, e no essas flres sem graa e sem belleza, que s servem para realar as suas irms? de certo por esta mesma razo que Deos s d mulher linda esse tacto delicado e subtil, esse gosto apurado, que sabe distinguir o aroma mais perfeito. J v, minha prima, porque esse odor de sandalo foi para mim como uma revelao. S uma mulher distincta, uma [13] mulher de sentimento, sabe comprehender toda a poesia d'esse perfume oriental, d'esse hatchiss do olfacto, que nos embala nos sonhos brilhantes das Mil e uma Noites, que nos falla da India, da China, da Persia, dos esplendores da Asia e dos mysterios do bero do sol. O sandalo o perfume das odaliscas de Stamboul e das houris do propheta; como as borboletas que se alimentam de mel, a mulher de Oriente vive com as gottas d'essa essencia divina. Seu bero de sandalo; seus collares, suas pulseiras, o seu leque, so de sandalo; e, quando a morte vem quebrar o fio d'essa existencia feliz, ainda em uma urna de sandalo que o amor guarda as suas cinzas queridas. Tudo isto passou-me pelo pensamento, como um sonho, emquanto eu aspirava ardentemente a exhalao fascinadora, que foi pouco e pouco desvanecendo-se. [14] Era bella! Tinha toda a certeza; d'esta vez era uma convico profunda e inabalavel. Com effeito, uma mulher de distino, uma mulher de alma elevada, si fosse feia, no dava sua mo beijar um homem que podia repellil-a quando a conhecesse; no se expunha ao escarneo e ao desprezo. Era bella! Mas no a podia ver, por mais esforos que fizesse; via-a com os olhos da alma, fazia o seu retrato imaginario. O omnibus parou; uma outra senhora ergueu-se e sahio. Senti que sua mo apertava a minha; vi uma sombra passar diante de meus olhos no meio do ruge-ruge de um vestido, e quando dei accordo de mim rodava o carro e eu tinha perdido a minha viso. Resoava-me ainda ao ouvido uma [15] palavra murmurada, ou antes suspirada quasi imperceptivelmente: Non ti scordar di me!... Lancei-me fra do omnibus; caminhei direita e esquerda; andei como um louco at nove horas da noite. Nada! II Quinze dias se passram depois da minha aventura. Durante este tempo escusado dizer-lhe as extravagancias que fiz. Fui todos os dias Andarahy no omnibus das sete horas, para ver si encontrava a minha desconhecida; indaguei de todos os passageiros si a conheciam, e no obtive a menor informao. [18] Estava braos com uma paixo, minha prima, e com uma paixo de primeira fora e de alta presso, capaz de fazer vinte milhas por hora. Quando sahia no via ao longe um vestido de seda preta e um chapo de palha que no lhe dsse caa, at fazel-o chegar abordagem.. No fim descobria alguma velha ou alguma costureira desgeitosa, e continuava tristemente meu caminho, atrs d'essa sombra impalpavel, que eu procurava havia quinze longos dias, isto , um seculo para o pensamento de um amante. Um dia estava em um baile, triste e pensativo, como um homem que ama uma mulher e no conhece a mulher que ama. Recostei-me uma porta, e d'ahi via passar diante de mim uma myriada brilhante e esplendida, pedindo todos aquelles rostos indifferentes um olhar, [19] um sorriso, que me dsse conhecer aquella que eu procurava. Assim preoccupado, quasi no dava f do que se passava junto de mim, quando senti um leque tocar no meu brao, e uma voz que vivia no meu corao, uma voz que cantava dentro de minha alma, murmurou: Non ti scordar di me!... Voltei-me. Corri um olhar pelas pessoas que estavam junto de mim, e apenas vi uma velha que passeava pelo brao de seu cavalheiro, abanando-se com um leque. Ser ella, meu Deos? pensei eu horrorisado. E, por mais que fizesse, meus olhos no se podiam destacar d'aquelle rosto cheio de rugas. A velha tinha uma expresso de bondade e de sentimento que devia attrahir a sympatia; mas n'aquelle momento essa belleza moral, que illuminava aquella physionomia intelligente, [20] pareceu-me horrvel e at repugnante. Amar quinze dias uma sombra, sonhal-a bella como um anjo, e por fim encontrar uma velha de cabellos brancos, uma velha coquette e namoradeira! No, era possivel! Naturalmente a minha desconhecida tinha fugido antes que eu tivesse tempo de vl-a. Essa esperana consolou-me; mas durou apenas um segundo. A velha fallou, e na sua voz eu reconheci, apezar de tudo, apezar de mim mesmo, o timbre doce e avelludado que ouvira duas vezes. Em face da evidencia no havia mais que duvidar. Eu tinha amado uma velha, tinha beijado sua mo enrugada com delirio, tinha vivido quinze dias de sua lembrana. Era para fazer-me enlouquecer ou rir; no me ri nem enlouqueci, mas fiquei com tal tedio e aborrecimento [21] de mim mesmo que no posso exprimir. Que peripecias, que lances, porm, no me reservava ainda esse drama, to simples e obscuro! No distingui as primeiras palavras da velha logo que ouvi a sua voz; foi s passado o primeiro espanto que percebi o que dizia. Ella no gosta de bailes. Pois admira, replicou o cavalheiro; na sua idade! Que quer! no acha prazer n'estas festas ruidosas, e n'isto mostra bem que minha filha. A velha tinha uma filha, e isto podia explicar a semelhana extraordinaria da voz. Agarrei-me esta sombra, como um homem que caminha no escuro. Resolvi-me seguir a velha toda a noite, at que ella se encontrasse com sua filha: desde este momento era o meu fanal, a minha estrella polar. [22] A senhora e o seu cavalheiro entrram na saleta da escada. Separado d'ella um instante pela multido, ia seguil-a. N'isto ouo uma voz alegre dizer da saleta: -Vamos, mami! Corri, e apenas tive tempo de perceber os folhos de um vestido preto, envolto n'um largo bornou de seda branca, que desappareceu ligeiramente na escada. Atravessei a saleta to depressa como me permittio a multido, e, pisando callos, dando encontres direita e esquerda, cheguei emfim porta da sahida. O meu vestido preto sumio-se pela portinhola de um coup, que partio trote largo. Voltei ao baile desanimado; minha unica esperana era a velha; por ella podia tomar informaes, saber quem era a minha desconhecida, indagar [23] o seu nome e a sua morada, acabar emfim com este enigma, que me matava de emoes violentas e contrarias. Indaguei d'ella. Mas como era possivel designar uma velha da qual eu s sabia pouco mais ou menos a idade? Todos os meus amigos tinham visto muitas velhas, porm no tinham olhado para ellas. Retirei-me triste e abatido, como um homem que se v em luta contra o impossivel. De duas vezes que a minha viso me tinha apparecido, s me restava uma lembrana, um perfume e uma palavra! Nem siquer um nome! todo momento parecia-me ouvir na briza da noite essa phrase do Trovador, to cheia de melancolia e de sentimento, que resumia para mim toda uma historia. [24] Desde ento no se representava uma s vez esta opera em que eu no fosse ao theatro, ao menos para ter o prazer de ouvil-a repetir. principio, por uma intuio natural, julguei que ella devia, como eu, admirar essa sublime harmonia de Verdi, que devia tambem ir sempre ao theatro. O meu binoculo examinava todos os camarotes com uma atteno meticulosa; via moas bonitas ou feias, mas nenhuma d'ellas me fazia palpitar o corao. Entrando uma vez no theatro e passando a minha revista costumada, descobri finalmente na terceira ordem sua mi, a minha estrella, o fio de Ariadne que me podia guiar n'este labyrintho de duvidas. A velha estava s na frente do camarote, e de vez em quando voltava-se para trocar uma palavra com alguem, sentado no fundo. [25] Senti uma alegria ineffavel. O camarote proximo estava vazio; perdi quasi todo o espectaculo procurar o cambista incumbido de vendl-o. Por fim achei-o, e subi de um pulo as tres escadas. O corao queria saltar-me quando abri a porta do camarote e entrei. No me tinha enganado; junto da velha vi um chapozinho de palha com um vo preto rocegado, que no me deixava ver o rosto da pessoa quem pertencia. Mas eu tinha adivinhado que era ella; e sentia um prazer indefinivel em olhar aquellas rendas e fitas, que me impediam de conhecl-a, mas que ao menos lhe pertenciam. Uma das fitas do chapo tinha cahido do lado do meu camarote, e, em risco de ser visto, no pude soster-me e beijei-a furto. Representava-se a Traviata, e era o ultimo acto; o espectaculo ia acabar, [26] e eu ficaria no mesmo estado de incerteza. Arrastei as cadeiras do camarote, tossi, deixei cahir o binoculo, fiz um barulho insupportavel, para ver si ella voltava o rosto. A plata pedio silencio; todos os olhos procurram conhecer a causa do rumor; porm ella no se moveu; com a cabea meio inclinada sobre a columna, em uma languida inflexo, parecia toda entregue ao encanto da musica. Tomei um partido. Encostei-me mesma columna, e em voz baixa balbuciei estas palavras: No me esqueo! Estremeceu e, abaixando rapidamente o vo, conchegou ainda mais o largo bornou de setim branco. Cuidei que ia voltar-se, mas enganei-me; esperei muito tempo, e debalde. Tive ento um movimento de despeito [27] e quasi de raiva; depois de um mez que eu guardava a maior fidelidade sua sombra, ella me recebia assim friamente. Revoltei-me. Comprehendo agora, disse eu em voz baixa e como fallando um amigo que estivesse meu lado, comprehendo porque ella me foge, porque conserva esse mysterio; tudo isto no passa de uma zombaria cruel, de uma comedia, em que eu fao o papel do amante ridiculo. Realmente uma lembrana engenhosa! Lanar em um corao o germen de um amor profundo; alimental-o de tempos a tempos com uma palavra, excitar a imaginao pelo mysterio; e depois, quando esse namorado de uma sombra, de um sonho, de uma illuso, passear pelo salo a sua figura triste e abatida, mostral-o suas amigas como uma victima immolada aos seus caprichos, e escarnecer do louco! espirituoso! O orgulho da [28] mais vaidosa mulher deve ficar satisfeito! Emquanto eu proferia estas palavras, repassadas de todo o fel que tinha no corao, a Charton modulava com a sua voz sentimental essa linda aria final da Traviata, interrompida por ligeiros accessos de uma tosse secca. Ella tinha curvada a cabea, e no sei si ouvia o que eu lhe dizia ou o que a Charton cantava; de vez em quando as suas espaduas se agitavam com um tremor convulsivo, que eu tomei injustamente por um movimento de impaciencia. O espectaculo terminou, as pessoas do camarote sahiram, e ella, levantando sobre o chapu o capuz de seu manto, acompanhou-as lentamente. Depois, fingindo que se tinha esquecido de alguma cousa, tornou entrar no camarote, e estendeu-me a mo. No saber nunca o que me fez soffrer, disse-me com a voz tremula. [29] No pude ver-lhe o rosto; fugio, deixando-me o seu leno impregnado d'esse mesmo perfume de sandalo e todo molhado de lagrimas ainda quentes. Quiz seguil-a; mas ella fez um gesto to supplicante que no tive animo de desobedecer-lhe. Estava como d'antes; no a conhecia, no sabia nada seu respeito; porm ao menos possuia alguma cousa d'ella; o seu leno era para mim uma reliquia sagrada. Mas as lagrimas? Aquelle soffrimento de que ella fallava? O que queria dizer tudo isto? No comprendia; si eu tinha sido injusto, era uma razo para no continuar esconder-se de mim. Que queria dizer este mysterio, que parecia obrigada conservar? Todas estas perguntas e as conjecturas que ellas davam lugar no me deixram dormir. [30] Passei uma noite de vigilia fazer supposies, cada qual mais desarrazoada. III Recolhendo-me no dia seguinte, achei em casa uma carta. Antes de abril-a conheci que era d'ella, porque lhe tinha imprimido esse suave perfume que a cercava como uma aureola. Eis o que dizia: [32] Julga mal de mim, meu amigo; nenhuma mulher pde escarnecer de um nobre corao como o seu. Si me occulto, si fujo, porque ha uma fatalidade que isto me obriga. E s Deus sabe quanto me custa este sacrificio, porque o amo! Mas no devo ser egoista e trocar sua felicidade por um amor desgraado. Esquea-me. C. Essa assignatura era a mesma lettra que marcava o seu leno, e qual eu desde a vespera pedia debalde seu nome! Reli no sei quantas vezes esta carta, e, apezar da delicadeza de sentimento que parecia ter dictado suas palavras, o que para mim tornava-se bem claro que ella continuava fugir-me. Fosse qual fosse esse motivo que ella chamava uma fatalidade, e que eu [33] suppunha ser apenas escrupulo, sino uma zombaria, o melhor era aceitar o seu conselho e fazer por esquecel-a. Reflecti ento seriamente sobre a extravagancia da minha paixo, e assentei que com effeito precisava tomar uma resoluo decidida. No era possivel que continuasse correr atrs de um fantasma que esvaecia-se quando ia tocal-o. Aos grandes males os grandes remedios, como diz Hippocrates. Resolvi fazer uma viagem. Mandei sellar o meu cavallo, metti alguma roupa em um sacco de viagem, embrulhei-me no meu capote e sahi, sem me importar com a manh de chuva que fazia. No sabia para onde iria. O meu cavallo levou-me para o Engenho-Velho, e eu d'ahi encaminhei-me para a Tijuca, onde cheguei ao meio-dia, todo molhado e fatigado pelos mos caminhos. [34] Si algum dia se apaixonar, minha prima, aconselho-lhe as viagens como um remedio soberano e talvez o unico efficaz. Deram-me um excellente almoo no hotel; fumei um charuto, e dormi doze horas, sem ter um sonho, sem mudar de lugar. Quando accordei, o dia despontava sobre as montanhas da Tijuca. Uma bella manh, fresca e rociada das gottas do orvalho, desdobrava o seu manto de azul por entre a cerrao, que se desvanecia aos raios do sol. O aspecto d'esta natureza quasi virgem, esse co brilhante, essa luz esplendida cahindo em cascatas de ouro sobre as encostas dos rochedos, serenou-me completamente o espirito. Fiquei alegre, o que ha muito tempo no me succedia. O meu hospede, um Inglez franco e cavalheiro, convidou-me para acompanhal-o caa; gastmos todo o dia [35] correr atrs de duas ou tres marrecas e bater as margens da Restinga. Assim passei nove dias na Tijuca, vivendo uma vida estupida quanto pde ser; dormindo, caando e jogando o bilhar. Na tarde do decimo dia, quando j me suppunha perfeitamente curado e estava contemplando o sol, que se escondia por detrs dos montes, e a lua, que derramava no espao a sua luz doce e assetinada, fiquei triste de repente. No sei que caminho tomram as minhas idas; o caso que d'ahi pouco descia a cerra no meu cavallo, lamentando esses nove dias, que talvez tivessem feito perder para sempre a minha desconhecida. Accusava-me de infidelidade, de traio; a minha fatuidade dizia-me que eu devia ao menos ter-lhe dado o prazer de ver-me. Que importava que ella me ordenasse [36] que a esquecesse? No me tinha confessado que me amava, e no devia eu resistir e vencer essa fatalidade, contra a qual ella, fraca mulher, no podia lutar? Tinha vergonha de mim mesmo; achava-me egoista, cobarde, irreflectido, e revoltava-me contra tudo, contra o meu cavallo, que me levra Tijuca, e o meu hospede, cuja amabilidade alli me havia demorado. Com esta disposio de espirito cheguei cidade, mudei de trajo, e ia sahir, quando o meu moleque deu-me uma carta. Era d'ella. Causou-me uma sorpresa misturada de alegria e de remorso: [37] Meu amigo. Sinto-me com coragem de sacrificar o meu amor sua felicidade; mas ao menos deixe-me o consolo de amal-o. Ha dous dias que espero debalde vl-o passar, e acompanhal-o de longe com um olhar! No me queixo; no sabe nem deve saber em que ponto de seu caminho o som de seus passos faz palpitar um corao amigo. Parto hoje para Petropolis, d'onde voltarei breve; no lhe peo que me acompanhe, porque devo ser-lhe sempre uma desconhecida, uma sombra escura que passou um dia pelos sonhos dourados de sua vida. Entretanto, eu desejava vl-o ainda uma vez, apertar a sua mo e dizer-lhe adeus para sempre. C. A carta tinha a data de 3; ns estavamos a 10; havia oito dias que ella partira para Petropolis e que me esperava. [38] No dia seguinte embarquei na Prainha e fiz essa viagem da bahia, to pittoresca, to agradavel, e ainda to pouco apreciada. Mas ento a magestade d'essas montanhas de granito, a poesia d'esse vasto seio de mar, sempre alisado como um espelho, os grupos de ilhotas graciosas que bordam a bahia, nada d'isto me preoccupava. S tinha uma idachegar; e o vapor caminhava menos rapido do que meu pensamento. Durante a viagem pensava n'essa circumstancia que a sua carta me revelra, e fazia-me por lembrar de todas as ruas por onde costumava passar, para ver si adivinhava aquella onde ella morava, e d'onde todos os dias me via sem que eu suspeitasse. Para um homem como eu, que andava todo o dia desde a manh at a noite, ponto de merecer que a senhora, minha prima, me appellidasse [39] de Judo Errante, este trabalho era improficuo. Quando cheguei Petropolis eram cinco horas da tarde; estava quasi noite. Entrei n'esse hotel suisso, ao qual nunca mais voltei, e emquanto me serviam um magro jantar, que era o meu almoo, tomei informaes. Tm subido estes dias muitas familias? perguntei ao criado. No, senhor. Mas ha cousa de oito dias no vieram da cidade duas senhoras? No estou certo. Pois indague, que preciso saber e j; isto o ajudar obter informaes. A physionomia sizuda do criado expandio-se ao tinir da moeda, e a lingua adquiriu a sua elasticidade natural. Talvez o senhor queira fallar de uma senhora j idosa que veio acompanhada de sua filha. [40] isso mesmo. A moa parece doente; nunca a vejo sahir. Onde est morando? Aqui perto, na rua de... No conheo as ruas de Petropolis; o melhor acompanhar-me e vir mostrar-me a casa. Sim, senhor. O criado seguio-me, e tommos por uma das ruas agrestes da cidade allem. IV A noite estava escura. Era uma d'essas noites de Petropolis, envoltas de nevoeiro e cerrao. Caminhavamos mais pelo tacto do que pela vista, difficilmente distinguiamos os objectos uma pequena distancia; e muitas vezes, quando o meu guia se apressava, o seu vulto perdia-se nas trevas. Em alguns minutos chegmos em [42] face de um pequeno edificio construido alguns passos do alinhamento, e cujas janellas estavam esclarecidas por uma luz interior. alli. Obrigado. O criado voltou, e eu fiquei junto d'essa casa, sem saber o que ia fazer. A ida de que estava perto d'ella, que via a luz que a esclarecia, que tocava a relva que ella pisra, fazia-me feliz. cousa singular, minha prima! O amor, que insaciavel e exigente, e no se satisfaz com tudo quanto uma mulher pde dar, que deseja o impossivel, s vezes contenta-se com um simples gozo d'alma, com uma d'essas emoes delicadas, com um d'esses nadas, dos quaes o corao faz um mundo novo e desconhecido. No pense, porm, que eu fui Petropolis s para contemplar com enlevo as janellas de um chalet; no: ao [43] passo que sentia esse prazer, reflectia no meio de vl-a e de fallar-lhe. Mas como?... Si soubesse todos os expedientes, cada qual mais extravagante, que inventou a minha imaginao! Si visse a elaborao tenaz que se entregava o meu espirito para descobrir um meio de dizer-lhe que eu estava alli e a esperava! Por fim achei um; si no era o melhor, era o mais prompto. Desde que chegra, tinha ouvido uns preludios de piano, mas to debeis que pareciam antes tirados por uma mo distrahida que roava o teclado do que por uma pessoa que tocasse. Isto me fez lembrar que ao meu amor se prendia a recordao de uma bella musica de Verdi; e foi quanto bastou. Cantei, minha prima, ou antes assassinei aquella linda romanza; os que me ouvissem tomar-me-hiam por [44] algum furioso; mas ella me comprehenderia. E de facto, quando eu acabei de estropeiar esse trecho magnifico de harmonia e sentimento, o piano, que havia emmudecido, soltou um trilho brilhante e sonoro, que acordou os echos adormecidos no silencio da noite. Depois d'aquella cascata de sons magestosos, que se precipitavam em ondas de harmonia, do seio d'aquelle turbilho de notas, que se cruzavam, deslisou plangente, suave e melancolica, uma voz que sentia e palpitava, exprimindo todo o amor que respira a melodia sublime de Verdi. Era ella quem cantava! Oh! no posso pintar-lhe, minha prima, a expresso profundamente triste, a angustia de que ella repassou aquella phrase de despedida: [45] Non ti scordar di me Addio!... Partia-me a alma. Apenas acabou de cantar, vi desenhar-se uma sombra em uma das janellas; saltei a grade do jardim; mas as venezianas descidas no me permittiram ver o que se passava na sala. Sentei-me sobre uma pedra e esperei. No se ria, D***; estava resolvido passar alli a noite ao relento, olhando para aquella casa, e alimentando a esperana de que ella viria ao menos com uma palavra compensar o meu sacrificio. No me enganei. Havia meia hora que a luz da sala tinha desapparecido e que toda a casa parecia dormir, quando abrio-se uma das portas do jardim, e eu vi ou antes presenti a sua sombra na sala. Recebeu-me sem sorpresa, sem [46] temor; naturalmente e como si eu fosse seu irmo ou seu marido. porque o amor puro tem bastante delicadeza e bastante confiana para dispensar o falso pejo, o pudor de conveno de que s vezes costumam cercal-o. Eu sabia que sempre havia de vir, disse-me ella. Oh! no me culpe! si soubesse! Eu culpal-o? Quando mesmo no viesse, no tinha direito de queixar-me. Porque no me ama! Pensa isto? disse-me com uma voz cheia de lagrimas. No! no!... Perde! Perdo-lhe, meu amigo, como j lhe perdoei uma vez; julga que lhe fujo, que me occulto, porque no o amo, e entretanto no sabe que a maior felicidade para mim seria poder dar-lhe a minha vida. [47] Mas ento porque esse mysterio? Esse mysterio, bem sabe, no uma cousa creada por mim, e sim pelo acaso; si o conservo porque, meu amigo... no deve amar. No a devo amar! Mas eu amo-a!... Recostou a cabea no meu hombro, e eu senti uma lagrima cahir sobre meu seio. Estava to perturbado, to commovido d'essa situao incomprehensivel, que senti-me vacilar, e deixei-me cahir sobre o sof. Ella sentou-se junto de mim; e, tomando-me as duas mos, disse-me um pouco mais calma: Diz que me ama! Juro-lhe! No se illude talvez? Si a vida no uma illuso, respondi, penso que no, porque a minha [48] vida agora voc, ou antes a sua sombra. Muitas vezes toma-se um capricho por amor; no conhece de mim, como diz, sino a minha sombra!... Que me importa?... E si eu fosse feia? disse ella rindo. bella como um anjo! Tenho toda a certeza. Quem sabe? Pois bem; convena-me, disse eu passando-lhe o brao pela cintura e procurando leval-a para uma sala vizinha, d'onde filtravam os raios de uma luz. Desprehendeu-se do meu brao. A sua voz tornou-se grave e triste. Escute, meu amigo; fallemos seriamente. Diz que me ama; eu o creio, eu o sabia antes mesmo que me [49] dissesse. As almas como as nossas quando se encontram se reconhecem e se comprehendem. Mas ainda tempo; no julga que mais vale conservar uma recordao do que entregar-se um amor sem esperana e sem futuro?... No, mil vezes no! No entendo o que quer dizer; o meu amor, o meu, no precisa de futuro e de esperana, porque o tem em si, porque viver sempre!... Eis o que eu temia; e entretanto eu sabia que assim havia de acontecer; quando se tem a sua alma ama-se de uma s vez. Ento porque exige de mim um sacrificio que sabe ser impossivel? Porque, disse ella com exaltao, porque, si ha uma felicidade indefinivel em duas almas que ligam sua vida, que se confundem na mesma existencia, que s tm um passado e um futuro [50] para ambas, que desde a flr da idade at a velhice caminham juntas para o mesmo horizonte, partilhando os seus prazeres e as suas magoas, revendo-se uma na outra at o momento em que batem as azas e vo abrigar-se no seio de Deos; deve ser cruel, bem cruel, meu amigo, quando, tendo-se apenas encontrado, uma d'essas duas almas irms fugir d'este mundo, e a outra, viuva e triste, fr condemnada levar sempre no seu seio uma ida de morte; trazer essa recordao, que, como um crepe de luto, envolver a sua bella mocidade; fazer do seu corao, cheio de vida e de amor, um tumulo para guardar as cinzas do passado! Oh! deve ser horrivel!... A exaltao com que fallava tinha-se tornado uma especie de delirio; sua voz, sempre to doce e avelludada, parecia alquebrada pelo cansao da respirao. [51] Ella cahio sobre o meu seio, agitando-se convulsivamente em um accesso de tosse. V Assim ficmos muito tempo immoveis, ella com a fronte apoiada sobre meu peito, eu sob a impresso triste de suas palavras. Por fim ergueu a cabea; e, recobrando a serenidade, disse-me em tom doce e melancolico: No pensa que melhor esquecer do que amar assim? No! Amar, sentir-se amado, [54] sempre um gozo immenso e um grande consolo para a desgraa. O que triste, o que cruel, no essa viuvez da alma separada de sua irm, no; ahi ha um sentimento que vive, apezar da morte, apezar do tempo. sim esse vacuo do corao que no tem uma affeio no mundo, e que passa como um estranho por entre os prazeres que o cercam. Que santo amor, meu Deus! Era assim que eu sonhava ser amada!... E me pedia que a esquecesse!... No! no! Ama-me: quero que me ame. Ao menos... No me fugir mais? No. E me deixar ver aquella que eu amo, e que no conheo? perguntei sorrindo. Deseja? Supplico-lhe! No sou eu sua?... Lancei-me para a saleta onde havia [55] luz, e colloquei o lampio sobre a mesa do gabinete em que estavamos. Para mim, minha prima, era um momento solemne; toda essa paixo violenta, incomprehensivel, todo esse amor ardente por um vulto de mulher, ia depender talvez de um olhar. E tinha medo de ver esvaecer-se, como um fantasma em face da realidade, essa viso poetica de minha imaginao, essa creao que resumia todos os typos. Foi, portanto, com uma emoo extraordinaria que, depois de collocar a luz, voltei-me. Ah!... Eu sabia que era bella; mas a minha imaginao apenas tinha esboado o que Deos crera. Ella olhava-me e sorria. Era um ligeiro sorriso, uma flr que desfolhava-se nos seus labios, um reflexo que illuminava o seu lindo rosto. [56] Seus grandes olhos negros fitavam em mim um d'esses olhar ......Buy Now (To Read More)

Product details

Ebook Number: 44540
Author: Alencar, José Martiniano de
Release Date: Dec 29, 2013
Format: eBook
Language: Portuguese

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